CUMPLICIDADE - M.luiza de C.Malina


CUMPLICIDADE
M.luiza de C.Malina


Cumplicidade no primeiro e puro amor. Cumplicidade no folhear das páginas de livros e cadernos. Cumplicidade nos ingênuos diários escondidos embaixo do travesseiro. Cumplicidade na escola. Cumplicidade na tão sonhada universidade. Cumplicidade no acreditar de companheiros, cumplicidade na falta dos estudos. Cumplicidade na mentira aos pais. Cumplicidade na instauração da desordem na secreta sociedade universitária. Cumplicidade muda de silêncio na morte de colegas. Cumplicidade no poder tudo, dos favores amontoados de trapaças juvenis. Cumplicidade, sem escrúpulos, em cargos. Cumplicidade no isolamento em paraíso fiscal. Cumplicidade de uma cumplicidade da cumplicidade que atormenta a quem não atou as mãos na ciranda da cumplicidade. Cumplicidade calada, surda e muda da justiça que a tudo presencia de olhos vendados na cumplicidade do Saber.

A HORA DO TERÇO - M.Luiza de C.Malina



A HORA DO TERÇO
M.Luiza de C.Malina

Leonor era uma mulher inteligente. O fino recato era demonstrado pelas longas saias justas de tecido pesado, que escondiam a bela silhueta.

O relógio de pulso, a preciosa joia, cronometrava a vida atribulada entre a profissão, aulas particulares,  idas frequentes à igreja, e afazeres juntos aos necessitados.

Em dias de fortes chuvas, um a um chegavam com seus sobretudos encharcados, mas sorridentes. Era o momento do recolhimento íntimo e pontual.

O sagrado horário das dezoito horas, horário da Ave-Maria, sempre aguardado com ansiedade. Momento em que reuniam-se os cinco irmãos, sintonizados na Rádio Nove de Julho. Tão metódica quanto a família, jamais atrasava este encontro religioso, com o chamado do sino nas seis badaladas.

Leonor era extrovertida e preocupava os irmãos com as constantes chegadas “em cima da hora”. Andava, como que, meio desavisada da vida.

Certa tarde, todos estavam ajoelhados, enlevados em semblante divino, oravam em voz alta, e lá pelas tantas, dentro da monotonia uníssona, o toque do telefone faz com que Leonor seja delatada em suas preocupações.

Troca a oração: ... “assim na terra como no telefone”...



Um dos meus tipos inesquecíveis - Fernando Braga


Um dos meus tipos inesquecíveis
Fernando Braga

No passado, costumava ler na Seleções Readers Digest, dentre os contos, aquele que era  chamado  ¨o meu tipo inesquecível¨. Durante o decorrer de nossas vidas, todos temos a lembrança de alguns personagens, que não esquecemos, apesar do longo tempo decorrido.

Na minha adolescência, era comum, os amigos, nos reunirmos no jardim central da cidade, onde, sentados nos bancos, trocávamos ideias, falávamos de nosso futuro, de filmes, de futebol e principalmente das meninas.

Em um banco de jardim, um pouco distante, sempre, lá estava ele, um mendigo, esfarrapado, judiado fisicamente, mas ainda moço, deitado no banco, com seu cão deitado no chão, um vira-lata grande, certamente mestiço de pastor alemão. Vivia ele dos pequenos trocados que os que por ali passavam, ocasionalmente, lhe davam. Quando ganhava um sanduíche, o que primeiro fazia, era repartir com o seu cachorro. A água, bebia ele e o cão, da torneira próxima. Quando alguém se aproximava dele, o cão se erguia, rosnava, mostrava os dentes e  Pinão tinha que afagá-lo e pedir para deitar-se.

Um dia, nos aproximamos e sentamo-nos no banco ao lado para trocar algumas palavras com Pinão, que, neste dia estava sóbrio ou meio sóbrio. Contou-nos um pouco de sua vida.

Disse:

— Sempre fui um pobre coitado

— Sempre fui um miserável

— Sempre precisei da ajuda dos outros

— Sempre morei na rua.

— Minha família, praticamente não existiu. Não conheci meus pais. Não tenho pais, irmãos, amigos e nunca tive mulher. Cheguei a trabalhar como ajudante de caminhão, mas após um acidente fiquei manco e sem condições. Nunca mais consegui emprego. Comecei a beber e a viver ao Deus dará.

