Harmonia total
José
Vicente J. Camargo
Gostava
de ver os dois juntos! Tão diferentes fisicamente que ficava difícil acreditar
que se entrosavam numa harmonia de alegria e paz:
O Luiz,
baixo, moreno atarracado, meio careca, voz branda, modos gentis e calmo, mas
sério. Filho único de pai e mãe médicos acostumado a ter tudo do melhor na hora
que quisesse. Bom observador, memória invejável culminando num pragmatismo
exemplar.
O Eduardo
ou Dudu, tal qual taquara rachada: alto, magro, voz estridente, cabelos loiros
esvoaçantes e um extravagante e irrequieto modo de ser e agir. Seus pais franceses,
de prole numerosa, o educaram nas leis da natureza: livre, sem compromissos a
não ser o do amor ao próximo, à natureza e aos seus objetivos na vida.
Ambos cursavam
comigo o último ano da universidade onde ficamos amigos desde o início.
Nas
férias de verão organizávamos uma viagem para lugares mais longínquos, longe da
civilização do concreto, do barulho, do ar poluído onde o sabor da aventura e
do imprevisto era mais acentuado.
Redes
sociais ainda não existiam neste verão de 1970 quando, com o jipe Land Rover do
Dudu, tentávamos vencer o desafio de percorrer os 1600 quilómetros da rodovia
Belém – Brasília, ainda de terra, cortada por infindáveis “costeletas”,
lombadas e “tops” assim chamados os aclives e declives bem acentuados que
dificultavam o trafego sofrido dos caminhões. As chuvas de verão faziam do
leito da estrada um mingau de barro.
Dudu
dirigia o tempo todo com a cabeça pra fora dividindo o olhar deslumbrado da
mata virgem com a atenção de escutar qualquer ruído estranho do motor. Vez ou
outra soltava aos ventos gritos carregados de energia e alegria acompanhando os
gestos frenéticos dos braços e das mãos na tentativa de manter o veículo
aprumado na melhor trilha marcada no lamaçal.
Luiz,
dividindo o banco traseiro com um baú improvisado como guarda roupa coletivo,
comentava pausadamente as diferenças das paisagens citadinas com as da floresta
fechada, concluindo que apesar da pujança da mata com seus segredos e
mistérios, ele preferia o asfalto que poria fim a tortura da dor de costas
proveniente dos solavancos e aos riscos do ziguezague do jipe no lamaçal
entrecortando os caminhões carregados. Olha o relógio e pede uma pausa para o
alivio das águas, prontamente aprovada pelos demais.
No
meio das folhagens rasteiras ecoa o grito escancarado do Dudu: “cuidado com a cobra, as daqui engolem boi!”.
Mas quem ficou com o prêmio sensação do dia foi o Luiz, que adentrando na
mata um pouco mais, dá de cara com uma roda de caminhão, provavelmente o
estepe, que se soltou com os baques das lombadas. Nos acena para vermos e sem
muito entusiasmo pergunta se é azar – dado que podemos passar por
ladrões ou sorte se conseguirmos vendê-la. Dudu, de um salto levanta a roda, a
examina e soltando mais um de seus gritos característicos exclama:
− Tá em
bom estado! Deve valer um bom preço. Olha em redor para marcar o lugar, a
quilometragem e completa: no jipe não cabe! Vamos parar na próxima estação de
serviço e procurar um caminhoneiro interessado em comprar. Com o dinheiro vamos
caprichar no jantar e no pernoite – nada desses banhos de
canequinhas mirando estrelas...
Dito e
feito! Vendemos o “achado” com desconto e demos um “up–grade” na pousada de
cama, mesa e banho e no jantar de pratos típicos. Luiz foi esticar as costas
doloridas numa cama que classificou de “King amazônico”, tomar seus remédios e
anotar no seu diário as emoções do dia. Dudu ainda trocou copos com um
frentista, intrigado em saber se o jipe era o último modelo fabricado pela
Willys, pois nada parecido se conhecia por aqueles lados. A revelação o
entusiasmou pensando na possibilidade de trocar o seu, ano 1956 − inglês
autêntico − por um novo Willys nacional.
Este
entusiasmo floresceu mais ainda quando, dia seguinte, continuando na trituração
da estrada, Dudu rasga o vento com um palavrão de pânico:
− O
motor tá com ruído estranho! Vamos parar na próxima cidade que tem uma infraestrutura
razoável –
Imperatriz
−
distante uns seiscentos quilômetros do nosso destino.
Na
oficina mecânica descobre- se o problema: Virabrequim!
Dudu grita
seu palavrão preferido e completa: Esse
não tenho em estoque! Preciso telefonar ao meu mecânico em São Paulo e pedir
para que me envie por avião. Ainda bem que temos aeroporto aqui.
Luiz
interrompe:
− Nada
de nervosismo! Não leva a nada. Como não entendo bulhufas de motor, fui
conhecer a faculdade e lá conheci uns estudantes que moram numa república e me
disseram que caso precisemos de hospedagem, podemos ficar com eles, pois, sendo
férias, tem lugar vago. Portanto cama e comida, que podemos preparar na cozinha
da república, não é problema. Além do mais, a cidade é a segunda maior do
Maranhão com muitas trilhas para se conhecer o cerrado e outras tantas no
litoral, no delta do rio Parnaíba, ponto turístico nacional. Acho até que temos
de agradecer ao tal virabrequim que nos obriga a ficar.
Após
essas ponderações, Dudu se acalma, levamos em três o baú em direção a
república, não sem antes, passar pele telefônica e ligar ao mecânico que se
prontificou a enviar a peça. Foram cinco dias que valeram as férias. Os
estudantes que permaneceram na república nos apresentaram os cantos mais conhecidos
da cidade, e também os menos recomendáveis, seus arredores de serrado, sua
culinária e festas típicas. Dudu se esbaldou nas comemorações e foi o que mais
distribuía endereço e telefone de São Paulo, para assombro do Luiz, imaginando a
agonia dos pais dele, caso uma parte ínfima comparecesse.
O virabrequim
chegou, foi montado e partimos rumo a Belém, mas não chegamos a fazer cinquenta
quilômetros! Dudu, com o vento esfregando a cara, engole o tradicional palavrão
e roga uma praga dos infernos ao mecânico: “Desgraçado!
Me montou a peça errado. Eu bem que queria estar presente, mas quando cheguei
já tinha feito o serviço. E tem outra,
amigos! Telefonei ontem pra Sandrinha e ela me disse que o resultado do exame
deu positivo. Para eu voltar logo para darmos a notícia aos pais. Para mim a
viagem termina aqui. Como a maioria dos caminhões volta para São Paulo vazio,
vou pagar um que me leve o jipe como carga. Vocês decidem se querem voltar
comigo ou prosseguir de ônibus ou carona.
− Não!
Retruca Luiz. Viemos juntos e vamos voltar juntos! E digo de antemão que quero
ser um dos padrinhos desse casório. E por falar nisso, ela disse de quantos
meses está? Não deixe de fazer o pré-natal, importante nesse tempo infestado de
insetos transmissores.
Para
mim, até que gostaria de prosseguir a viagem, mas fiquei constrangido de
quebrar aquela harmonia que tanto admirava e que só aumentou com Sandrinha e depois
Eduardinho, que pelo choro gritante e pelo esperneio das mãos e pernas, não
deixava dúvidas sobre quem era o pai...
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