LIQUIDAÇÃO FAJUTA, MULHER FAJUTA
Jeremias Moreira
Em
pé, no meio do magazine apinhado de gente pra lá e pra cá, Asen Kobackoff sentia-se
perdido. Percebeu a chegada do elevador, intuitivamente engrossou a fila e
entrou. O elevador logo encheu, pôs-se a subir e Asen ouviu a voz monocórdia e
automática do ascensorista anunciar as seções e os artigos correspondentes a
cada andar. Assim certificou-se de que roupa ficava no terceiro. Sentia-se
intimidado com o lugar, que achava requintado, acima do seu nível. Usava um
terno puído. O único que possuía. Trazia no bolso um recorte de jornal que
anunciava a grande liquidação do Mappin. Pediu adiantamento do salário para o
tio e ali estava para aproveitar a pechincha. Logo viu que se tratava de
engodo, pois os artigos de boa qualidade ostentavam preços normais, muito acima
das suas posses. As peças em liquidação eram pura carregação de baixa categoria.
Mesmo assim dispôs-se a provar um terno e ao olhar-se no espelho sentiu-se na
roupa de um defunto muito maior. Desistiu de qualquer compra e saiu da loja. Na
calçada voltou-se e admirou mais uma vez a fachada, que o impressionara. Imponente,
o nome Mappin cintilava em neon que se alternava nas cores do arco-íris. Pena
que a liquidação fosse fajuta. Essa palavra aprendera com o tio, que a repetia
toda hora quando praguejava contra algo, com seu sotaque carregado:
−
Alikat faiuto ou fethastura faiuto! – dizia.
Atravessou
a rua e quando se deu conta estava diante do Teatro Municipal. Parou,
contemplou o prédio e deixou-se voar pela recordação. Lembrou-se do Teatro
Stoyan Bachvarov, de Varna, sua cidade. Quando rapaz e com a cumplicidade do
tio Stelio, que era maquinista do Teatro, assistia aos ensaios da Sinfônica, da
cabine de força. Adorava música e lamentava não ter talento para nenhum
instrumento. O pensamento voou além e recordou-se dessa época em que era feliz,
antes da invasão da Bulgária. Logo depois aconteceu a prisão e a morte dos pais
e a sua saída atribulada como ajudante em um navio cargueiro rumo a Buenos
Ayres. As peripécias que teve que fazer para driblar a vigilância dos soldados
alemães, que ocupavam todo o Porto de Eximo, no Mar Negro. Temeroso com a SS o
comandante do navio não queria aceitá-lo. Ainda bem que contou com a
solidariedade da tripulação na tentativa de convencer o capitão. Em Buenos
Ayres trabalhou como ajudante de padeiro até conseguir fazer contato com o tio
Damyen, que era chaveiro em São Paulo. E fazia oito anos que estava por aqui e
que se tornara chaveiro também.
Quando
saiu da divagação viu-se sentado num banco, em meio às estátuas em homenagem a
obra de Carlos Gomes, na Praça Ramos de Azevedo. Admirou a pujança de Peri, que
domina a escadaria. De onde estava,
notou que a maioria das pessoas que desciam esfregava a mão no dedo do índio. Sorriu
ao perceber que o dedo apresentava um brilho que o restante da obra não tinha. Olhou
o relógio e viu que eram quase quatro da tarde. Programara para depois do
Mappin ir ao Cine Cairo, na Rua Formosa, onde passava o último sucesso do seu
ídolo John Wayne, o western Legião Invencível, dirigido por John Ford, e estava
na hora da seção.
Levantou-se
e caminhava em direção ao cinema quando foi interceptado por dois policiais e
uma mulher que o apontava como o homem que tentara lhe roubar a bolsa. Sem
entender direito o que acontecia protestou. Tentava desmentir. Mas, sua fala
era carregada de sotaque búlgaro e por isso não se fazia entender.
Principalmente quando tentou dizer que a mulher mentia e usou a expressão que o
tio usava a todo instante:
−
Muijer faiuto... muijer faiuto! –
repetia.
Foi
o estopim para a confusão. Ofendida, a mulher bateu-lhe com a bolsa. Os
policiais tentaram acalmar e fizeram Asen se calar, pois ele não parava de
repetir que a mulher era fajuta. A coisa piorou para ele quando um dos
policiais o revistou e encontrou uma chave micha.
Pronto,
foi o fim!
Todo
ladrão que se preza tem uma chave micha. Agora não restava dúvida, o sujeito
era ladrão. Foram todos para a delegacia.
Nervoso,
Asen tentava explicar, no seu minguado português, que era chaveiro. Deu o
telefone do tio, mas os policiais não quiseram saber. Até imputaram para sua
conta outros casos de roubos à residências que estavam em aberto. Num instante
Asen estava sendo responsabilizado por dezenas de furtos. Aquela chave micha
era a prova de tudo.
Foram
levados à presença do delegado. O delegado tinha aparência bastante jovem para
a função, mas demonstrava certa imponência e expressão severa. O policial fez
seu relato e a mulher confirmou:
− É seu delegado ele me ameaçou com uma
faca e disse que queria minha bolsa!
−
E a senhora entregou?
−
Não, eu corri!
−
E depois a senhora voltou com os
policiais e o homem continuava lá?
− Sim... Quer dizer... Parece que ele estava
indo embora.
−
E o homem que a ameaçou com uma faca não
tentou correr, nada? Deixou-se apanhar assim... Fácil... Fácil?
−
Acho que sim!
Asen
tentou interferir dizendo que era chaveiro, mas o delegado o interrompeu com um
gesto, depois se voltou para a mulher:
− E a
senhora tem certeza de que foi esse homem que está aqui presente que tentou
assaltá-la?
−
Tenho! Quer dizer... se parece com ele...
era alto assim, como ele!
−
E como foi que ele falou... repita quais
foram as palavras dele?
−
Bem... não sei exatamente... fiquei
assustada... mas, foi mais ou menos assim: “entrega sua bolsa senão eu te furo
com a minha faca!”.
−E foi assim que a senhora ouviu, sem sotaque?
– sem esperar a resposta o delegado virou-se para Asen e ordenou que ele repetisse
o que a mulher acabara de falar:
−Entreka siu bolza stão io vuz fuzar kom miu
faka. – disse Asen num esforço para tentar reproduzir a fala da mulher.
O
delegado fez uma pausa, olhou para todos, em seguida repreendeu a mulher. Alertou-a
sobre a imprudência em denunciar alguém sem ter certeza. Passou uma
descompostura nos policiais por serem negligentes e ordenou que soltassem Asen.
Asen
tratou de se mandar rapidinho. Quando se viu na rua, como desabafo, praguejou
baixinho:
−Muijer faiuto! Soltate faiuto!
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