Completou ele:

— Se sofrimento é comum entre os homens

— Se sofrimento existe para melhorarmos

— Se sofrimento é coisa de Deus para nos ensinar a viver

— O meu sofrimento começou faz tempo e não vai nunca terminar. São 38 anos de sofrimento!

Não tenho ninguém neste mundo, a não ser Capeta, este cão a meu lado, amigo fiel.

— Nunca tive um lar, faz anos que não deito em uma cama.

 — Nunca tive nada, nada, nada...Me chamam de bêbado e fogem de mim.

— Bebo porque sou muito infeliz. Quando peço uma ajuda, poucos dão e a maioria me manda ir trabalhar. Outros dizem que não ajudam bêbado.

Enfatizou:

— Bebo, porque sou muito infeliz

— Bebo porque não tenho nada melhor para fazer

— Bebo para esquecer que estou vivo. E hoje, não fico mais sem a cachaça, a mardita cachaça. Seja o que Deus quiser!

Continuou:

— Banho, tomo naquela fonte luminosa quando, bem tarde, a praça fica vazia. Parte do dia percorro as ruas e vou de casa em casa pedindo ajuda e às vezes me dão um prato de comida, que divido com Capeta. Consigo algo, mais frequente, nas casas mais pobres. Os ricos, nem abrem a porta para falar comigo.

Neste mesmo dia em estávamos conversando, aproximou-se um rapaz que deu a ele uma nota de vinte, muito dinheiro, mesmo para nós. Saímos todos juntos e perguntei por que ele havia dado tanto!

Ele ressaltou:

— Dei porque não vai me fazer falta e ele com 20 vai comprar tanta cachaça que vai se esquecer da vida!


Pouco tempo após, soubemos que Pinão havia falecido deitado no banco de jardim e que para se aproximarem dele tiveram que chamar o pelotão da polícia, para dominar o cachorro, que não deixava ninguém se aproximar do morto. Nunca me esqueci!!


O Ladrão, por Rolando Boldrin - Sr. Brasil 07/04/2013

"Confissão de Caboclo", por Rolando Boldrin - Sr. Brasil - 20/10/2012

EIS MINHA DEUSA! - Carlos Cedano


EIS MINHA DEUSA!
Carlos Cedano


Ela me dá ao acordar, todo o amor que contam seus olhos negros.

Ela me dá sua alegria de viver desenhada na suave cadência de seu andar.

Ela me dá a pureza de seu amor que denunciam os  gestos inocentes de seu rosto virginal. 

Ela me dá delicias de sabores nunca antes descritos e o néctar que a magia de suas mãos elabora gota a gota.

Ela me dá à noite, o fogo de seu corpo que ao encontro do meu se fundem, exalando aromas de essências jamais imaginadas.

Ela me dá a calma que no berço de seus braços,  me leva à paraísos nunca antes sonhados.
  
Ela me dá tudo o que lhe peço, e também... O que não lhe peço!

Eis minha Deusa!


Carro, Carro, e mais Carro - Vera Lambiasi



Carro, Carro, e mais Carro                                
 Vera Lambiasi

É só o que se fala nesta casa.

Carro para trabalhar.
Carro para ir à faculdade.
Carro para ir ao clube.
Carro para andar de skate.
Por que já não vai rolando?

Carro para comprar.
Carro para vender.
Carro para arrumar.
Carro para restaurar.
Aí está melhorando.

Carro para usar.
Carro para passear.
Carro para viajar.
Carro para fazer rallye.
Agora está chegando onde eu queria.

Carro para exposição.
Carro de enfeite.
Carro de decoração.
Carro pra ficar parado.
Que seja o do cliente.

Carro para lama.
Carro quatro por quatro.
Carro off-road.
Carro de expedição.

Estou pronta!

Dor - Mario Augusto Machado Pinto


DOR
Mario Augusto Machado Pinto


DOR traiçoeira, é assim que nos chega.

DOR presente que vem com a idade, depois da terceira, naquela fase do com DOR que deve soar como Condor, a ave.

DOR de cabeça que eu curo com Doril.

DOR de dente. Pra passar, só cortando a DOR com anestésico.

