DOMINUS VOBISCUM.
Mario
Augusto Machado Pinto
Domingo,
sol, calorzinho, céu azul de Brigadeiro. Raridade a aproveitar, dia pra sair
por aí sem destino. É o que faço andando devagar contemplando tudo ao meu redor
como a criança que chega ao novo quarto, aquele do apartamentão da vovó. Sou
morador do bairro há muitos anos, mas andei por aqui pouquíssimas vezes por
isso surpreendem-me o arvoredo cascudo e retorcido, novos edifícios por toda
parte, obras do Metrô, a quantidade de idosos passeando com seus cães ouvindo o
tratamento dado, o de verdadeiros parentes. Tudo isso é normal ver por quem
anda a pé. Eu ando de carro, garage ao escritório, garage ao apê. Vejo a igreja de São Alguma coisa – como é
possível não saber o nome certo? Atravesso a rua para ver sua frente. Entrada
dividida em duas – pra homem e pra mulher? Pensamento sem graça. Respeito,
respeito.
Vendo
as pessoas entrando me dá vontade de também entrar. Entro e viro bebê,
novamente de cabeça erguida como que buscando odores, agora esperto pela novidade,
mas nem tanto: lembro-me da capela do colégio. As mesmas coisas, imagens,
bancos, púlpito, quadros da Via Cruz, altar. O altar – como ficou de pequena
expressão. No colégio era enorme, chamava e concentrava toda nossa atenção... Só
há lugar pra ficar em pé, no fundão, quer dizer, perto da entrada.
Alguém
próximo avisa pra outro alguém que começou a missa. “Dominus vobiscum” diz o padre.
Começou. Respondem baixinho. “Et
cum spiritu tuum” - Lembro do colégio. Aí ouço a mesma voz dizer que “É de mau gosto, podia ser verde, o carmim dá
ideia errada... É. É. É.” “psiu, psiu”
é a resposta de várias vozes. Procuro e
encontro a comentarista: é tipo mulherão, bom pedaço. Vestida com o “olha eu aqui, gente!”, chama atenção -
Não mandaria pro Bispo - Menos, menos, comporte-se. Tá bom, é pertinente,
afinal, estou numa igreja. Silêncio...mas não por longo tempo.
—
É pro São Miguel Arcanjo... Não, é defensor da Igreja e dos Homens, é Príncipe
dos Anjos. O padre explicou.
Voltam
os psiu, psiu, Silêncio novamente.
Kyrie
Eleison – Christie Eleison. Santa Maria, Ora Pro Nobis Pecatoribus. Vou ouvindo
a ladainha e me lembrando... - Pace Domine ad omni pecat – Os coroinhas, as
campainhas tilim, tilim e o padre, Dominus Vobiscum... Et cum spiritu tuo
- E aí volta a repórter “Não, não
concordo. O padre tem que falar algumas coisas pro povão ficar de boca aberta..
Manter o mistério, entendeu?” Novamente
os psiu, psiu, só que desta vez mais numerosos, mas a repórter não está
nem aí.
Continua:
“Tá na Eucaristia. É, dar graças, é do grego Eucaristia. Claro, você é católica
da boca pra fora. Não sabe nada. Pera aí. Alguém tá me chamando. Desligo e
volto.” A repórter se afasta, mas fica no limite da entrada . “Oi Chica, tô
na missa... Você também? Onde? Tô vendo. Ao pé de Santo António. Você não
desiste... Depois conto. O cara tem o maior... Não, não é isso. Tem o maior bom
humor, é muito legal. Olha depois a gente se fala... mais baixinho. Tá. Vou falar
baixinho...Tchau.”
O
oficiante interrompe o rito no altar e dirige-se ao púlpito e inicia a leitura
do Evangelho. Fala sobre a multiplicação dos pães. Não há muita atenção; aqueles que praticam a
fé religiosa conhecem o assunto e, alguns outros, seu significado e o teor do
que vai ser dito. Apesar disso a atenção é respeitosa, mas alguém quebra o clima:
é ela comentando o bufê do casamento da Dani com o Tonico Caglia. Parece uma
matraca. Alguém olha pra trás e sapeca um “Senhora, vai lá pra fora e fale
quanto quiser, mas aqui CALA A BOCA!!!.” Murmúrios de todos os lados, alguns
educados, outros candentes, raivosos.
Foi
a maior confusão. Comentários mil e vaia do uhu, uhu, mas ela não se toca e sai
andando num passo de flamingo desfilando. Está noutra, no bufê, nos vestidos e
na cafonália. “Gente que ganhou dinheiro vendendo pizza na São Caetano. Nem foi
no Brás. Imagina! Nem percebem a gozação. A festa foi igual a aquela da Santa
Aquiropita! Só vendo.”
Bem,
ela saiu, mas o padre perdeu o fio da meada e resolveu acabar logo com a
prédica.
Agora
se faz silêncio. O ambiente parece eletrizado, energia unindo as pessoas em seu
recolhimento. Há o pigarro, a tosse, o pilim plim pim das campainhas. Dá pra se
concentrar no que representa. Todos sentem a solenidade do ato. A sagração. Os fiéis, mulheres em sua
maioria, dirigem-se à fila para tomar a comunhão e a cada um diz o celebrante “Eis
o corpo de Cristo”. É recebido com olhos
fechados como a relembrarem a figura e imagem do Redentor.
‘Oremus’,
o padre reza e nos convida a rezar. Terminada a oração diz “Per Christum
Dominum nostrum” . Amem, recebe como resposta. E nos diz “Ide em Paz” e nos
abençoa.
Viro-me
rapidamente para ver a mulher-repórter. Ali está. Chego e pergunto:
—
Quer tomar um sorvete?
—
Aceito, você é rápido, hein!
É
a resposta surpresa.
Idos
e já sentados ela pede ao garçom um
sorvete que deve ser algo fora do normal.
Pergunto:
—
Sorvete diferente do meu chocomalte. Como é?
—
Simples, três bolas de diferentes sabores vem numa base de hóstia encarapitadas
por um “gafanhoto”, um biscoitinho. É chamado Maná do Egito. Legal.
—
Simplesmente estranho, mas porque a hóstia? Volto eu.
—
Ora, ora, porque o maná tem miles de calorias. Engorda muito. Hóstia vem do grego, significa vítima. Na
missa, com culpa, é servido a vitima: o cordeiro de Deus. Aqui vou sacrificar o
cordeiro e comer, mas sem culpa.
A
explicação não me convence, mas a partir desse sorvete comemos outros
biscoitinhos; saboreamos sem culpa.
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