Caçador
de Leões
José Vicente Camargo
Quando cheguei na aldeia dos
Misanis, incrustada num dos poucos verdes restantes da Savana Central de
Botsuana, o desespero já tomava conta do ambiente. No meio de uma roda de
aldeões, uma mulher alta e magra – características físicas dos habitantes da tribo
– lamentava em prantos:
“Íamos nós duas, Tayqui e eu, buscar água no
poço. Quando terminamos de atravessar o campinho e entramos na savana, do nada,
nos pula em cima aquele monstro mostrando seus dentes afiados saltando da boca
enorme e sua juba abraçando o ar quente. O susto me travou as pernas e só o
baque do monstro sobre Tayqui me deu forças pra disparar de volta segurando nos
dedos a criança que ela, de última hora, me atirou. Ainda ouvi seu grito de
horror misturado com o rugido da fera”.
Impressionado pela dor do lamento, me recebe o
chefe da tribo que me mandou chamar e diz com voz embargada:
− A vítima esfacelada pelo desgraçado era
minha filha mais velha, que agora só a teremos na criança salva. Dela nada
sobrou, somente um rastro de sangue indicando que a fera a levou para seu grupo
na gruta da montanha. Já faz algumas semanas que estamos notando vestígios de
leões pelos arredores. Dado a estiagem brava que acarreta a diminuição de
animais pastando, eles vêm se aproximando da aldeia. Duas de nossas cabras já
foram estraçalhadas mas hoje foi o primeiro ataque a humanos. Por isso mandei
te chamar, como exímio caçador que és, para dar cabo dessa besta demoníaca. Sendo
o grupo pequeno, ele é o único macho e quando o matares, traga sua cabeça jubada
para expô-la na aldeia em homenagem a Tayqui.
Antes do cair da noite parti a pé, em
companhia do viúvo de Tayqui que jurara dar ao monstro uma morte tão violenta
quanto a que tirara a vida da sua amada de tão pouco, mas intenso amor, que
frutou na criança ora chorando a falta da mãe querida. Ele puxava uma corda que
enlaçava uma cabra gorda que seria o miolo da vingança. Outros caçadores da
aldeia se ofereceram à caçada, mas recusei dado que a fera é astuta e desconfia
de longe do cheiro e da presença de estranhos. Quando estávamos a alguns
quilômetros da aldeia, amarramos a isca num tronco de árvore. Após sangrá-la
com um corte na anca, suficiente para que o sangue, misturado ao ar, agisse
como excitante às narinas da pressa, nos escondemos na relva mais alta tendo a
mão meu rifle de caça e ele sua lança de lâmina envenenada com o que, desde
jovem, aprendera a trazer, cada vez mais, a comida da família. Mesmo a fera tendo
atacado Tayqui naquela manhã, a refeição não foi suficiente para todo o grupo, ao
contrário, aumentou o apetite e a ansiedade de devorar mais. O ar sangrento, acrescentado
pelos balidos da cabra, o atrairiam à morte vingativa. Nossos olhos miravam
ansiosos na direção da gruta amaldiçoada e ao anoitecer, após os primeiros pios
das corujas e junto com o uivar dos lobos e das hienas, os “mées” da cabra se
puseram mais angustiados, sinal de que o monstro estaria por perto. Me pus em
posição de tiro e meu companheiro apertou seus músculos rígidos à lança com
mais força...
Apesar de já ter participado
de várias caçadas a animais ferozes na espera do ataque, não consigo me livrar
do susto inicial quando a besta salta do silêncio da emboscada para o pulo mortífero.
E, desta vez, dado ao corpanzil avantajado do bicho, minha reação, apesar de um
tanto lerda, foi certeira. O calibre doze encontrou seu pescoço bem na jugular fazendo-o
bambolear mesmo antes de esmagar o cangote da cabra. Ainda se espremendo pela
terra vermelha, procurando forças para fugir, meu companheiro lhe arremessa o
dardo envenenado gritando em brado de guerra “Tayqui, Tayqui” ...
Um corredor de aldeões, de
crianças a idosos, de fracos a guerreiros, adornados de berloques, pingentes e
flores que homenageiam o deus da justiça e da vida nos espera em frente a
aldeia. Meu parceiro e viúvo vingado, entrega ao cacique, colgado em sua lança,
a cabeça pendente da fera abatida, expondo os dentes sangrentos. Ao seu filho
acaricia com um boneco de palha ornado com a juba dourada e macia...
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