DOR nas costas que me faz dormitar e, depois, dormir no dormitório, não com a nave russa MIR, olhe lá, só com a DOR numa cama dorada. Forçou aí, hein?

DOR de dormir de dorso (o sô mineiro) que me dá aquela DOR dorsal.

Com a DOR io dormo tanto, tanto, que me chamam de dorminhoco. Ainda bem que não é de dorminhoca, já pensou?

DOR que resulta ficar dormente. Ela pensa que me engana com a dormência.

DOR que nos trazem e deixam ficar.

DOR que se compara com a dos outros.

DOR do amor que falta.

DOR final de perder alguém.

O dentista me diz que doravante vou ficar dorido.


Digo como perguntador: sendo ido onde fica a DOR?

Solidariedade na Anáfora - José Vicente J. de Camargo


Solidariedade na Anáfora
José Vicente J. de Camargo

             Solidariedade aos injustiçados, solidariedade aos doentes, solidariedade aos famintos e aos desprovidos de amigos.

             Solidariedade aos negros, aos índios e aos demais escravos que ainda hoje labutam.

             Solidariedade aos professores, solidariedade aos artistas, solidariedade aos trabalhadores e a todos aqueles que o povo eleva e sustenta.

             Solidariedade aos governantes, solidariedade a justiça que com esforço procuram a solidariedade empregar.

             Solidariedade à natureza, às florestas, aos animais, ao clima e aos outros insumos que o corpo nutre.

             Solidariedade aos pais que pela felicidade dos seus com sacrifício se doam.
             Solidariedade!


             É o apelo do mundo aos homens solidários com sua salvação.                          

A religião pode se tornar um vício? - Fernando Braga



A religião pode se tornar um vício?
Fernando Braga

 Era um casal, aparentemente bem formado, com duas filhas pequenas. Ela, uma moça bonita, prendada, inteligente, fisioterapeuta, pai com posse.  Ele um rapaz bem apessoado, com uma fábrica de ventiladores, herdada do pai. Moravam em uma casa, no interior.

 Ela havia sido escolada por sua mãe desde pequena e sempre rezava o seu tercinho, mas ele não havia recebido instruções religiosas de sua família. Ocasionalmente iam à missa, como a grande maioria católica deste país. O rapaz, Serginho, era pouco comunicativo, mas sem dúvida um bom pai, bom marido e admirava seu sogro e sogra, que eram católicos bem praticantes, principalmente ela. A sogra era igualmente pouco comunicativa, que mais ouvia do que falava, mas convicta na religião, dizendo sempre que Cristo estava acima de tudo.

Pertenciam a um grupo religioso, com umas oitenta pessoas, que com certa frequência se reuniam em sistema de retiro espiritual, em uma fazenda de propriedade da família, próxima à cidade grande e discutiam religião. Convidavam padres para fazerem preleções sobre temas religiosos. Para um leigo, que assistisse a estes encontros, havia certo fanatismo. Serginho, que no começo era desligado desta matéria, passou aos poucos a interessar-se, a participar da organização destes encontros, tornou-se um grande amigo de um dos padres, na realidade o pároco de uma igreja, em um dos bairros da cidade. 

Passou a devotar-se mais e mais à religião, ir à missa quase diariamente, ler livros religiosos e vida dos santos, a falar sempre de Cristo, Nossa Senhora, enfim começou a descobrir a religião, começou a santificar-se. Após pouco tempo, estava tão enfronhado em suas ideias religiosas, que achava que fora da religião não havia beleza, alegria, vida. Passou a dedicar maior tempo à religião, a ajudar o padre, seu amigo, em missas, onde cumpria funções bem maiores que as de um simples coroinha. Sua vida mudou completamente, tornou-se outra pessoa, mais quieto, mais introspectivo, mais sisudo, menos brincalhão, mesmo com as filhas. O que acontecia em sua casa ninguém sabia, uma vez que sua esposa nada comentava, nem com os próprios pais. Neste período, muitos que iam à igreja, em que aquele padre fazia as pregações, puderam ver a presença de Serginho, auxiliando a missa. Usava uma roupa escura, com um grande crucifixo pendurado no pescoço, as mãos cruzadas sobre o peito, faces séria, olhar impenetrável e dirigido sempre para o alto, tão concentrado que não percebia a presença de pessoas conhecidas. Parecia estar recebendo o Espírito Santo, tão concentrado que, aparentemente, ficava. O comentário era de que ele provavelmente estava querendo virar padre! Estranho, muito estranho!

