Um padre emblemático - Ledice Pereira



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Um padre emblemático
Ledice Pereira


A morte de Padre Simone deixou a cidade maranhense de Governador Eugênio Barros à deriva por alguns meses. Alguns padres de cidades vizinhas vinham rezar uma ou outra missa de domingo, mas a falta de alguém que tivesse pulso firme e conduzisse a vida religiosa do município fez com que os fiéis se dispersassem.

Depois de uns três meses, surgiu, montado num cavalo, Padre Evaristo. O prefeito estranhou não ter sido avisado, mas a cidade estava tão precisada que recebeu o homem com as honras da prefeitura, encaminhando-o para as dependências da velha igreja.

Uma cama simples e limpa e uma escrivaninha antiga compunham a decoração do quarto, mostrado por Alberta, responsável pela limpeza da Igreja e adjacências.

Ao lado, um pequenino banheiro mostrava ao homem o desejado chuveiro.

Alberta fez um muxoxo, ao verificar as pegadas de terra deixadas pelas botas do padre.

Padre era santo então tinha que limpar e ficar quieta.

Após o banho reconfortante, padre Evaristo procurou-a para entregar-lhe a roupa surrada e suja.

Cara serviçal! gritou. Cá estão minhas vestes. Sei que me achas um marmota, mas que fazer? Estes são os trajes de que disponho. Ficaria muito grato se me fizesses um caldo bastante nutritivo, pois a viagem deixou-me deveras fadigado. Outrossim, podes dirigir-te à botica para compra-me uma droga qualquer que me tire esta dor de cabeça alucinante?

Alberta, mulher simples, de pouco estudo, criada ali na região, o olhava espantada, sem entender patavina. Devia lavar a roupa e fazer uma sopa. O resto, bem o resto achou muito complicado. Botica, tinha uma dentro do armário. Droga, nossa, ali não tinha droga não.

E assim começou a saga de Evaristo vamos chamá-lo assim.

A cidade de Governador Eugênio Barros fica a 372 km da Capital, São Luís. Com uma área de 817 km² e uma população aproximada de 16.000 habitantes, a cidade tem vida própria. Tudo parece funcionar a contento e com muita simplicidade, apesar de ter sido emancipada em 1961 e, portanto, muito jovem.

Aquela noite, depois de fartar-se com a sopa feita por Alberta, o nosso homem recolheu-se aos santos aposentos onde sonhou sonhos inimagináveis.

O prefeito poupou-o de rezar missa no dia seguinte. A população estava mesmo desacostumada.

Uma semana e o sino tocaria sempre às 6h.

A semana foi de grande proveito para nosso Evaristo. Conheceu a cidade, o comércio, a botica, como dizia, a única agência bancária.

Ia cumprimentando a todos, com seu jeito único.

Satisfação, senhores! Sou o novo pároco da cidade. Esperarei, com grande efusividade, a presença de todos na próxima terça-feira. Não se olvidem!

A população se entreolhava. Que figura mais esquisita era aquele padre.

A curiosidade levou-os à missa na semana seguinte.

Ao toque do sino todos se aglomeravam à frente da Igreja Nossa Senhora da Conceição.

Lá estava ele sorridente, recebendo um a um.

Bem-vindo, senhor! Bem-vinda, senhora!

Naquele horário da manhã, não era habitual haver sermão, mas o padre estava sedento de transmitir sua eloquência.

“Irmãos e irmãs, vós estais na casa do Senhor e deveis respeitá-la acima de tudo. No momento em que depreenderes a palavra do Senhor, vosmecês sentir-se-ão aprazíveis!

Hoje, entabula-se uma nova era na existência de todos que aqui se deparam...”

E por aí foi o discurso de uma hora proferido pelo novo sacerdote.

Alguns tiveram que ir se esgueirando sorrateiramente pelos cantos da igreja, procurando uma saída. Outros, ainda ali permaneceram tentando decifrar aquele sermão.

Que saudades do Padre Simone! diziam perplexos.

Alberta, que acompanhara de perto a celebração da Missa sentia-se desconfortável. Estava tão habituada à simplicidade do velho padre. Voltou para sua cozinha para preparar o café quando ouviu:

Os ovos podem ser poché.

Ficou olhando com aquela cara de interrogação. Que raio de ovo é isso. Nunca ouvi falar essa palavra.

O senhor vai desculpando qualquer coisa, mas não entendo nada do que o senhor fala.

Assim foi que Governador Eugênio Ramos conheceu Evaristo.

Aos poucos, o padre deixou de ser uma incógnita para os eugênios barrenses, que foram se acostumando àquele palavreado estranho, o que os obrigava, muitas vezes, a consultarem os dicionários, a biblioteca, os professores.

Principalmente, os jovens começaram a se preocupar com a maneira de falar. Passaram a ler mais, a trocar ideias, a promover papos-cabeça.

Os professores passaram a se informar mais sobre a língua portuguesa e seus sinônimos para estarem prontos a responder às indagações dos alunos.

Até as crianças passaram a perguntar o significado dessa ou daquela palavra, ampliando o antes pobre vocabulário.

Vereadores e até o Prefeito passaram a usar verbetes mais rebuscados.

Apenas os idosos resistiam, talvez por vergonha, à nova febre que movia a cidade.

Passados dez meses, a Cúria comunicou o Prefeito de que estava encaminhando um novo pároco para a cidade. Ao saber da existência de Padre Evaristo, o Bispo mostrou-se surpreso. Não havia, nos arquivos, nenhuma informação sobre esse religioso, muito menos indicação de que devesse substituir Padre Simone.

Acionada, a Polícia Federal entrou em ação para descobrir a charada.

Depois de muita investigação e sério interrogatório, concluiu-se que nosso Evaristo havia estudado no Seminário em São Luís. Sua mãe fizera promessa à Virgem Maria de que o filho seria padre.

O jovem não tinha a menor vocação e acabou fugindo do seminário. Com medo de voltar para casa, passou a morar nas ruas da cidade. Sua forma educada e diferente de falar e tratar as pessoas garantia-lhe, sempre, um prato de comida. Os bicos como jardineiro ou pintor de paredes davam-lhe algum trocado e até um local para dormir.

Ao saber, pelos jornais, da morte de Padre Simone, achou que poderia se fazer passar por substituto. Sabia dos trâmites que levavam à demora em designar alguém para o lugar dos padres que faleciam. Foi assim que se apresentou como novo Pároco da cidade. Tudo para ter uma cama, banho, comida de graça e afeto. Em troca, ensinar a língua formal, que tanto apreciava.

Quase deu certo. Foi preso, mas logo conseguiu a liberdade. Afinal, em poucos meses tinha transformado a vida cultural de uma pequena cidade.

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