Louco por pés
Ises
A. Abrahamsohn
Já estávamos
navegando há uma semana. Em mais um dia chegaríamos
a Istambul.
Eu tinha escolhido
esse pequeno navio de cruzeiro por algumas boas razões. Odeio as multidões
ruidosas que se amontoam naqueles navios que mais parecem prédios de apartamentos.
Um navio pequeno por navegar mais próximo à costa permitiria ver as paisagens e
pequenas cidades ao longo da costa mediterrânea.
Éramos não mais que
cinquenta passageiros. A maioria já tinha passado dos sessenta, porém havia
alguns casais mais jovens.
Eu viajava sozinho pela
primeira vez após a morte de Simone há dois anos. Nos dezoito anos de nosso
casamento sempre saímos juntos nas férias.
Istambul, a Constantinopla das histórias de mil e uma noites da juventude...
Sempre voltava às nossas conversas, mas acabava sendo um destino preterido em
favor de lugares mais votados pelos nossos filhos agora adolescentes.
Eu tinha de propósito
escolhido um destino que não me traria recordações.
Estava de manhã
sentado no tombadilho, distraído olhando as embarcações à distância. Pequenos
barcos pesqueiros coloridos boiando naquele mar, hoje mais azul que de costume
refletindo o céu sem nuvens. Pensei em voltar a pintar. Havia abandonado quando
os filhos nasceram.
A moça sentou-se na
cadeira ao lado após um cortês bom dia e ambos mergulhamos nas nossas leituras.
Eu já a havia notado, sempre acompanhada
por um homem de semblante grave de quarenta e tantos anos que julguei ser o
marido. Ela era alguns anos mais jovem destoando do parceiro pelo traje
esportivo e, principalmente, pela fisionomia tranquila que se abria em discreto
sorriso ao cumprimentar os demais passageiros.
Olhei de soslaio para
minha vizinha. Cabelos escuros bem curtos, rosto agradável sem ser
especialmente belo trajava camiseta azul e calça de linho natural. Meu olhar desceu
até os pés, calçados em prosaicas sandálias brancas. Foram os pés, aqueles pés
que me balançaram o coração. Esguios, brancos e macios com as unhas pintadas em
suave tom de rosa. Fiquei mesmerizado percorrendo
o arco do pé, os dedos roliços de unhas arredondadas, passando pelo calcanhar
até os tornozelos. Invadiu-me a saudade de Simone também dotada de pés
delicados. Creio que os pés femininos são minha perdição.
Deixou cair alguma
coisa, senhor? Assustei com a pergunta. Fingi que procurava algo no chão sob a
cadeira. Apenas um cartão de hotel de Istambul, balbuciei. A dona dos estonteantes
pés sorriu perguntando quanto tempo iria ficar na cidade e sugeriu uns dois
hotéis, um dos quais aquele onde eu tinha feito reserva.
Logo depois o navio
entraria no estreito de Dardanelos. Fomos para a amurada. A paisagem mudara. Naquele
trecho, o mar lambia a base de altas falésias e os morros pareciam prestes a
desmoronar. A praia estreita tinha cor marrom da terra trazida pelas chuvas. Apenas
a vegetação rasteira segurava as encostas.
Minha companheira de viagem
quebrou o silêncio: meu bisavô deve estar sob a terra em algum lugar por aqui.
Tinha 22 anos. Desapareceu em outubro de 2015.
Eu também lembrara a
desastrosa campanha de Gallipoli. Cerca
de 150.000 entre mortos e feridos dos dois lados. O que eu poderia responder?
Perguntei apenas se o bisavô era inglês. Não era. A família era australiana.
Convidei-a para um café no bar da piscina para nos afastarmos daquela paisagem
lúgubre.
Ao voltarmos, a
paisagem mudara e agora se viam praias de areia branca e casas de telhado
colorido entre árvores. Estávamos chegando a uma baía e uma cidade grande de
prédios altos e várias marinas. O convés rapidamente foi tomado pelos outros
passageiros. Yvonne se despediu com um rápido até logo. Imaginei que iria
encontrar o marido para o almoço.
Eu decidi ficar por
ali e ficar junto à piscina aproveitando a paisagem e o último dia de
navegação. Só vi Yvonne de longe quando à noite cheguei ao salão para jantar. Deviam ter vindo ao
primeiro aviso e o casal logo se retirou.
