Síndrome de Estocolmo
José
Vicente J. Camargo
Ele
nasceu com um dom, o de saber lidar com as palavras: somá-las, subtraí-las e
substituí-las para, num piscar de olhos, deixá-las fluir num texto sonoro com
início, meio e fim para o deleite de quem as ouvisse:
“Um orador nato!” - Dizia quem o conhecia.
Mas a
mãe natureza, preservando a lei do equilíbrio, o dotou também de um segundo
dom: a aversão ao trabalho! Pavor de ser comandado por outros e sua incompatibilidade
com horários e rotinas.
Desde
a infância foi aos poucos mesclando esses dons à seu proveito, isto é,
conseguir seus objetivos com o mínimo esforço. Ainda no convívio familiar,
convencia os pais, ambos trabalhando fora, a lhe darem uma mesada em troca de
afazeres domésticos: lavar louça, aspirar a casa, limpar vidraças, podar e
regar a grama e as plantas do jardim, coletar e selecionar o lixo nos
contêineres e outros pequenos afazeres. Com o “de acordo” em mãos, prometia
parte do ganho aos dois irmãos menores e aos amigos vizinhos para a execução
das tarefas sob restrito sigilo, caso contrário, chamaria outros interessados, pois
trocados fáceis para a compra de guloseimas e material para a montagem das
pipas não era fácil de se obter naquele bairro da periferia. Se o serviço fosse
de comprar o “dia a dia” nas vendinhas da rua, com dinheiro contado da mãe, ele
mesmo se ocupava, pois jogava sua lábia de pais desempregados e irmãos doentes,
para obter descontos e assim aumentar seu cachê.
Ao
completar dezoito anos declamou versos de amor à mãe e aos irmãos, discursou
lágrimas de agradecimento aos conselhos do pai e partiu para uma viagem de
pinga-pinga em dezenas de cidades disfarçado de diferentes identidades, origem
e profissão, vendendo ilusões à pessoas presas pela sua conversa convincente,
prometendo o paraíso na terra em troca da aquisição, parte em dinheiro vivo, de
títulos de ações falsos. Quando o
disfarce caia, ele já se encontrava a caminho da próxima cidade vítima. Na
esteira dos papeis fraudulentos, ele deixava também um rastro de corações
abandonados, curtindo as juras de amor ainda latentes.
No seu
íntimo, porém, o verbo da ética, da justiça, da integridade vai se espalhando pelo
sangue, atingindo a consciência até que, na próxima cidade, ao saber da
aposentadoria do pároco doente, se vê, do dia para a noite, vestindo batina com
cruz e bíblia, se apresentando na casa paroquial como o novo vigário designado.
Cheio de ardor espiritual – após ter ensaiado com coroinhas, carolas e beatos os
rituais da missa dizendo ter se ordenado padre na igreja ortodoxa, contagia os
paroquianos com mensagens eloquentes sobre o divino amor ao próximo, a fraterna
solidariedade, a remissão dos pecados.
O principal foco das suas oratórias era
a condenação dos vícios da carne que impediam a entrada do cristão no paraíso da
vida eterna: bebidas, jogatinas, bordéis, adultérios, sodomia, que
representavam a força do diabo faminto por almas para alimentar o fogo do
inferno. Tais impulsos deveriam ser podados de imediato para evitar a contaminação
de terrenos saudáveis. Esse sermão, dado a eloquência das palavras do orador,
foi convencendo aos poucos os moradores da cidade de forma direta ou através de
familiares principalmente das mulheres e de amigos já convertidos. Formou-se então
o “grupo do padre” vasculhando os cantos escuros, os becos contaminados, os
estabelecimentos suspeitos, acusando e repreendendo os infiéis que estariam levando
a cidade aos destinos de Sodoma e Gomorra.
Após a
consolidação das medidas purificadoras da cura, o índice de criminalidade do
município caiu drasticamente até poder dispensar os serviços da cadeia pública
que passou a abrigar a Casa da Cultura com cursos de música, pintura e
artesanato para crianças e adolescentes sob o lema “Mens sana in corpore sano”.
Foi
então que a notícia bombardeou a cidade!
O
vigário orador foi preso acusado de falsidade ideológica, isto é, nunca
frequentou um seminário, muito menos fez os votos de pobreza e castidade ao Espírito
Santo. Rapidamente uma multidão de fiéis se aglomerou em frente da delegacia
gritando a libertação do messias:
“Com
batina ou sem batina, queremos nosso líder de volta”!
O
delegado, adepto das pregações do pastor, que o livrou de uma carga
considerável de aborrecimentos, fez vista grossa e, num descuido proposital, já
estava ele nos braços da multidão com tempo do delegado ordenar:
“Para a igreja não, a lei não permite! ”
Então
uma carola viúva se destaca na multidão exclamando: Vamos levá-lo para o cinema
do meu marido, desativado desde sua morte. E assim, a cidade recebe um novo
templo, sem o aval do divino, mas com um parlatório que versa sobre esperança,
paz e fraternidade e sobretudo sobre as penitências dolorosas para os desvios
da boa conduta, tal qual Síndrome de Estocolmo:
“Quanto mais apanha, mais gosta!...”
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