Pouco tempo após, sua esposa foi até a casa dos pais e chorando disse que Serginho havia pedido a separação. Disse que ele a criticava muito, por ela não segui-lo em suas orações, ajuda aos pobres, atividades na igreja e outras coisas mais. Também, que ele não mais a procurava! Frente a tal pedido, ela havia o expulsado de casa, pedindo que não voltasse. Seus pais ficaram possessos, não querendo mais vê-lo, mas ao mesmo tempo sentindo-se culpados, por tê-lo iniciado, propiciado o ambiente de religiosidade, que o havia transtornado.

 Dias após, Serginho voltou à sua casa, batendo à porta, portando um buque de rosas vermelhas nas mãos. Sua mulher abrindo a porta ficou surpresa com sua presença. Ele logo falou:- estas rosas eu trouxe para Nossa Senhora, que está em nossa sala. Pediu para entrar, perguntou pelas filhas e afirmou que não iria voltar para casa. Ela disse que os advogados já estavam preparando os papeis para a separação definitiva e que as crianças ficariam sob sua posse. Ele poderia, evidentemente, vê-las quando quisesse. Quando ia se retirar, ela pediu que ele levasse a Nossa Senhora e os outros santos que lá estavam. Ele disse estar morando em uma casa habitada pelos padres e que estava feliz, pois agora estava mais próximo de cristo.


Os que tomaram conhecimento deste caso achavam que, após esta separação, ele iria solicitar uma autorização papal ou cardinalícia para poder tornar-se um padre. Na realidade, ele decidiu que havia finalmente descoberto a sua vocação, sua finalidade de vida. Conseguiu permissão para ir para um seminário e após três anos tornou-se um padre, hoje vivendo em uma pequena cidade nordestina, onde é o pároco de uma igreja. Tudo o que se passou pela cabeça deste rapaz, é difícil de ser analisado. Abandonar tudo, a própria família, em busca de uma vocação religiosa! 

Fome - Vera Lambiasi


Fome                                                                  
Vera Lambiasi


Fome de leite. Fome de comida. Fome de arroz com feijão. Fome de bife com batata.
Fome do saudável. Fome de salada e verdura cozida. Fome de fruta.
Fome de educação. Fome de cultura e estudo.
Fome de moradia. Fome de casa e lar.
Fome de transporte. Fome de ônibus e trem.
Fome de saúde. Fome de exercício e esporte. Fome de hospital.
Fome de trabalho. Fome de emprego e respeito.
Fome de dinheiro. Fome de dignidade.

Fome de vida!

MULHER RELIGIOSA QUER MUDAR DE VIDA - Oswaldo Romano


MULHER RELIGIOSA QUER MUDAR DE VIDA
Oswaldo Romano      
                                                        
                Dirce era uma criança que demonstrava extrema calma. Crescendo encontrou na igreja o espaço certo para meditar, fazer novas amigas, rezar e estudar os seus ensinamentos.

        Assim permaneceu durante alguns anos. Estava contente, porem não tinha receita para seu sustento. Apelou para os Salmos que lhe indicassem um caminho digno. Foi-se abrindo um novo horizonte e nele encontrou a forma de, sem abandonar totalmente a igreja, ganhar seu sustento.

        Debruçou-se sobre alguns ensinamentos, como:

        “Tira a minha alma da prisão, para que louve o teu nome; os justos me rodearão, pois me fizeste bem.”   

        “E vê se há em mim    algum caminho mau, e guia-me...”   

Dirce, na reza descarregava os segredos que guardava na adolescência. E apoiava-se nestas palavras:

        “Bem aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado”

Então descobriu que não fugindo das suas virtudes, poderia viver melhor: 

Aceitou o convite de uma amiga para que preenchesse o lugar de outra que havia falecido. Só tinha que registrar-se na Agencia.

        O anúncio da empresa era: Uma agência com vasta experiência em exportação para o além. Você entra com o defunto e nós com os acompanhamentos.

        Iria continuar rezando, mas agora tinha que também chorar. Vestir-se de preto. Choraria muito! Seria chamada de carpideira. Seus colegas homens de trabalho seriam os farricocos. Rápido aprenderia elegia no murmúrio e elegíaco, sua principal função.