Só voltei a vê-la no
dia seguinte na fila de desembarque. Estava bastante à frente com o marido, mas
fiquei contente com um olhar discreto de reconhecimento. Ao sair do controle de
passaportes não mais vi o casal.
Ao me registrar no
hotel perguntei se a Sra. Lasalle, Yvonne Lasalle já tinha se registrado.
Fiquei frustrado com a negativa. Achei que poderia estar hospedada no mesmo
hotel. À tarde saí para a praça Saultanahmet cheia de turistas e à procura de
calma caminhei até o parque Gülhane onde fiquei até a hora do pôr do sol sobre
o Bósforo.
No caminho de volta
ao hotel me veio a esperança de reencontrar Yvonne. Os turistas lotavam a praça
e devagar se dispersavam pelos hotéis e restaurantes, mas nem sinal dela. Desapontado
resolvi dormir cedo. No dia seguinte queria chegar ao palácio de Topkapi antes
da turba de turistas. Porém, dormi mal. Cheguei a sonhar com uma mulher morena de
pés belíssimos tatuados com hena e unhas vermelhas. Não eram certamente os pés de Yvonne. A mulher do sonho tinha o rosto meio oculto
por um hijab de seda azul e me fazia gestos eróticos e até obscenos. Devia ser
fruto da minha leitura dos panfletos sobre o harém de Topkapi. Acordei já tarde
e quando cheguei ao palácio tive que me resignar à espera na interminável fila de
visitantes. Eu me divertia tentando identificar as nacionalidades pela roupa ou
gestos. Depois de algum tempo percebi Yvonne e o marido distantes já perto do
guichê. Meu coração acelerou. Procuraria por ela num dos recintos do palácio.
Percorri as várias
áreas do museu e do harém. Escolhi ver uma exposição de joias e adereços
femininos anexa ao harém. A sala estava quase deserta. Depois iria ver o grande
tesouro dos sultões atração para a multidão já na fila à espera de entrar.
Cansado de caminhar
cheguei até o jardim do palácio. Sentei-me à sombra olhando o meticuloso
arranjo das flores e a dança das águas iridescentes à luz do sol. De repente vi
Yvonne surgir no canto mais distante do jardim. Não me viu. Era ela, sem dúvida,
usando tênis e saia ampla estampada com uma t-shirt preta. O marido não estava
à vista. Levantei-me para alcançá-la quando soou um alarme estridente. O aviso
veio primeiro em inglês depois em turco, francês e alemão. A ordem aos turistas era para se dirigirem
imediatamente aos portões de saída. Logo os guardas dos pavilhões passaram a
arrebanhar e empurrar os turistas relutantes na direção da saída. O que acontecia? Incêndio? Possível atentado?
Roubo?
Assim me vi empurrado
para uma das cinco filas que foram organizadas à saída pelos guardas que exigiam
ver as carteiras, conteúdo dos bolsos, enfim lugares onde algo poderia estar
escondido. Portanto, tinha havido um roubo. Um ou outro turista era levado para
um exame mais minucioso.
Para me distrair, como
de hábito, passei a perscrutar os meus colegas de fila. Este tem cara de ladrão
.... Ou, talvez essa, pensei ao ver uma mulher vestida com um blusão cheio de
bolsos lançando olhares amedrontados para os policiais. Foi quando vislumbrei
na fila ao lado os pés. Aqueles pés, os mesmos esplêndidos pés calçados nas
mesmas sandálias que vira no navio. Eram os mesmíssimos pés, não havia dúvida.
Lá estavam os objetos de meu encantamento, um pouco mais à minha frente. Meu
coração de novo acelerou. Mas nos separavam as divisórias entre as filas. Não
podia ir até ela. Chamei. Yvonne, Yvonne. Ela não se virou. Só então meu olhar deixou os pés. Porém,
encontrou outra mulher. O cabelo loiro arruivado, um boné de alguma
universidade americana, bermudas amarelas e top azul. Mas eu acabara de vê-la
no jardim. Tinha certeza de que era ela. Quem mais poderia ter aqueles pés?
Claro que nunca mais a vi.
No dia seguinte ao ler o jornal soube do
roubo. O roubo tinha acontecido na sala anexa ao harém onde eu estivera. O
valor estimado em dois milhões de dólares. Os suspeitos eram um casal de
australianos já conhecidos da polícia internacional pela audácia e planejamento
meticuloso. O alarme da sala foi desativado e as caixas de vidro cortadas com
diamante. Aparentemente em menos de dez minutos durante a troca de turno dos
guardas da sala.
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