Carta trocada
José
Vicente J. de Camargo
Antes
de entrar no carro para ir ao trabalho, costumo dar uma olhadela na caixa de
correio pendurada no portão da garagem. Nesse dia, para surpresa minha, no meio
dos boletos de cobrança e das propagandas de produtos de consumo, tinha um
envelope de carta escrito a mão endereçado a mim. Estranhei, pois, neste mundo
virtual da internet, quem ainda usa correio para comunicar-se? Já é passado! Algo
desconhecido para a nova geração.
Instantaneamente,
sem saber porque, meu pensamento pinça do subconsciente o tempo dos correios
elegantes nas noites de quermesses da igreja ou nas matinés dançantes dos
domingos no salão do clube. Com os amigos ficava na expectativa de receber pelo
menos um daqueles papeizinhos bem dobrados para não ficar “sapateiro”,
expressão usada para indicar “não tá com nada! ”.
Orgulho máximo, que elevava o
endereçado à categoria de “galã”, era receber um correio perfumado de uma
garota bonita, desejada por muitos e considerada de difícil paquera. A
entregadora do correio, geralmente voluntárias da quermesse ou os próprios garçons
do clube, ficavam à espera da resposta. Geralmente eram convites para dançar,
para sentar à mesa ou para um bate-papo no “escurinho” da praça. Mas, se a
mandante não era de interesse e não aumentasse sua pontuação perante os amigos,
simplesmente ficava sem resposta.
Continuando
neste contexto, de como os costumes mudam rapidamente, meu pensamento voa para quando,
morando na Alemanha, tinha uma agenda só para anotar nomes e endereços para
envio de cartas e cartões de natal contando as novidades e desejando os
tradicionais votos natalinos. Tinha de ter o cuidado de não repetir fatos já
descritos anteriormente e de controlar a extensão e a intimidade do relato de
acordo com o grau de relacionamento com o destinatário. Era um trabalho minucioso
de dias a fio que fazia após o expediente, inclusive em vários idiomas, dado ao
conhecimento de amigos de diferentes países. Tudo isso a internet engoliu em
pouco tempo...
Entre
a atenção na direção e o vagueio mental, resolvo ler a carta retirada da caixa
de correio. Abro-a, mas há algo que não entendo bem. Estaciono o carro e a releio:
“Mas
que raios é isso?” Não pode ser eu! E está sem remetente! Ao reler o endereçado,
percebo então que a carta não está em meu nome, mas sim no do vizinho, parecido
com o meu – não é a primeira vez que isso acontece – ele é José Alves, eu sou
José Nunes. A missiva, porém, é totalmente ameaçadora:
“Sei que foi você que contratou o capanga para
matá-la. Tenho provas suficientes inclusive o testemunho do comparsa que o
capanga utilizou para atraí-la ao beco escuro em troca de droga e onde a
esperava a bala fatal. Não precisava chegar a este extremo. Ela era uma pessoa
que, apesar do vício, tinha bom coração. Ela não queria prejudicá-lo. A
história da chantagem de contar à sua mulher foi uma tentativa para que você
não a abandonasse. Ela me contou sobre seu instinto violento, de eliminar quem
se intrometer no seu caminho, pensando que com dinheiro se compra tudo. Mas aí
é que você se engana, pois, chantagem verdadeira você vai ter a partir desta
carta. Na próxima lhe direi quanto e onde deixar a grana da sua liberdade. Caso
contrário, a polícia receberá o celular do comparsa que é meu amigo, e também
era dela, e está arrependido. Nele estão as gravações das conversas entre ele e
o capanga que você contratou, inclusive citando seu nome como mandante”.
Enquanto
dobrava a carta cuidadosamente nas marcas originais, pensava o que fazer.
Conhecia o vizinho muito pouco, se saudavam cortesmente, nada mais. Sua mulher
tampouco tinha contato com a mulher dele, quanto muito sabia seu nome – tão
próximos fisicamente, mas tão distantes no convívio social –
pensava. Uma coisa não tinha dúvidas: colocaria a carta – ainda
bem que não rasguei o envelope ao abri-la – de volta na caixa de correio
do vizinho como se nada tivesse acontecido. Devia apagar qualquer suspeita de
ter lido o conteúdo assassino. Nem contaria à esposa para não a assustar. Eu já
estou bem assustado! Se o Alves descobrir que eu li, movido pelo seu carácter de
machão vingativo, contrataria alguém para mandar me matar também.
Passei
o restante do dia no escritório intrigado entre o perfil e as possíveis
atitudes do vizinho. Conclui que “nem tudo que reluz é ouro”.
Ao chegar
na garagem de casa, por uma dessas coincidências que o destino nos prepara, estacionei
no mesmo momento em que o vizinho. Instantaneamente cobri com a mão a valise
que continha a carta, como querendo escondê-la. O vizinho me cumprimentou
amistosamente e, pela primeira vez, me dirige a palavra:
— Boa
noite! Algum dia vamos marcar uma reunião na pizzaria da esquina com as
respectivas. Elas se divertem com as fofocas do momento e nós, com nossos
segredinhos...
— De
acordo! Respondo, observando seu sorriso charmoso vou pensando:
Será
que ele é mesmo o tal da carta? Ele não aparenta ser um mandante de crime nem
um machão raivoso. Será que a tal missiva é verdadeira? Não sei! O melhor agora
é colocar a bendita carta na caixa de correio dele e apressar minha mulher a
marcar com a dele, a noite da pizza. Quem sabe, após uns bons tragos, ele não
se abre com os tais segredinhos...Talvez alguns até possam ser úteis a mim.
Preciso por um pouco de “sal e pimenta” no meu dia a dia ...
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