RECORDANDO ANTIGOS TEXTOS
MARIO AUGUSTO MACHADO PINTO
ALIANÇA PERDIDA
Era para duvidar que estivesse dando tudo tão
certo e perfeito para a cerimonia logo mais à noite.
Pagou o táxi, passou pela portaria, subiu
pelo elevador e entrou no apartamento com o andar e o espirito de quem venceu uma batalha.
Colocou as chaves na mesinha da entrada, tirou
as luvas forradas com arminho, lavou as mãos no lavabo e em seguida preparou
sua bebida favorita de todas as tardes: porto com soda fria, ainda não gelada.
Jogou-se na bergere. Enquanto bebia olhou as
mãos examinando os longos dedos da pianista que era, e assustou-se com a falta da aliança.
Deixei cair, sim, só pode ter caído, mas como,
não tirei as luvas por nada! Só me faltava essa agora. Que chatice!
Em pensamento recorreu todos seus movimentos
em casa e fora. Saindo e voltando.
No táxi. Foi no táxi! Não, não foi. Paguei
com a mão direita! É, mas tive que tirar a luva para pegar o dinheiro. Tirei as
duas para contar as cédulas. É, foi nessa hora!
— Alo! O senhor encontrou uma aliança no piso
do seu táxi? É, um anel. Acabou de limpar e não achou nada? Mas, tem certeza?
Claro! Desculpa. Tchau, seu Edivaldo.
Percorrer o caminho desde a calçada. É, é
isso aí! Desci aqui, nada na rua, água suja correndo. Que nojo! Nada na
calçada, no caminho do jardim. No hall do elevador também não, na entrada do
apartamento, na passadeira, no lavabo, no barzinho, na minha poltrona. Tem que
estar em algum lugar! Ai meu Santo Antonio, ajuda um pouquinho, vai! Não joguei
fora, inda não tô louca. Mas, tô ficando. Cacilda, se não encontrar vai dar um
bode do caramba hoje à noite! Calma, não
perde a pose. Arre, diacho!!! Não pode ser! No assento da poltrona. Nada. Olhar
debaixo dos móveis, atrás das pernas das cadeiras, nada, nada, nada! Só pode
estar no banheiro da suíte. A bolsa, luvas, echarpe, tirar os sapatos para
sentir se pisar em cima. Nada. Pia do banheiro.
Nada!
Junto com a exclamação jogou as luvas contra o
espelho e ouviu um barulhinho. Correu, pegou-as virando-as ao avesso. Ali
estava ela no emaranhado dos pelos.
Barulho de chaves na porta: Oi meu bem. Teve
um dia bom? O meu foi magnifico! Preparei uma bebidinha pra Você. Vem que te
faço um cafuné bem gostoso.
DESCONFIANÇA
À noite, ao redor das oito, tomo o que convencionei
chamar de “sopinha”, um desses preparados desidratados que só necessitam de
líquido quente para se transformar em caldos, às vezes até saborosos.
Interrompo o que faço, vou á sala da TV onde
Ceci assiste ao noticiário ou alguma outra coisa. Sua caneca do chá tomado com alguma bolacha está
na mesinha lateral com o abajur. Pergunto se quer algo mais e recebo sempre a
mesma resposta negativa.
Peço a caneca e o prato de sobremesa e vou à
copa preparar minha sopinha. Bebo de uma caneca apropriada; coloco alguns croutons ou então pedacinhos de miolo de
pão integral. Bebo, como algum complemento enquanto aguardo ela aparecer. É
certeza.
Chega com aquele ar de quem não quer nada, mudinha,
aparência distraída ou de que há coisa a fazer, mas não sabe bem o que nem
como. Ledo engano. Energética, nada pergunta, mas o que quer mesmo é saber se
tomo somente a sopinha, se há alguma coisa a mais preparada como reforço. Vai
por trás de minhas costas pegar sua maçã no minibar. Assim faz sua checagem.
De vez em quando pergunta se vou comer o doce
em calda que está preparado, ou alguma fruta, mamão papaya, abacaxi ou melão
fatiados. Você deve comer frutas, faz bem
ao trato intestinal além do que não engordam. Olha a sua barriga! Daqui a pouco
vai precisar de bengala para se equilibrar. Que horror! Digo que sim, mas
nem sempre aceito a indicação. Gosto mais de doces.
Após comer lavo a louça e os talheres. Enquanto
faço isso recebo nova visita. É para colocar na lixeira as cascas da maçã. Na
verdade é para advertir: não deixe resíduo
na pia, entope os canos. Faço isso todos os dias e não necessito que me
lembre; sabendo como fazer não deixo resíduo algum, mas há a insistência: já limpei várias vezes; tome cuidado e
vai continuar a ver TV.
Guardo a louça, os talheres, preparo a mesa
para o café da manhã e vou ver TV. Em geral é algum filme; não é muito
agradável: o som é fixado a baixo volume, os letreiros mudam tão rapidamente
que não consigo ler. Prefiro noticiário. Quando me irrito, leio os articulistas
do jornal do dia. O barulho de virar as
páginas está atrapalhando. Não precisa dobrar tão direitinho. Que coisa!
