A menina da mochila
Ises
A. Abrahamsohn
Eu sou jornalista do tipo frila. Para
quem não sabe é a gíria de “free-lancer”. Escrevo sobre alguns assuntos de meu
interesse, entre eles literatura escrita por mulheres e relações interpessoais.
Envio para algumas revistas. Se gostam de um artigo, compram. Trabalho na
Inglaterra e na Europa com revistas publicadas em inglês.
Estava numa livraria folheando um livro
de Lupita N’gila Dorothy Brown. “Uma garota nigeriana em Londres”. Na
contracapa havia uma fotografia que me chamou a atenção. Uma garotinha negra,
vestida com roupas velhas muito gastas sentada na terra vermelha laboriosamente
escrevendo com lápis letras num velho caderno. Nas costas uma surrada mochila.
Queria há tempo escrever sobre essas crianças africanas, algumas sortudas que foram
adotadas e cresceram na Europa e quem se tornaram. Li o livro de Lupita em duas
horas. Lupita N’gila era seu nome na aldeia africana. Era sobrevivente de um ataque
do Boko Haram ao povoado de Dalore no norte da Nigéria.
A pequena Lupita por obra do destino se
salvou por ter ido ao amanhecer urinar na latrina que ficava a uns cinquenta
metros da choupana, na borda do campo de mandioca. Ao ouvir o barulho das
caminhonetes, os gritos e tiros, entrou na plantação, se enfiou num buraco e se
cobriu com galhos.
Fiquei pensando na garotinha de oito
anos ali, imóvel, apavorada, e sentindo o cheiro da fumaça dos casebres
queimando. Quieta permaneceu no buraco mesmo depois que pararam os tiros, e
quando só se ouvia o vento quente do deserto dançando entre as folhas do
mandiocal. Ficou lá até o meio da tarde, com fome e sede. Só saiu quando ouviu
vozes em inglês e na língua local chamando pelos habitantes. Os pais e toda a
família estavam mortos e a esquálida morada tinha virado um monte de madeira
queimada e cinza.
Lupita foi levada para o recolhimento de
um orfanato de passagem. Foi lá que uma das enfermeiras lhe deu uma mochila bem
surrada, um velho caderno e dois lápis. Todos os dias ela sentava no pátio de
terra batida em frente ao barracão de madeira do acolhimento e copiava as
palavras que a enfermeira Dorothy escrevia no caderno. Tinha um lápis azul e um
vermelho. Alternava uma palavra de cada cor. Depois orgulhosa ia mostrar à
enfermeira que a abraçava e dizia que um dia seria escritora.
Era a enfermeira que tirava as fotos das
crianças órfãs e foi a foto que aparece na capa do livro que tenho nas mãos que
fez com que Lupita fosse adotada. O casal inglês, os Brown, se encantou com a
menina compenetrada escrevendo ali mesmo no chão, em pleno sol, alheia a tudo
que se passava à sua volta. Lupita, ao se despedir da amiga, pediu que ao seu
nome ajuntassem também o da enfermeira. Explicou que assim era feito na sua
família que o nome de uma madrinha ou tia protetora era adicionado ao nome das
crianças.
E ela viajou para a Inglaterra já como
Lupita N’gila Dorothy Brown. Inicialmente a família morou em Plymouth. Depois
quando Lupita tinha treze anos mudaram-se para Londres. O livro narra ainda
alguns episódios de adaptação de Lupita à nova vida e à escola. Aparentemente
era uma garota muito inteligente. Aos dez anos tinha superado a defasagem de
escolaridade e se saía muito bem. Os pais adotivos foram muito amorosos e
dedicados.
Nesse livro ela não fala quase sobre os
problemas que deve ter tido para se acostumar com a vida na Inglaterra e a
convivência com os colegas. Eu sei que ela vai lançar um novo livro, oito anos
após esse primeiro. Nesse novo livro, do qual já ouvi comentários, ela relata a
sua vida de jovem e adulta em Londres.
II
Vencendo preconceitos
Ises
Abrahamsohn
Cheguei cedo para o lançamento do livro.
A revista me enviou para fazer uma matéria sobre essa nova escritora Lupita N’gila
Dorothy Brown. Eu já tinha lido os comentários favoráveis sobre o seu livro
anterior publicado há três anos. Haveria a leitura de alguns trechos pela
própria escritora, seguindo-se uma sessão de perguntas aberta ao público
coordenada por alguém da editora.
