SOLTE SEUS CUPINS
O cronista está longe de ser um bom exemplo, mas não
tem dúvida: escrever é cortar.
·
O
Estado de S. Paulo.
·
10
Oct 2017
· Humberto
Werneck
Quem foi mesmo que disse que escrever é cortar
palavras?, pergunta um colega. Seria Carlos Drummond de Andrade?
Como sempre que me sinto desafiado, parei tudo e
fiz da dúvida alheia uma questão pessoal.
Meu cupincha se lembrava de ter lido uma crônica
em que Maria Julieta Drummond de Andrade, filha do poeta, reuniu conselhos
literários do pai. Eu também me lembrava, e, entre nuvens de ácaros, voltei ao
recorte de jornal. Lá estava, de fato, a recomendação, repetida, conta Maria
Julieta, “sem cessar e com razão’: “Escrever é cortar palavras”.
Então era mesmo Drummond o autor da frase, para
mim familiar há mais de meio século. Salvo engano, a ela fui apresentado num
auditório escolar em que pontificava uma autoridade em economia verbal. Mal o
mestre, invocando o poeta, receitou tesoura, um dedo juvenil (até hoje morro de
inveja) levantou um aparte: mas esta frase tem um rabicho supérfluo. Como
assim?, estranhou o palestrante –e o moço, triunfante: “Escrever é cortar”,
simplesmente – “palavras” fica óbvio. O mestre embatucou, mas teve a humildade
de pedir aplausos.
Reli, ia dizendo, a crônica de Maria Julieta, e
a leitura me levou a outra, de Armando Nogueira, em que o jornalista (muito
dado, aliás, a embaixadinhas estilísticas) conta ter passado anos na certeza de
que o autor da “preciosa máxima” era Drummond. Um dia, tocou no assunto com
ele, e o poeta negou autoria. Armando ficou desapontado, pois “a sentença tinha
a cara do mestre Drummond, cuja prosa é um exemplo de concisão”.
A dúvida, portanto, meu caro colega, persiste.
Ainda não dispensa interroga- ção numa seleta de frases sobre concisão que
venho acumulando e que, admito, deveria consultar mais amiúde.
Aquela, por exemplo, em que Graciliano Ramos
compara o trabalho do escritor ao de uma lavadeira que esfrega e torce
incansavelmente, até que da roupa já não pingue uma gota, pois a palavra foi
feita para dizer, não “para enfeitar, brilhar como ouro fácil”. Na mesma linha,
Hemingway a nos ensinar que texto é arquitetura, não decoração de interiores.
Ou Mark Twain, para quem escrever é fácil – basta cortar o que ali não deve
estar.
Ainda ouço Moacyr Scliar dizer, numa entrevista,
que deletar é tão ou mais importante do que digitar. E García Márquez
lamentando não se lembrar quem foi que disse que “um bom escritor é mais
apreciado pelo que rasga do que pelo publica”. Para não falar em João Cabral de
Melo Neto, em cuja poesia não acho vírgula sobrante, tão certo estava ele de
que escrever é como catar feijão: Jogam-se os grãos na água do / alguidar / e
as palavras na da folha de papel; / e depois joga-se fora o que boiar”. Se o
cronista José Carlos Oliveira recomenda “não se derramar”, visto que “palavra é
sangue”, Cabral, diz o mesmo com imagem inaudita: “... nem deve a voz ter diarreia”.
Já que a conversa me levou às vizinhanças da
escatologia, me permita, em boa causa, baixá-la ainda mais, e, em defesa do
texto bem podado, descarregar a lembrança prosaica, porém instrutiva, de algo
que vi no banheiro, sim, no banheiro de uma redação onde trabalhei.
Andava eu saudavelmente obcecado pela ideia do
texto enxuto, ao ponto de haver criado uma Teoria da Vênus de Milo, segundo a
qual qualquer texto melhora se cortado com rigor. Por que Vênus de Milo? Pode
ser, respondi, que a moça da estátua tivesse mãos e braços menos belos. A esse
esforço de limpeza, no qual cada palavra esteja em condições de justificar
presença, chamo “soltar os cupins”, cupins benignos, cuja dieta consistisse
exclusivamente em madeira ruim.
Mas estávamos, perdoe, no WC, e havia ali um
toalheiro onde se lia: “Bastam duas folhas deste papel para secar suas mãos.
Portanto, evite o desperdício”. Logo notei que alguém, munido de caneta, levava
àquele cubículo necessidades também estilísticas, pois aos poucos o aviso foi
perdendo banha. No final, estava assim: “2 folhas secam suas mãos. Evite
desperdício”. Acho que dá para cortar a segunda frase. Ou a primeira?
Antes que você, tendo chegado até aqui, passe a
tesoura e reduza a zero a prosa do cronista, convém fechá-la com ilustração
mais elevada, que vou colher naquele texto de Armando Nogueira. Fala-se ali de
um conto de John Ruskin em que um sujeito, numa feira, implica com este cartaz:
“Hoje vendo peixe fresco” – e, aos poucos, convence o vendedor a cortar
pelancas verbais.
“Hoje” não precisa, argumenta ele, pois para o
freguês qualquer dia é hoje. “Vende” também é dispensável – o que mais se faria
uma banca de feira? Quanto a “fresco”, bem... alguém poria anúncio de pescado
que não estivesse nessas condições?
Restava, àquela altura, “peixe” – mas não seria
o caso de descartar essa palavra, já que ali não se vende outro tipo de
mercadoria? A chance de algum comprador se equivocar é zero – até mesmo um
cego, que tem no olfato um guia certeiro.
Melhor cortar neste ponto. Agora é com você –
aqui & alhures, empunhe a tesoura, solte seus cupins!
O cronista está longe de ser um bom exemplo, mas
não tem dúvida: escrever é cortar.
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