Imprevisibilidades
Ises de
Almeida Abrahamsohn
Renzo estava cansado e, ao mesmo tempo, contente. Tinha conseguido
aquele contrato para restaurar as venezianas de uma casa do século XVIII em
Roma. Ultimamente os trabalhos estavam rareando mesmo para ele, exímio
marceneiro com prática de restauração. A rica burguesia estava economizando.
Dentro de minutos o trem chegaria à
estação de sua pequena cidade a apenas duas horas e meia da capital. Chegando
às dez da noite ainda pegaria o último ônibus para o seu bairro. Estava com
fome, mas decidiu não comer em casa para não acordar Cecília e as crianças que
àquela hora já estariam dormindo. Na estação deserta o modesto café já estava fechado.
Por sorte o mercadinho ao lado ainda estava aberto e o rapaz comprou um
daqueles sanduíches prontos de salame e queijo e um suco de laranja. Ao chegar
ao seu prédio já escurecera. Embora a
noite fosse de verão, as ruas do bairro ali, quase nos limites da cidade,
estavam vazias. No centro sim, haveria movimento nos muitos cafés e
restaurantes com suas mesas ao ar livre ocupadas pelos turistas e pelos jovens
em férias de verão. Subiu as escadas até o segundo andar. Silenciosamente,
despiu-se e lavou-se na pia mesmo. Amanhã tomaria banho. As janelas do pequeno
apartamento estavam abertas, mas o calor era intenso.
“Agosto era o pior mês. ̶ pensou o rapaz
̶ No próximo
ano, se Deus quiser, e se eu conseguir um novo contrato teremos ar
condicionado, pelo menos nos quartos Talvez até férias de duas semanas na praia
ou na montanha”.
Deu uma espiada no quarto das crianças. Mário, garoto magricela de sete anos, moreno como o pai, tinha arrancado a blusa do pijama e chutado o lençol. A pequena Gina de apenas três anos, apesar do calor estava agarrada ao seu urso, Orsolino Nico, como ela o chamava. Sem fazer ruído o pai deitou-se a ao lado de Cecília. Esta, sem acordar, esticou a mão como para se assegurar de sua chegada.
Adormeceu de imediato. Acordou com o empurrão e os gritos de Cecília: ̶ Renzo, acorde
o chão está tremendo! Vamos pegar as crianças e sair.
O lustre
balançava. Levantou-se de um salto. Cecília já tinha Gina no colo e Renzo, por
sua vez, agarrou Mário.
̶ Vamos para a
cozinha. Para debaixo da mesa. Mergulharam os quatro no espaço embaixo da mesa
de madeira. Todo o entorno se movia, a geladeira e os armários tombaram
despejando pratos, panelas, copos. As crianças choravam. O fogão tombou.
“Agora vai vazar
gás e morreremos asfixiados...” pensou Cecília aterrorizada. Renzo ouviu água
esguichando de um cano. De repente, um estrondo e sentiram que o chão cedia. ̶ Agarre as
pernas da mesa ! ̶ Gritou Renzo. ̶ Ela protegerá
nossas cabeças ! Caíram pelo buraco no chão enquanto as paredes ao redor desabaram
em blocos com insuportável estrondo e uma nuvem de poeira e cimento os
sufocava. Desmaiaram.
Renzo foi o primeiro a voltar a si. Atordoado, sentiu que algo o pressionava
nas costas. Ergueu o braço e a mão atingiu madeira. Lembrou então da mesa da
cozinha e do terremoto. Olhou em volta e percebeu a completa escuridão. Ouviu o
menino que gemia baixinho. Falou com ele:
̶ Mário, estou aqui, papá está
aqui. Está com dor? Acalme-se, vamos sair daqui. Sim, estamos no escuro, mas
não há o que fazer. Vou tentar encontrar mamma e Gina.
O menino tinha
uma das pernas presa sob algum escombro e sofria, mas não parecia estar muito
ferido. Renzo tentando controlar o pavor gritou no escuro: ̶ Cecília! Gina!
Nenhuma resposta. Renzo começou a tremer. “Estariam mortas?”. Resolveu se
deslocar para os lados para tatear aquele espaço cujos limites não enxergava.
Por fim conseguiu arrastar-se em uma direção até tocar com o braço uma parede, adiante
sentiu dois canos que deviam acompanhar alguma outra parede. “Devem ser de
esgoto e água”, pensou. Com esforço, rastejou na direção do seu braço esquerdo.
Havia escombros sobre o chão que lhe arranhavam braços e pernas, mas sentiu a
superfície lisa cerâmica sob o corpo e raciocinou que haviam caído no piso do
andar inferior. Havia algum espaço livre e, esticando o braço, sentiu o corpo
da mulher. Ao colocar a mão, primeiro sobre o peito de Cecília e depois sobre o
da filha, sentiu que respiravam. A garota estava abrigada no côncavo do corpo
da mãe. “Respiram, mas será que estão feridas?”
O filho
percebendo o que se passava passou a soluçar e a chorar alto. Renzo tornou a
gritar os nomes. As duas, a mãe, e em seguida a garota acordaram. Assim como o
marido, Cecília demorou algum tempo até se dar conta do acontecido e da
situação. Chamou pelo marido e filho na escuridão.
̶ Estão vivos ! Que
Deus nos ajude! Vamos sair daqui! Eu estou bem! Apenas me doem os braços e uma perna. Algo
deve ter batido contra elas. Vamos nos acalmar. A Gina está bem, só muito
assustada.
̶ Veja, Gina, o
Nico veio com você, conte uma história para ele. A mamãe vai tentar chegar até
o papi.
Cecília conseguiu se deslocar até o marido. Abraçou-o. Renzo chorava
baixinho. Permaneceram os dois, ouvindo abafados gritos e as primeiras sirenes.
Cecília e Renzo se revezavam acalmando as crianças e inventando histórias... De
repente, ouviram um toque de celular. Cecília rastejou na direção do som. Lá estava, tinha caído e
fora amortecido pelo Orsolino. Bendito Nico! Cecília atendeu. Com a voz firme disse: ̶ Estamos aqui,
somos quatro e estamos vivos no meio dos escombros . A casa desabou. O endereço
é Via della Città Nuova, 15.
Foram
retirados dos escombros às onze horas da
manhã.
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