        Sua colega explicava: —  Tem funeral que nossa agencia serve também os comes e bebes. Nossa profissão existe há mais de 2000 anos antes de Cristo. O choro compulsivo leva o mesmo aos presentes.

         É tanta a emoção que chegamos até beijar o defunto. Vale o esforço, o salário é bom.

        — Tá bem amiga, mas fico com o padre Bruno da igreja.

        

DNA caboclo - José Vicente J. de Camargo


DNA caboclo
José Vicente Jardim de Camargo



O galo carijó cantava pontualmente todas as manhãs antes do raiar do dia. Raimundo, como se fizesse parte da ária do alvorecer,  pulava da cama já pensando no acender do fogão a lenha, no triturar dos grãos de café e na bebida quente e fumegante, passada no coador de algodão.

Sinhá, de corpo rígido e porte altivo, acompanhava o marido no despertar com o galo e ia logo acordar a filharada amontoada no segundo quarto da casinha de parede e chão de barro batido, que terminava na cozinha estendida com o puxadinho dos fundos.

Depois do asseio de bacia e caneca de alumínio na bica do poço, ia preparar a massa do biju e por a mandioca a cozinhar, que junto com o açúcar preto e o mel silvestre, era a base alimentar da família.

Raimundo, já sabendo do alvoroço da filharada em pé junto ao fogão e ao redor da pequena mesa, tomava antes em paz seu café preto, intercalado com as baforadas do cigarro de palha de fumo de corda, que o obrigava a pigarrear seguidas vezes pra desgosto de Sinhá.

Terminado o ritual, de facão na cintura e enxadão nas costas, recebia da mulher a marmita com a mandioca cozida, o biju e a inseparável garrafinha de café que o mantinha disposto pra labuta árdua na roça de milho, mandioca e feijão.

Da colheita, quase sempre mais fraca que farta, tirava o consumo da família e o que restava levava a feira dos domingos na Vila de São João onde trocava por outros alimentos e recebia de sobra alguns trocados para quitar a conta da caderneta na venda do seu Anselmo. Como nunca sobrava troco, abria nova conta fiada iniciando com a branquinha e o fumo de corda.

Foi num destes domingos que Raimundo, se intrometendo na conversa do compadre com outros feirantes, escutou pela primeira vez falar do tal exame de DNA que inicialmente pensou ser alguma meretriz da zona, já que a conversa era sobre quem seria o pai da criança...

Foi então que a sós com o compadre, ficou sabendo do que se tratava. Achou coisa do diabo, que jamais imaginara pudesse existir. São progressos da ciência, comentou o compadre.

No caminho de volta a casa, pensava se esse tal exame não pudesse esclarecer uma dúvida que tinha desde há muito tempo.

Seu filho caçula nascera com os olhinhos apertados e puxados para os lados, coisa que nos demais da prole não vingou. Preocupado que pudesse ser alguma doença, foi logo acalmado por Sinhá, que lhe disse ser algo de recém nascido e que com a idade o distorcido se consertaria por si só.

 Além do mais, a benzedeira da Vila lhe informou que o distúrbio se deu durante a prenhes e pela influência dela ter olhado muito para algum japonês. E, justamente neste período, ela ia quase todos os dias na horta do Keiko buscar verduras amanhecidas e folhas de ervas, boas para o chá de matar lombrigas que dava para os filhos mais velhos.

Raimundo se deu por satisfeito com a explicação da mulher, mas sempre que olhava o pequeno que ia crescendo, e nada do olho endireitar, lhe vinha novamente aquela pergunta a lhe atormentar por qual diabo de antepassado o raio do moleque puxou...

Sim, estava resolvido!

No próximo domingo levaria consigo a filharada toda na feira com o pretexto de ajuda-lo. Lá chegando, iria só com o menor para a Santa Casa onde o compadre lhe disse que se faz o tal exame.

Mas, e se o exame der positivo?

Que atitude vai tomar?

Uma de cabra macho e abandonar o moleque na mata cerrada da Serra da Canastra ou entrega-lo pro padre Bento para adoção, talvez por alguém da capital ou mesmo do exterior?

E Sinhá, como reagiria? Certamente iria querer sair de casa com o resto da prole, mas para onde? E viveriam como?

