COMITIVA
MÁRIO AUGUSTO MACHADO PINTO.
Além do barulho da sala da redação, meu
telefone de mesa toca sem cessar. Atendo para dizer que não me chamem mais, mas
a telefonista diz que é o Sr. Jonas, da
Cajuru. Aí não tive jeito. Atendi o amigo de tantos papos:
— Como vai? E ele responde: Voando, e você?
Digo: Tocando a vida. Segundos depois ele convida pra irmos ao bar da esquina
bebericar cervejas e recordações.
Depois de abraços, notícias das famílias,
cerveja gelada, bolinhos de bacalhau quentinhos, refestelados nas cadeiras,
pergunto: Então, o que manda? Ele
pergunta se quero escrever um pequeno folheto sobre as festas e concursos de
bandas de rock que faziam na Subiru.
Respondi que tudo bem, mas que pra fazer isso
precisava começar do começo mesmo, com alguns fatos comuns, mas que pertencem
ao contexto. Concordou e comentou que mesmo depois de tantos anos ainda não
sabia como eu tinha dado com os costados na Cajuru. Considerava importante essa
ocasião.
Avisei que a estória era simples, curta e a exponho
resumidamente:
Recém-admitido na revista Rural fui chamado à
sala do editor chefe e designado para fazer uma reportagem sobre pecuária, pois
o preço do boi em pé estava subindo.
Realizei alguns telefonemas para amigos, e
meu amigão Google. Consegui tudo, inclusive do meu pai que deu indicação de uma
fazenda. Imagina só: era de um juiz aposentado, velho amigo dele. Podia ir sossegado.
Já haviam combinado. Telefonei pra fazenda. Avisei o horário em que estava indo,
e fui.
Mal cheguei e na mesma hora embarquei no
avião deles. Nome do destino: Cajuru. O voo foi curto, 45 minutos. Pousamos perto
do terraço do casarão tipo colonial, bem cuidado.
Na sala estava posta mesa com café e bolo de
fubá.
Do salão vi o Dr. Afonso chegar e pular da
sela feitou moleque. O cara tem 79 anos e aparenta uns sessenta, e isso mesmo
por causa das rugas provocadas pelo sol torrador da região. Lembra muito o meu
amigo Braga. Dá um abraço tipo quebra-molas e aperto de mão de estalar os dedos.
Vendo o trejeito do meu rosto desculpou-se dizendo que não se lembrou que eu era
da cidade.
Tomamos uma pinguinha não esquecendo a do
santo. Comemos bastante e conversamos longamente e lembrou da amizade com meu
pai desde a Faculdade. Colocaria um funcionário à minha disposição lembrando
que no dia seguinte haveria manejo e o inicio do transporte de uma boiada. Iria
a Cuiabá esperando voltar antes de eu partir,
No dia seguinte, recebi o funcionário que
seria a minha sombra, o Cencio, boiadeiro e tropeiro dos mais antigos, ajudante
pessoal e de total confiança do Dr. Afonso que me explicou o trabalho na
fazenda, a criação, manejo e transporte do gado. Foi quando eu disse que queria
saber da “comitiva”.
—Tá
bão, respondeu e explicou que a “comitiva” é composta de peões de boiadeiros
responsáveis pelo transporte nos estradões e salvaguarda do gado. Tem o comissário, chefe da comitiva; o
ponteiro, que conhece o caminho, vai na frente e toca o berrante pro gado e pra
orientar os peões; os rebatedores que evitam o gado desgarrar; os pe[oes da
culatra manca, pra cuidar do andar do gado ferido ou doente e o. por último e
muito importante, os cozinheiros que faz nossa comida na chapa. Eles inventaram
o arroz de carreteiro e o macarrão tropeiro. A carne é assada no folhão.
Ai,
então, perguntei sobre a comitiva de amanhã:
— Há
uns dias passados prometi a mim mesmo que esta seria a minha última, mais ou
menos. A Cajuru é a preferida do Dr. Fonsim. Fico mais aqui cuidando das
coisas. É que aqui na Cajuru eu trabalho e na Subiru eu me divirto; então tenho
que acompanhar. Já viu que não vou cumprir a promessa, né? Amanhã o destino é a
Subiru onde os netos do Dr. Fonsim aproveitam
o planalto pra promover torneios e shows. Não gosto. É uma barulheira de uma
moçada enorme, centenas pagando um
dinheirão; vem gente até do estrangeiro; dá gosto ver como tudo é bem
organizado. Tóxico? Nem pensar. Descoberto vai preso na hora!
Bem, participei da “comitiva” sem nenhuma
ajuda ou preferência.
Voltei para São Paulo antes do Dr. Afonso,
mas deixei meus agradecimentos por escrito. Lembra-se? Vocês, netos reuniram a
banda Ximbó e tocaram na minha despedida enquanto o avião taxiava pra me levar
de volta. O encarte do jornal com o meu relato foi muito elogiado e o meu original
quase totalmente transcrito.