Ao redor das dez horas diz Vou me deitar; estou morrendo de sono; você
vai? Geralmente digo que vou após terminar as palavras cruzadas do jornal. Não durma na poltrona, não sei como pode;
você fica todo torto...Boa Noite (quando diz), e lá se vai.
Após o banho, volta, passa pelo corredor e
olha para a sala da TV para ver se estou dormindo. Se estou, diz de imediato, vá se deitar, vai pra cama, não seja
teimoso. Geralmente vou, leio umas duas páginas do livro da vez e durmo o
sono dos justos, de uma enfiada só. É tão bom que nem me lembro se sonhei.
Nunca.
Levanto-me.
Dou inicio a mais um novo dia.
AINDA
NÃO.
Foi revendo fotos antigas, dessas tiradas por
lambe-lambe nos nossos passeios pelas praças da cidade que me interessei por
fotografia. Só havia filmes para fotos em preto e branco o que me ocasionou a
descoberta do chiaro – oscuro, bianco –
nero. Ganhei uma pequena Kodak de
plástico e foco fixo e saí pelo mundo fotografando tudo e a todos. Ficou caro conseguir
fotografar certo o corpo inteiro das pessoas, mas consegui.
Autodidata, descobri os estúdios fotográficos
e o fotógrafo Rosen, que me acolheu e ensinou a usar a máquina fixa no tripé
(não me lembro do nome), e a usar a iluminação. Alemão, alto, magro e reto qual
pinheiro da Floresta Negra, “trabalhava” as fotos de fim de ano, das
formaturas, em grupos e individuais. Eu ajudava. Estas eram as que eu mais
gostava. Experimentava poses, ângulos, gastando mais bases do que o necessário, mas Rosen
fingia que não notava.
Nas fotos individuais focava mais o rosto, de
perfil ou de lado com a cabeça um pouco abaixada e inclinada e voltada para a
máquina. Minha inspiração foi o quadro “Moça com brinco de perola”, de Vermeer.
Cuidava muito dos olhos e do olhar. Com muita habilidade utilizava o claro –
escuro no preparo da iluminação e na revelação. Respirava e suava fotos e
ácidos
Reconhecidamente usava o ampliador com
maestria. Tratava as jovens como
verdadeiras estrelas. As fotos ficavam muito boas deixando entusiasmadas as
mocinhas que não eram lá muito bonitas. Essa habilidade passou pelo boca a boca
e de repente me vi fotógrafo requisitado marcando hora e cobrando. Cobrando! O dinheiro entrava com a facilidade de um
ginasta na minha carteira, e de lá não saia tal qual mão de mico apanhando ovo
na armadilha.
Apesar da insistência do Rosen nunca
participei de concursos. Preferia inventar maneiras de melhor apresentar as boas
particularidades de alguns rostos salientando seus olhos, ou a boca, os
cabelos, o perfil. Não procurava a alma de cada um, mas o seu interior buscando
a chave para abrir a caixa de segredos de cada um.
Foi com uma moça que veio fotografar para
presentear o namorado com sua foto que utilizei pela 1ª vez o brilho nos
cabelos e nos lábios: nos cabelos, passei um pouquinho de óleo de mamona e escovei
até secarem, ficarem soltos e brilhantes; nos lábios, passei um pouco de vaselina
liquida. Foi enorme sucesso, o que fez com que Rosen me dissesse que eu estava
pronto para voar sozinho e ter estúdio com salas próprias. Andorinha sozinha não
faz verão, sei disso. Vou fazer voar o gavião que tenho aqui dentro.
Melhorei minha técnica com Rosen ajudando.
Comprei uma Leica M 3 com todos acessórios, uma Roleiflex, uma Haselblad e
material para iluminação. Tornei-me perito no uso da sombrinha, do flash e
difusor nas fotografias coloridas. O tempo me fez notado, requisitado e
solicitado cada vez mais pelas agencias de publicidade. Fiz uma foto de minha mãe
que pode figurar em qualquer exposição internacional. Há quem me considere com
longa vida no metier.
As modelos sempre procuravam ficar no alto da
minha lista usando todo seu arsenal para me atrair e eliminar colegas
concorrentes.
Claro que aproveito ocasiões, afinal não sou
nenhum São João Apóstolo. Algumas vezes vivi situações de “saia justa”, mas o
balanço demonstra que o resultado vale o trabalho, e como dão trabalho!
Aí ela apareceu, poema silencioso mascarado
com mistérios, procurando o que e quem os resolva. Ela me ensinou como trabalhar
as cores do seu corpo, sua imagem interior a ser entrevista só por aqueles que
entendem o poema de seus gestos e poses de gata feiticeira, faceira e manhosa.
Trabalhamos juntos cada vez mais ligados como
orquídeas nas arvores da nossa floresta, cada qual formando o outro, perfumes
aspirados sempre lembrados, mas o homem de Geraldine não sou eu. Ainda não.
Johannes Vermeer, autor do quadro Moça com
Brinco de Pérola, foi o maior pintor holandês do século XVII. Esse quadro
singular serviu de inspiração para um filme de mesmo nome
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