E ele, amaldiçoado por toda a família que trata o pequeno com o maior xodó justamente pelos olhinhos puxados, passaria a viver sozinho?

Com certeza cairia na pinga e passaria os dias no boteco do Anselmo a pedir esmolas pra curtir o vicio danado.

Neste pensa-pensa chega ao portãozinho caído da casa e logo a criançada em polvorosa se põe a gritar se trouxe os pirulitos prometidos e, dentre eles, o chinesinho, como os irmãos carinhosamente o apelidaram, se atira no colo do pai e lhe dá um beijo de estalar a bochecha.

Raimundo se recupera do estupor dos pensamentos e, do calor do abraço, lhe escapa uma lágrima que lhe renova as forças do viver e lhe arranca do peito a dúvida atormentadora.

Sinhá saindo a porta, chama todos pro rango preparado com esmero com o pouco de sempre.


Raimundo se apruma, levanta a cabeça, e com orgulho de pai manda o tal de DNA e todos os progressos da ciência tomar naquele lugar...

Lançamento do livro SEMPRE 20 ANOS - Suzana da Cunha Lima

Dia 27 de setembro - 17 horas - no Clube Alto dos Pinheiros
Estaremos lá!


UM BICHO DA TERRA TÃO PEQUENO - Mario Augusto Machado Pinto.




UM BICHO DA TERRA TÃO PEQUENO
Mario Augusto Machado Pinto.


Outro dia ao ver uma foto lembrei-me da importância dos OS LUSÍADAS da nossa juventude. Tão difícil de decorar ou analisar nas aulas da matéria Português, e objeto de gozações e risadas entre nós jovens. Ainda nos lembramos. Mas, os de hoje após,  lembrarão?

As armas e os barões assinalados
Que da ocidental praia lusitana
..............................................

Inusitada disposição dos rochedos no mar - objeto da foto - deu-me visão imaginativa de uma frota de naus, da época dos descobrimentos, navegando ao largo de costa marítima. Vi imagens, com clareza a sua disposição. Aos marujos falei, contei coisas, ouvi suas vozes alegres, tristes por vezes. Admirável mundo aquele! Para lá me transportei sabendo da fugaz permanência. Senti, falei, ri e chorei.  Fiz-me participe da ocasião, do local e da cena imponente que inusitada e aproveitando versos do vate mór na sua epopeia imaginei-me a descrever o fato ali passado.

Já no largo oceano navegavam
As inquietas ondas apartando
............................................

Vi as pedras como naus que navegavam em linha, relâmpagos e estrondos anunciando seu valor e poderio num verdadeiro desfile naval. Capitanea à frente, seguida pelas demais, passando ao largo do enorme rochedo em cuja parede enxerguei as figuras da gente local vestida de branco, algumas de peito nú, cavalos, elefante, corujas, velhos acenando e o chefe que, todo de preto, em seu trono sentado dizia a seu povo:

Na viagem tendo passado tão ásperos perigos,
Tanto furor de ventos inimigos
Que sejam, determina, agasalhados
Nesta costa africana como amigos.

Alimentadas pela imaginação voam as imagens, as palavras incompreendidas formam as falas ouvidas por toda a gente com prazer estampado nas faces. A sorrir se olham e se perguntam tal gente a que aqui veio? 
A gente se alboroça e de alegria
Não sabe mais do que olhar a causa dela.
Que gente será esta, em si diziam,
Que costumes, que lei, que Rei teriam?

O acolhimento aos navegantes é imediato, fraterno, a curiosidade qual voluta paira no ar. Tudo é festa, alegria e prazer apesar de contido.

Comendo alegremente perguntavam
Pela Arabia língua, donde vinham,
Quem eram, de que terra, que buscavam
De que partes do mar corrido tinham.
Os fortes Lusitanos lhes tornavam,
As discretas respostas que convinham:
Os Portugueses somos do Ocidente,
Imos buscando as terras do Oriente.


Permanecem comendo, bebendo e cantando até o fim do dia.

Nisto Febo nas águas encerrou
Co ´o carro de cristal o claro dia,
Dando cargo à irmã, que aluminasse
O largo mundo enquanto repousasse.

