O
LADRÃO
Mario Augusto Machado Pinto.
Vigilante da Fazenda Juncal 3 e desde a
morte do Coronel Fagundes, segurança da sua viúva Dona Fabi. Faço a ronda da
sede e do bonito puxadinho que ela fez e que usa de vez em quando. As árvores,
o gramado e os canteiros de flores desse lugar são muito bem cuidados, dá gosto
ver. Há muitos passarinhos e o zumbido das abelhas é constante.
Dona Fabi é exigente, me trata muito bem,
confia no meu trabalho, mas tem seus cuidados. Colocou relógio de ponto de
vigia em vários lugares e controla meu trabalho todos os dias. No começo fiquei
chateado, mas agora aceito, é direito dela. Tudo bem, trabalho do mesmo jeito.
È hora de entrar na sede. O terração está
sujo de folhas, e pó, as cadeiras meio desconjuntadas e as almofadas rasgadas
pelas artes dos gatos e do cachorrão Pafunil. É uma pena. Mas, desde a morte do
coronel, Dona Fabi não se interessa muito pela casona.
Marco o ponto. O “nhéé” de quando abro a
porta me faz lembrar que preciso azeitar a mola, só um pouquinho, que Dona Fabi
quer ouvir o gemido, como ela chama. É noite de luar muito claro, mas vou
iluminando as salas e o corredor com a minha lanterna. Atento, escuto o “rim,
rim, rim” dos ratos, vejo o brilho vermelho amarronzado dos seus olhos. Fogem
na minha aproximação. O som de papel celofane amassado me diz que atacam os
ninhos das baratas. Entro nos quartos, verifico as janelas, espanto os gatos
dormitando na cama da patroa. Por onde
entram? Isso não deve acontecer. Preciso
verificar.
Vou andando, checando as portas. Um vulto
corta o corredor iluminado pelo luar. Grito PARE!
Corro, mas não é nada não. É a sombra de um galho da paineira dos fundos que se
move com seu balançar pelo vento. Mas, deu para sentir a barriga apertar e o
coração disparar. Saio por trás, e fecho a porta. Marco o relógio de ponto.
Pafunil chega perto, pula nas minhas pernas
abanando o rabo, lambe minha mão e vai para outro lado. Ando na direção do
puxadinho e dou uma volta ao seu redor. Marco o relógio. Fico parado aspirando
o perfume da vegetação. Passo as mãos nas folhas molhadas pelo orvalho, enxugo
na bunda da calça. No terracinho sento-me um pouco na cadeira das visitas
admirando a lua, as estrelas, milhares de olhos me vendo, me acompanhando junto
aos pirilampos que voam dançando ao redor das plantas. Não é preciso falar,
comentar. É só ver, admirar as surpresas do claro escuro. Eu acho o lugar mais
bonito em noite enluarada do que durante dia ensolarado.
Levanto-me da poltrona, tiro as botinas, fico
de meias e abro a porta no mais absoluto silêncio para não acordar Dona Fabi (mas,
ela sempre acorda) e entro na sala do puxadinho. Vou indo com muito cuidado
pelo corredor quando escuto gemidos. É, gemidos. Apresso meus passos. Os meus
ouvidos escutam todos os ruídos e sons abafados. Vêm de dentro do quarto. Abro
a porta lentamente e, estarrecido, vejo alguém apertando o pescoço da Dona Fabi
por trás. Minha barriga se contrai, tenho vontade de fazer xixi, meu corpo fica
molhado de suor. Vejo um braço subir e descer batendo no peito dela com uma
coisa na mão. É um facão, é um facão! Desgraçado,
para ou eu atiro! Não parou. Atirei. Ouvi seu grito e ao mesmo tempo senti
o facão rasgar o capote e atingir minha barriga. Agarra-me, esfaqueia meu corpo.
Parece um açougueiro cortando carne no balcão. Meu todo eu luta para ganhar da
dor que sobe e desce pelo meu corpo como raios elétricos, do peso nos meus
olhos que quase se fecham, da fraqueza das pernas que se dobram e me fazem cair
estendido no chão de tábuas sentindo o cheiro da cera que lhe dá brilho.
Ouço os gemidos do desgraçado. Imobilizo o
infeliz e tiro o facão da sua mão. Jogo longe.
Consigo rolar de lado e vejo sangue escorrendo
do corpo da Dona Fabi. Arrasto-me até a cama dela, puxo o lençol, enrolo e
pressiono no seu corpo. Grito chamando Pafunil. Vem. Que coisa! Parecendo entender o que acontece, vai para fora e late,
late, late sem parar. Escuto o tropel dos passos de gente chegando. Mil
palavrões, digo para cuidarem da patroa.
Pegam-me e carregam. Apaguei.
Acordei com mil dores e gente dizendo “fica calmo, tá tudo bem”. Percebo que
estou num hospital. Minha barriga dói muito, parece que levei uma marrada de
boi. Apaguei, acordei de novo e perguntei pela Dona Fabi. Disseram “Tá lutando, tá lutando, mas tá tudo bem”. Olhei
meu corpo: é tal e qual um terno alinhavado com tantos cortes e emendas
costuradas com linha preta. Passei a mão no rosto. Rasparam meu bigode!
Hoje, dia de visita, contaram que o médico
me fez dormir quase uma semana. Que Dona Fabi está vai não vai, mas parece que
conseguirá se safar desta. Que vou sair daqui vinte dias. Que o bandido morreu
do meu tiro. Que o delegado não vai me prender. E, que quando voltarmos o
pessoal da fazenda vai dar uma bruta festa para a Dona Fabi e para mim.
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