O Professor visitante
Ises A. Abrahamsohn.
Os
fatos, verídicos, até prova em contrário, aconteceram em Minas Gerais na década
de 1960.
Era raro aparecer alguém realmente desconhecido
na cidadezinha de beira-de-rio perdida naquele fundo de vale. Mas decididamente,
esse sujeito ninguém conhecia. Não era parente ou amigo de alguém da cidade. Ao
descer do ônibus na praça principal, de imediato despertou a atenção dos
aposentados que jogavam truco na calçada do bar do Aníbal. Trajava terno cinza
escuro e gravata, e carregava duas surradas malas bastante pesadas. Caminhou em
linha reta até os jogadores que agora, em silêncio, examinavam o estranho. Este,
porém não se intimidou e se apresentou.
― Senhores, me apresento. Sou Epaminondas
Antenor Santana de Bulhões, professor de línguas. A nossa, a língua pátria, que
mais bela não há e também de outras menos afortunadas das terras de além-mar.
Para facilitar podem me chamar de Antenor.
― Muito prazer, murmuraram os quatro
senhores, surpreendidos com a desenvoltura e maneirismos do recém-chegado.
O
Ernesto adiantou-se e fez a pergunta que estava nos olhos dos companheiros: o
que trazia o ilustre cavalheiro a São Gonçalo?
O
visitante explicou que viera instalar-se na cidade como professor particular e
procurava casa para alugar. Perguntaram-lhe o porquê de ter escolhido aquela
cidade tão pequena, de recursos limitados e onde não teria muitos alunos. Antenor deslanchou em extensa exposição de
motivos entre os quais a saúde abalada que o levaram a escolher um lugar calmo
para residir.
O
Aníbal vindo do interior do bar se acercou e ofereceu a casa que tinha sido da
finada sogra. O sujeito tinha lhe caído do céu. A casa estava vazia há dois anos
sem interessados. Foram todos acompanhar o potencial inquilino até o imóvel e o
Aníbal ainda arrumou um carrinho para ajudar com as malas.
O
professor Antenor, que foi como o grupo passou a chamá-lo, se instalou na casa
após pagar em dinheiro o primeiro aluguel.
Dois
dias depois uma placa fincada no pequeno jardim anunciava Dr. E Antenor Bulhões
de Castro, professor particular de línguas latinas.
O
visitante movimentou o comércio local. As pessoas olhavam curiosas aquele homem
muito magro e pálido, alto, de cerca de cinquenta anos sempre de terno escuro e
gravata apesar do calor. Usava um chapéu claro tipo Panamá e óculos escuros.
Parecia não suar. Os comerciantes se admiravam da fala do professor. Um ou
outro até anotava as palavras.
― O calor me faz estremunhar, não sou
estouvado, não vou espaventar.
Na
loja querendo comprar lençóis soltou ao atônito balconista:
― Preciso de
sobcorpos e de cobrecorpos para leito de matrisposos. A tessitura tem que ser
algodonosa e mórbida sem remelexos para não afrontar a minha dermocobertura supradelicata.
O rapaz, sem atinar o pedido do freguês, chamou o
dono. Seu Jamil achou mais fácil pedir ao comprador que apontasse nas
prateleiras o que desejava. Resolvido. O sujeito queria lençóis para cama de
casal de algodão macio sem bordados.
E assim o professor Antenor passava pelo comércio
local esbanjando seu vocabulário, espantando os lorpas e mandriões (como os
chamava) que o escoltavam para gozar dos balconistas atrapalhados com o
linguajar pouco compreensível.
Ao elogiar o almoço, simples arroz, feijão e bife
do bar do Aníbal, cascou:
―
Estupefaciente o merencório que cá degustei!
―
Que
venga agora para intrapolar o altruístico gástrico um dedal daquele seu néctar
cor das nigromantes noturnas.
Diante da aparvalhada expressão do Aníbal, Antenor
se apressou a apontar a garrafa de licor de jenipapo no balcão.
Duas semanas mais tarde apareceu o Carlinhos à
porta do professor, enviado pela mãe para tomar aulas com o grande erudito cuja
fama tinha se espalhado pela cidade. A mãe de Carlinhos tinha grandes projetos
para o garoto de doze anos. Logo teria de sair de São Gonçalo para cursar o
ensino médio. Teria que fazer uma prova para ser admitido no colégio em
Diamantina. O professor viera a calhar. O garoto poderia se preparar melhor
para o exame.
Carlinhos voltou da primeira aula assustado.
Escutara palavras e expressões que jamais tinha encontrado nos livros escolares
ou naqueles emprestados da biblioteca. O professor ainda insistiu: ― Vejo que está despreparado
para o exame. Tem que aprender muito. A se exponenciar escorreitamente no
vernáculo culto da língua pátria. Em outras palavras, o garoto saiu de lá se
sentindo um zero à esquerda.
Mas Carlinhos não era bobo. Tinha anotado, quando
possível, algumas das palavras do empolado professor. Foi ao dicionário buscar
as palavras. Espavento, vorticidade, esdruxularia, aldrabão, até existiam, mas
com significados muito diferentes daqueles que o professor usava.
Mas astremonte, escalopédio, facetonímia,
exponenciar, definitivamente não existiam.
Carlinhos foi conversar com a professora de
português, Dona Arlete. Esta já tinha ouvido falar do tal sujeito. Achou tudo
aquilo muito estranho. Foi com Carlinhos conversar com o Antenor. Apresentou-se
como interessada no programa de estudos do garoto. O Antenor estava menos
exuberante, talvez inibido pela mestra, mas ainda assim soltou algum palavreado:
ludopédio, reguloso, estorninho, lebrateiro e etc. Com muito jeito, a
professora descobriu que Antenor vivia antes em Botumirim, uma cidade minúscula
perto de Montes Claros. Despediram-se e Arlete conseguiu no dia seguinte, com
dificuldade, falar por telefone interurbano com a diretora da escola local.
Desfeito o mistério. O professor não se chamava nem
Epaminondas nem Antenor e nem tinha altissonante sobrenome. Era um prosaico João
das Neves. Tampouco era professor. Tinha apenas fixação por palavras de
dicionário. Procurava palavras estranhas no dicionário e depois as usava, dando
outro sentido ou criava palavras novas. A família o mantinha sob vigilância uma
vez que era incapaz para o trabalho. Tinha desaparecido de casa carregando nas
malas livros e dicionários, vestindo as roupas do irmão e levara o dinheiro da
pensão do avô.
No dia seguinte, a família veio buscar João das
Neves. Só se despediu do Aníbal. Ainda sorriu envergonhado quando este o tratou
por professor. Atravessou cabisbaixo a praça e entrou no ônibus com o irmão.
Excelente, Ises!
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