Aproveitei para perguntar: Como vão esses
dois velhotes amigos? Ainda são unha e carne?
Notei que o Jonas deu pequeno sinal de
desconforto. Muito sério respondeu que tinha pra contar uma estória delicada e
triste ao mesmo tempo. Apreensivo, deixei-o à vontade pra contar:
— Depois
que você voltou pra São Paulo, fizemos várias comitivas. O Cêncio que já havia
dito que não queria mais participar, passou a mostrar que ainda gostava de
acompanhar as comitivas, lembra-se? Todo mundo ficou contente, mas desconfiado
porque o que ele mais gostava era ir à
Subiru. Ali ele demonstrava grande alegria principalmente quando tinha a Mari
como par na roda dos bailes e se pavoneava do fato. Todo mundo estava curioso
pra saber a causa. Tudo ficou claro quando os dois – Mari e Cencio – anunciaram
casamento. Aí surgiu um problema: o irmão dela não gostava dele e disse que
impediria o casamento. Acontece que Cencio não se incomodou e dizia que casaria
de todo jeito: falou que foi o primeiro homem da Mari. Agora queria ver como
ficava. Ficou numa promessa do futuro cunhado dizendo: “Sei que sua promessa é
falsa. Foi só pra dormir com a Mari, mas você vai pagar caro por essa dormida”.
Montou no cavalo e sumiu, mas sumiu mesmo, um tempão. Aí começaram os rumores de
“o Zico voltou”, “vi ele no ribeirão” . Avisaram o Cencio, que nem ligou. “ Se
ele aparecer dou um jeito nele. Oceis vão ver”, dizia caçoando da ameaça. Meu
avô dizia pra ele tomar cuidado avisando que o Zico tinha má fama e era ruim de
alma e coração, mas Cencio, aparentemente, não dava importância. Andava pela
vila mostrando a Mari e despreocupação. Cumpria com seu trabalho sem qualquer
malfeito.
Meu
avô ficou muito cansado da última “comitiva” e resolveu voltar antes da dança
do fim da festança. Avisou o Cencio e lá pelas cinco da manhã iniciaram a volta
a cavalo. Nós dissemos pra eles voltarem de avião. Era mais tranquilo. Não quiseram.
Meu avô queria cavalgar e ouvir a
cantoria do Cencio., inclusive cantar junto. Bem, arrumamos uma guarda armada
que andaria com os dois, mas a uns cem metros de distância. Protestou o quanto
pode, mas nós não arredamos pé. E partiram.
Cavalgando,
meu avô pedia pra ele cantar “Adiós pampa mia” e ele cantava: Adiós pampa mis,
me voy, me voy a tierras estrañas, Adiós ...” e por aí continuava. Conversavam,
paravam pra olhar a paisagem. Montavam e continuavam. “Cencio, canta aquela
outra, a da Gloria que tanto gostei. Cantava: Rechiflado em mi tristeza, hoy te
evoco y veo que has sido em mi pobre vida paria um buena mujer... Contavam suas
aventuras, riam-se do passado. “Cencio, canta aquela da sua vida. Cantava:
Prepara o seu coração pras coisas que eu vou contar.... Aprendi a dizer não,
ver a morte sem chorar....Na boiada já fui boi,
boiadeiro já fui rei...”Lembra, Dr. Fonsim, o Dr. dizer que queria eu a seu lado porque se
eu via a morte sem chorar eu era dono do meu destino? Aí os dois ouviram
“Abaixa, abaixa Dr!!! E três tiros com intervalo: PAM!! crac. PAM! Carac. PAM!
Crac. Era tiro de uma “papo amarelo”; uma saraivada foi a resposta. Resultado:
Cencio, no chão com dois buracos no peito, Zico todo furado e meu avô com um balaço
na perna esquerda. Já imaginou o que aconteceu? O nosso mundo caiu! Bem, houve
correria, hospital, enterro, polícia, o diacho. Tudo que estou falando foi meu
avô que me disse.
Ao
sexto dia, no hospital, nosso avô nos chamou pela manhã: “Tenho pouco tempo. Quero ser enterrado lá,
junto dos três pinheiros ao lado da Glória – nossa avó – e do Cencio. O resto é
com Vcs.”.
Morreu
no final da tarde.
— Mas, que tristeza! Você sabe que sinto
muito. Sempre lembrarei dele me dizendo: “Vem cá. A vida é muito curta.
Aproveite enquanto a tem.”
Ele
tinha dessas coisas. Entrego pra você o relógio de bolso que usava e que você,
tanto admirava.
Não contive as lágrimas. Chorei.
******
- As
Comitivas.
Aguinaldo José de Góes in Comitiva Boi
Soberano,
-
Disparada.
Geraldo Vandré (Geraldo Pedrosa de Araújo
Dias) e Théo de Barros.
-
Adiós Pampa Mia - Francisco Canaro (cantor).
-
Mano a Mano – Esteban Celidonio Flores/José Razzano.
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