Ali ficam em festas e conversas por dias e noites, sempre contentes e alegres. Já se entendem e trocam ideias e informações sobre o que cada um sabe do pretendido caminho. 

Alguma falha paira no ar: para os Lusitanos nem tudo são flores e perfumes.

É preciso ir.

Na partida o chefe Lusitano recebe mensagem:
O recado que trazem é de amigos
Mas debaixo o veneno vem coberto;
Que os pensamentos eram de inimigos
Segundo foi o engano descoberto.
Ó grandes e gravíssimos perigos!
Ó caminho da vida, nunca certo;
Que aonde a gente põe a sua esperança,
Tenha a vida tão pouca segurança.

Corações apertados se ajustam contra as surpresas que anteveem. Assim preparados partem rumo ao desconhecido. Atormentados com o que imaginam poderão enfrentar clamam aos deuses por proteção.

No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco Lusitano
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno.



O apito - Oswaldo Romano


O APITO
Oswaldo Romano         
                                                     
        A Estação da Companhia Paulista de Estrada de Ferro situada no município de Mineiros, ficava alguns quilômetros distante da cidade. Os engenheiros ingleses previam breve aumento do povoado.

        O maquinista Everaldo era metódico. Não tolerava atraso. Sempre pontual, parava a composição duas vezes por dia nessa cidade. Indiretamente, era aplicado e com isso acertava a maioria dos relógios do povo com seu estridente apito. O sacristão que era seu primo tinha trabalhado como foguista na mesma composição. Era lembrado e se mantinha vivo na lembrança do maquinista, toda vez que chegava à cidade. O apito era seu cumprimento.

        Isso porque sabia que não só a população, mas o primo sacristão também acertava o relógio da torre da matriz.

        O apito era esperado e quando vinha, vinha chorado, um choro alegre.

        Um dia, no momento aguardado, faltou aquele som, ao longe só silêncio. Alertada, a atenção do povo, voltou-se na direção da estação. A pergunta era uma só:

        — Meu Deus! O que teria acontecido?

        Foi quando o automóvel do Seu Evaristo, o mais requisitado para ir à estação, graças ao suporte de malas na traseira,  foi imediatamente acionado e disputado. Outros a pé, a cavalo ou com o que tinham, corriam para a estação.
Na plataforma, a mesma que servia para passeio dos namorados, agora muita agitação e choro. O telegrafista informava que sim, e insistia no sim, a composição havia saído de Jaú no horário. Estava abastecida.  Lenha, agua, areia, tudo conferido. Partiu com o mangote volante checado.

        O maquinista Everardo, tido como o mais cauteloso, não foi feliz nesse dia. Ele não contava com o animal que furou a cerca e se pôs na frente da composição. Seus freios gemeram tão alto que foi ouvido no começo da cidade. O limpa-trilhos dilacerou o pobre animal que foi engolido pelas pesadas ferragens. Um vagão descarrilhou.

        Esse dia foi triste para Everardo.

Foi a primeira vez.


Na torre da matriz, o sacristão seu primo, esperava o apito que não veio. Ficou com o gorjear dos pombos que ali faziam seus ninhos.

Vida de Ferroviário - Vera Lambiasi


Vida de Ferroviário                                                                              
Vera Lambiasi


Everaldo fazia a linha turística Tiradentes-São João Del Rey duas vezes por dia.
Dos seus áureos tempos de maquinista, fora o que sobrara para sua função de dedicado homem das ferrovias.

O Brasil já não era mais o país das glamourosas viagens de trem, e a família penava com a condição financeira do chefe.

Viviam em Bixinho, cidadezinha vizinha a Tiradentes, e sua esposa era artesã de Espíritos Santos e Namoradeiras. Seus filhos, adolescentes atléticos, acompanhavam turistas em caminhadas na Serra de São José.

Everaldo pingava com seu soldo, no final do mês.

Saúde debilitada, já não aproveitava o passeio, apenas ia, e voltava.

Respondia, desanimado, às perguntas das crianças em excursões. Aquilo tudo já não o encantava mais.

Numa tarde quente, vindo de São João, Everaldo caiu na escada que levava ao vagão de passageiros. Suas curtas pernas não alcançaram o topo. Despencou, para ser acudido pelos transeuntes.

De ambulância, foi levado ao hospital.

E, de carro fúnebre, após 3 dias,  ao cemitério.