ATÉ LÁ.
Mario
Augusto Machado Pinto
As
pessoas, em geral, não só dizem, provam que sou muito folgado. Eu acho que sou
mesmo, mas não é por vontade própria, não, é por inércia – mesmo sabendo que
vão acontecer, deixo as coisas pra lá, elas se ajeitam, é por preguiça - passando
subliminarmente a responsabilidade da resolução da contrariedade a terceiros. É
quando me faço de desamparado, de coitadinho, pois como sou muito estabanado
estão sempre me dizendo “Cuidado, quer ajuda?”. Tenho horror em mudar rotinas, coisas, fazê-las
diferentemente ou não fazê-las. Minha mulher diz que eu como porque a comida é
colocada à minha frente. Eu digo que como qualquer coisa: não como pedra porque
quebra os dentes. Enfim, na maior parte das vezes não me responsabilizo por
nada. Melhor, só me responsabilizo quando não há escapatória, mas mesmo aí,
grudo em alguém.
Também
dizem que sou demais de metódico. Isso é verdade, reconheço, sou mesmo, mas também
não é por vontade própria, é por preguiça mesmo. É mais fácil fazer o que se
conhece. Dá pra fazer de olhos fechados. Digo eu que a arrumação de minha
roupa, por exemplo, está disposta de tal maneira que a escolho de olhos
fechados. Faltou luz? “No problem”, sei exatamente onde está tudo em minha
casa. Não tem xabu, é tiro certo, não falha.
O
interessante é que sempre levei a vida assim. Tive discussões homéricas, caras
amarradas, restrições de amizade, brigas verbais e de fato, verdadeiras
epopeias de gritos com minha mulher, etc, etc, mas se por acaso mudava, em
algum tempo refazia o antigo, continuava na mesma. Eu nunca percebi as
contrariedades que causava, falava alto e na hora, não deixava pra depois. “O
cara é de morte, cuidado, ele te escracha!” aconselhavam os que conheciam o meu
jeitão.
Pois
é, como tudo tem um fim, ele chegou pra mim. Quer dizer, estou só, “solito em
la vida”.
Então,
reconheço que joguei muitas coisas nos ventiladores? Que o que chamava de meus
amigos, de minha turma, sumiu, acabou? Não.
Não é bem assim. A maior parte morreu, outros estão entrevados, alguns com a cabeça
girando nem sabem quem são e que estão vivos! Eu estou aqui começando a reconhecer
que estou velho – não, não sou velho, sou idoso, tenho mais de sessenta e ando
sem acompanhante, sem bengala! Tudo bem. Então qual o porquê da lamentação? Não é nada disso! Não percebeu?
Estou cansado da vida que levo e acho que não vale a pena o esforço pra mudar.
Veja, não consigo usar um celular, mas meu bisneto de seis anos consegue! Eu
não! Não é a Parkinson, é o meu fim chegando! Cara, veja! O impressionante é meus filhos e parentes e
outras pessoas não perceberem o esforço que me requer não deixar transparecer
meu envelhecimento. Estou como carro antigo: com brilho e beleza exterior de
chamar atenção –“como o senhor está bem, nem parece a idade que tem”. Até parece
poesia! Tão me chamando de velho! Quando ouço isso me seguro pra não dar aquela
sabida resposta. Agradeço com um sorriso amarelo dizendo – “Sou idoso, idoso!”
Vi
como estavam quando morreu a minha namoradinha, meu pai, meus amigões do peito
(eles não mais diziam isso), os colegas da faculdade, alguns parentes e soube
de outros. Vi minha mãe sumir, viver nas nuvens, mas não a vi falecer. Soube
que a mãe de uma amiga morreu à noite, nua,
na copa da casa! Não quero ficar de feições contraídas, boca aberta e com
“sororoca”. Gostaria de ir-me como Sócrates. Terei tanta coragem? Não sei, mas
vou tentar. Vou.
O fato é que preciso, quero ir-me. Não pega mais toda a baboseira que escolhi
como justificativa de muita coisa, inclusive minha existência. Agora sei que
meu mal é terminal, não tem desvio de rotatória nem volta. É assim mesmo! O quê é isso? Estou corajoso? Nada disso!
É.
É. É... Não sei, mas vou e já tenho planejado.
Veja
como sou: tenho a fazer rapidamente algumas coisas e para isso preciso deixar
de ser tão metódico. Vou fazer as coisas de modo a parecerem gozação. Assim, telefonei
e convidei amigos – os que restam? – e inimigos – ainda os há – para jantar
hoje aqui em casa. Ao chegarem entregarei a alguns uma carta em que pedirei
perdão pelos mal feitos, a outros agradecerei pelo bem que recebi. Sentado numa
bergére, estarei vestindo meu quimono japonês de seda – lindo de morrer - e
pedirei que façam o teste das palavras cruzadas que receberam. É obrigatório. Enquanto
dão tratos a bola, vou ao meu quarto e deito-me para me dar e receber minha última companheira, aquela que é super amor e fina.
Sinto
muito, mas minha mulher vai ter que desembarcar. Tadinha!
Quando
meus convidados perceberem já terei ido desta para melhor.
Ao
entrarem no quarto verão ao pé da cama um pergaminho em que escrevi:
“GRATO
POR TEREM VINDO.
VEREI
VOCÊS MUITO BREVEMENTE.
ATÉ
LÁ.”
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