Eu sabia em linhas gerais o conteúdo
deste novo livro “Vencendo preconceitos”. Era um relato romanceado sobre uma
garota negra crescendo e se educando na cosmopolita Londres. A personagem
principal parecia ser o “alter ego” da escritora. A questão principal era quais
das experiências relatadas no livro foram de fato vivenciadas por ela e quais
eram fictícias. Fui cumprimentar Lupita antes da leitura. Deve ter uns trinta e
cinco anos. Alta e esguia usava os cabelos bem curtos o que lhe caía bem
acentuando a testa e um crânio alongado. Usava um vestido clássico de cor bordô
de mangas longas sem decote e sapatos de salto médio combinando. O único
enfeite era um pingente moderno de prata sustentado por uma corrente do mesmo
material.
Apresentei-me como jornalista “free-lancer”
que escreveria uma matéria sobre a ocasião e seu novo livro. Brinquei
dizendo-lhe que além de acompanhar a leitura pública eu leria o livro, mas que
sabia do que se tratava. Perguntei-lhe, é claro, sobre a identidade da
personagem. Ela sorriu e disse que era um livro de ficção e eu fingi que
acreditei. Despedi-me e ela autografou um exemplar para mim dizendo, leia e
diga depois sua opinião ou me envie a matéria.
A sala em frente ao pequeno palco
começou a se encher. Lupita após uma pequena apresentação começou a ler trechos
do livro em voz clara e cultivada por anos de estudo e vivência nas
universidades inglesas. Eu estava sentada bem à frente e havia na audiência,
além de jornalistas especializados e críticos, várias pessoas que provavelmente
eram de Colleges, talvez alguns onde a escritora estudou ou trabalha. Os curtos
trechos que leu, e ela o fez como se estivesse lendo uma peça de teatro com
toda a ênfase e sentimento, causaram enorme impacto. Foi aplaudida por grande parte
da plateia, mas vários ouvintes mostravam claramente sua desaprovação.
As perguntas do público eram, em resumo,
as que eu mesma tinha feito à Lupita antes da apresentação. Quanto naquele
incrível livro de denúncia de racismo e assédio fora de fato vivido por ela ou
quanto era ficção. A escritora calmamente respondeu que o ali relatado de fato
havia acontecido. Aquele público era em geral culto e bastante heterogêneo no
que diz respeito a etnias. Muitos ouvintes eram ligados às áreas de literatura
e jornalismo das faculdades londrinas. Foi aplaudida em vários momentos da
leitura.
Alguns da audiência a desafiaram colocando
em dúvida a existência das situações descritas no livro. Afinal Londres era tão
multicultural! Impossível haver ainda racismo e o preconceito descritos. E,
naturalmente, veio a pergunta de um distinto senhor sobre por que ela não havia
denunciado as pressões que sofrera durante os seus estudos de pós-graduação na
universidade.
A moça sorriu da pseudoingenuidade de
seu interlocutor, claramente um professor pertencente ao ‘’establishment”
universitário.
― Se eu tivesse me queixado naquela época, teria sido
pressionada a abandonar os meus estudos, respondeu. E, certamente, nunca teria
conseguido ser contratada como professora-assistente no mesmo Departamento.
Mesmo agora, dez anos depois, sei que meu livro vai causar um tremendo
reboliço. Espero não perder a minha posição. Senti que agora era a hora de
falar às mulheres e também aos homens, a todos que sofrem algum tipo de
discriminação para que denunciem. É necessário acabar com o assédio e com o
racismo. Este racismo e assédio que muitos negam existir, mas que pervade a
sociedade, mesmo nessa Londres cosmopolita. Basta entrar na internet para
conhecer os relatos dos estudantes, alguns vindo de nossas mais famosas
universidades.
E com essa mensagem a escritora Lupita
N’gila Dorothy Brown encerrou as entrevistas, saudada por entusiasmadas palmas
do público. Deve ter autografado pelo menos uns trezentos livros naquela noite.
No dia seguinte estava nas páginas literárias dos grandes jornais.
Eu fiz a matéria para a revista sobre o
livro de Lupita e inseri uma introdução sobre as origens de Lupita e dos
desafios vencidos narrados no seu livro anterior: “Uma garota nigeriana em
Londres”.
Espero que o seu novo livro também
alcance outros países e leitores e sirva de inspiração para que as pessoas
reajam aos preconceitos e racismos. Infelizmente o que vemos é o ressurgir
dessas manifestações por todo o lado e em todo o mundo. Até naquele belo país
da América do Sul, o Brasil, onde os habitantes hipocritamente se gabavam de
não haver racismo! O bom é que agora as pessoas podem denunciar racismo e
assédios que são considerados crimes.
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