Gira Mundo
José Vicente J. de Camargo
Ele se considerava um homem normal,
pelo menos nas aparências. Filho de major do exército, temido pelas severas penas
aplicadas aos subordinados. Com essa lembrança, costumava dizer aos seus dois
filhos adolescentes:
“Filho
de peixe, peixinho é! ”
Portanto, qualquer malfeito por parte deles, era corte
na mesada, cadeado na baike e apreensão do celular.
Mas, naquela noite, a dor no peito
bateu mais forte que nos dias anteriores, convencendo-o a quebrar um segredo
que não gostava de revelar: “Tinha medo de ir ao médico!”. Agiu normalmente
pela manhã, não deixando transparecer sua angustia nem mesmo a sua fiel e
dedicada esposa.
No caminho a empresa, na qual era
diretor financeiro, desviou o rumo para o hospital das clínicas – departamento
cardiológico – para um abraço forçado no velho colega de seu pai da academia
militar, que o destino desviou para tarefas mais nobres no corpo humano e que
desde então passou a ser o médico da família.
Com a mirada surpresa do doutor, foi
logo dizendo:
− Não é fantasma não! Sou eu mesmo que quero me render aos
seus comandos. Faça um reconhecimento do terreno que pela minha avaliação, está
frágil aos ataques inimigos.
Da expectativa de 1 hora de exames,
já se passaram 3 e ele, de camisola e chinelos, proibido de usar celular, só
pensava na hora de poder falar com Jane, sua secretária, para explicar o atraso
e saber das pendências urgentes. Ledo engano! No último exame lhe injetaram uma
droga que o fez adormecer.
Ao acordar, vislumbrou o rosto sério
do doutor fardado de branco dizendo:
− É obstrução da aorta, necessário cirurgia imediata! Está com
risco de vida. Não temos tempo a perder. Sala cirúrgica já reservada. Vai
receber agora uma anestesia mais forte que o fará dormir profundamente. Não se
preocupe, quando terminar a operação aviso sua esposa.
Em outro lado da cidade, Jane nervosa
procurava motivos para entender o que estava acontecendo com seu chefe – Dr.
Francisco Sales. Não se recordava, nos vinte anos de secretária, algo parecido.
Duas da tarde e nenhuma comunicação, nem rastro dele! Celular fora da área de
cobertura. Família, clube, e amigos mais próximos não foram contatados. Nessa
situação, ligou para Luizão, detetive e amigo de escola do Dr. Francisco.
Sabia, pelos inúmeros telefonemas que fizera entre os dois, da grande amizade que
os unia:
− Luizão, creio que o Dr. Francisco foi sequestrado! Celular não
atende e a família apreensiva, sem notícias dele faz horas. Venha para o
escritório que o porei ao par do acontecido. Não sei mais o que fazer.
Sem tardar, a chegada de Luizão é
anunciada pela portaria da empresa. Jane o recebe com o tique de piscar os
olhos sem parar, sinal de quando está nervosa. Ele a ouve, pede calma e diz:
− Francisco não é nenhum bobo que se deixa enganar facilmente.
Mas pragmático como é, não deixaria de dar notícias. Considerando a violência
em que vivemos, algo grave pode ter realmente acontecido. Vou contatar a central
da polícia para ver se descubro alguma pista que nos auxilie. Enquanto procurava
o número que queria ligar, pensava:
“Espero que ele não esteja na casa da
Ritinha curtindo o vinho que o diabo amassou! Da última vez que falamos estava
bem caidinho pela garota que dá uma de Lolita. Com carinha de anjo é feitiço
que deixa homem sério sem beira nem rumo. Falei pra tomar cuidado. Com esposa
fiel, dedicada e filhos exemplares em casa, não pode vacilar. Mas paixão é
fogo, quando pega não há bombeiro que salve. Ainda mais num de meia idade
querendo passar por um de vinte e cinco anos. É fogaréu na certa! O pior é que
ele não me quis dar o telefone nem o endereço dela, com medo que eu a fisgasse
para mim, como no caso da Marlene. Mas isso foi há trinta anos atrás. Hoje eu
pago para não entrar numa fria dessa. E agora, como eu faço pra saber se ele
está com ela, talvez brincando de Cesar e Cleópatra? ”.
Do chefe da polícia, Luizão recebeu,
passado uma hora, que não havia nenhuma ocorrência envolvendo alguém com aquele
perfil. O instituto médico legal também deu resposta negativa. Caso aparecesse
algo, entraria em contato.
“Não vou ficar sentado esperando!”,
matuta Luizão. Vou contatar o seguro de saúde dele, pra ver se tem alguma
informação.
O mundo também não fica parado!
Gira com todos seus personagens na
ciranda da vida. Assim, no lugarzinho reservado a ela, a faceira Lolita pensa ansiosa:
“O Francisquinho não veio ontem e até
agora não ligou. Nunca faltou nos dias marcados. O celular só dá caixa postal!
Já deixei recado para ligar, mas nada. Será que não quer mais meus carinhos? Da
última vez, me disse que não poderia viver sem eles, que se sentia outro homem,
novinho em folha. Já sei! Vou ligar pro cara do cartão que encontrei no bolso
do seu paletó e que gerou aquela cena de ciúmes que armei. Me disse que era seu
melhor amigo do ginásio. Até me contou que o apelidou de cascão por não gostar
de tomar banho”.
Luizão acabara de receber a posição
do seguro de saúde de Francisco: Negativo, nenhuma solicitação de cobertura
consta no sistema! Quando então o celular toca:
Trim, Trim. Ele atende e uma vozinha
melosa diz:
− É o Cascão?
Luizão se assusta e responde:
− Quem fala? Como sabe meu apelido? Mas instantaneamente mata
a charada! Só pode ser a Lolita do Francisco que é o único que me chama assim.
O Francisco está com você? Pergunta. Sabe onde ele está? Estou procurando-o e
não encontro...
− Não! Retruca ela. Esqueceu seu cartão aqui no apê, e como
estou preocupada por ele não ter aparecido nem telefonado, estou lhe ligando
para saber se sabe algo. Na última vez que nos vimos me contou que estava
sentindo umas dores no peito e que relutava, por medo, em consultar um amigo cardiologista
no hospital das clínicas.
− Ah! Replica Luizão. Já sei quem é esse médico. É o da
família, amigo do pai dele desde o tempo da academia militar. Vou ao HC.
Tiro na mosca! O comandante de branco
confirma a cirurgia de urgência. Risco de vida! Mas que o paciente está bem e
de recuperação necessária de três dias na UTI. Com a pressa da urgência e o
acúmulo de outras cirurgias, todas de última hora, esqueceu de avisar a esposa.
Pelo visor da sala da UTI, Luizão vê o amigo entubado, ligado a vários
aparelhos. Aliviado, liga para a esposa e para Jane: “Visitas só após sair da
UTI!”. No celular procura o número da última ligação – o da Ninfeta – e liga:
− Oi, pode respirar aliviada. Seu coroa está bem, mas
entubado, no HC. Cafunés só daqui a alguns dias, semanas talvez. Mas não se
preocupe, se sentir sozinha, me liga que eu passo por aí para tomarmos um café
juntos. E pensa:
“Me considero um homem normal, pelo menos nas aparências. E sigo o velho
ditado:
“Quem não belisca, não petisca!
Depois Francisco, após ver a morte
passar perto, com certeza vai preferir a calma do lar”
O mundo continua seu giro,
embaralhando seus personagens...
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