DORMIR
E NÃO ACORDAR
Jeremias
Moreira
O som estridente do telefone me
tirou de um sono profundo. Havia dias que não dormia tão ferrado. O relógio
marcava 03:45. Atendi sem imaginar quem pudesse ser. Era Josias, meu irmão
caçula, de quem não tinha notícias há mais de cinco anos.
Desde que nossos pais faleceram num
acidente de carro, a família se debandou. Sara, a mais velha, casou-se com o
pastor da igreja presbiteriana, que frequentava, ficou na cidade. Quase não nos
vemos. Como sou agnóstico, esse distanciamento é até estimulado pelo meu
cunhado pastor. Também, desde que me formei e aceitei a proposta de um grande
escritório de advocacia, resido em São
Paulo. Aceitei esse emprego pela possibilidade que ele oferecia para que eu defendesse
tese de doutorado em Direito Comercial Internacional.
Quanto a Josias, abandonou a
faculdade de geologia e sumiu pelo mundo. Foi para o Pará trabalhar num
garimpo. Pelo menos foi de lá que recebi sua última correspondência. Depois,
perdemos contato. Todas as cartas que enviei, a seguir, voltaram com a rubrica
dos correios: “destinatário não
encontrado”.
− Estou morrendo! – foi o que
disse, de pronto, a pessoa.
− Quem está morrendo? – perguntei,
achando uma brincadeira de mau gosto, àquela hora.
− Sou eu, o Josias, Jacaré!
Ele era o único que me chamava
assim por causa de uma brincadeira que eu fazia com ele, quando criança ainda.
Também, nesse instante distingui sua voz. Ele havia chegado a São Paulo num voo
noturno e falava do aeroporto. Dei o endereço e pedi que ele viesse para casa.
Quase não o reconheci de tão magro.
Ele estava com um tumor cerebral. Meduloblastoma, um tipo de câncer que cresce
no cérebro. E já havia se espalhado por toda parte do Sistema Nervoso.
Nosso escritório atende uma Clínica
Oncológia, por isso consegui marcar uma consulta, para esse mesmo dia, com o especialista bambambam da Clínica. Com ele e
com o neurocirurgião. Meu irmão havia se tratado em Belém. Feito radio e
quimioterapia e mesmo assim o câncer retornara. E mais agressivo!
A consulta não resultou em nada.
Não havia o que ser feito. Ele ia morrer!
Talvez, por eu ser advogado do
escritório que atendia sua clínica, o oncologista abriu exceção, infringiu a
ética e sugeriu a medida humana de colocá-lo em estado de coma, que seria a
forma de evitar a dor. Josias topou. Disse que estava feliz por morrer ao meu
lado.
Olhei para ele e perguntei se tinha
certeza de que era isso que queria. Ele meneou a cabeça com movimentos rápidos
e contidos em sinal de afirmação, em substituição ao um sim verbal. Foi a
sinalização mais dolorida que alguém poderia fazer. Uma decisão sem retorno,
pois uma vez iniciado o processo de sedação, perderia contado com o mundo.
Seria como se a morte já se instalasse, pois jamais sairia daquele estado. Isto
é, sairia, mas para o estado da morte em definitivo.
Fiquei dez dias com meu irmão em
coma, na minha casa, com um serviço de homecare. Consegui uma licença no
escritório e fiquei todo tempo ao seu lado. Foi uma sensação muito estranha. Ali
estava meu irmão, eu o via respirar e ouvia seu coração, mas apenas seu corpo
estava ali. Ele, era como se já estivesse em outro mundo.
No décimo primeiro dia seu coração parou
de bater, ele deixou de respirar e o enfermeiro desligou os aparelhos!
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