O BALEIRO SE FOI
Silvia Helena De
Ávila Ballarati
Quero apresentar pra vocês uma pessoa
encantadora, um ser humano especial, o tio Beto. Ele não era meu tio de sangue, mas eu o
considerava como se fosse. Aliás, quando soube da dura verdade, chorei por uma
semana, fiquei arrasado, não havia meios de me consolar. Isso foi há muito tempo...
Tio Beto tinha sempre o bolso da
calça repleto de balas para dá-las às crianças. Agradá-las era o que o movia na
vida. Desde sempre fora assim e agora, com a doença de Alzheimer se
avizinhando, estava esquecendo quase tudo, menos as suas preciosas crianças,
parecia se lembrar apenas delas mesmo.
A própria esposa fora confundida com
a funcionaria doméstica várias vezes, o que lhe causava uma pontada de
tristeza; mas na maioria das vezes, acabava rindo da situação. Entretanto, a
meninada, esses nunca perderam a identidade e importância para tio Beto.
Chamava os mais próximos de nomes, os
mais inusitados, Reco-reco, Farofinha e por aí iam os variados apelidos. Os
olhinhos ansiavam pela convocação, parecia a hora da chamada na escola. Eu
também incorporava profundamente essa fantasia, era chamado de Chico-Juca.
Tio Beto dizia que o segredo da
felicidade estava na comida mais saudável do mundo, o Mufurufo e a partir
disso, todos comiam com satisfação. Deixavam as mães enlouquecidas quando
pediam para fazer a receita do tal prato que não existia. Nada mais era, do que
arroz, feijão, carne moída, ovo e tomate, delicioso! Se comerem direitinho o
mufurufo, vocês vão ficar circuncinfláusticos, dizia tio Beto, abrindo aquele
sorriso.
Quando nos empoleirávamos em seu
pescoço, deixando-o em apuros, era fácil tirar-nos de lá. Bastava chamar
Tchau-tchau, Manezinho, vamos tomar um diurético anacreôntico, que era um
simples copo d’água. Mas essa água era a própria energia que nos revigorava.
Corríamos atrás do tio Beto, fazendo fila para beber do maravilhoso elixir.
Se algum menino chorava, ele punha a
mão no bolso, tirava um punhado de balas e o distraía dizendo que ele era muito
silamagnático, isto e aquilo. Fazia muitos gestos e caretas e a tristeza passava
como que por encanto.
Quando a doença foi tomando conta de
tio Beto pra valer, as poucas visitas que sua mulher permitia, eram as
crianças. Em geral, receber pessoas deixava-o muito agitado e para ela ficava
difícil acalmá-lo depois. Só mesmo para
a meninada ela abria uma exceção.
Nós não o achávamos doente; o fato de
repetir incessantemente as perguntas e respostas era prazeroso, parte da
brincadeira. Quem é você? E a gente
apressava em se apresentar, gritando, sou o Chico-Juca. De novo, quem é esse?
Sou a Farofinha, o Miau-Miau, e assim passávamos a tarde.
A mulher dele conservava a bombonière
cheia de balas, no intuito de manter a tradição de dá-las para as crianças, e principalmente,
por saber que pequenos gestos como esses traziam conforto ao marido. Nós
adorávamos! E ela, na sua altiva resiliência, cada vez mais, via-se na condição
de uma desconhecida cuidadora.
A cada termo que tio Beto nos ouvia
dizer, daquele palavreado inventado, ele sorria e seus olhos ficavam marejados.
E nós disputávamos para falar mais alto, para sentar no colo dele em primeiro
lugar, sem nunca nos darmos conta da emoção que nossa visita causava nele.
O fato de tio Beto se alterar, preocupava a esposa, mas esses momentos
valiam a pena. Eles traziam um pouco do que restava do passado, vinha-lhe à
mente a alegria contagiante do marido, o amor que os unia, enfim, resquícios da
felicidade que viveram um dia. Célia,
companheira de décadas, fora definitivamente esquecida; em contrapartida, as
crianças e suas alegres brincadeiras jamais, essas permaneciam no mais profundo
e inexplicável recanto da memória, totalmente preservadas.
Hoje, olhando para trás, acho tudo muito
interessante. Do que nossa mente mais gosta e prefere recordar, ninguém tem a
menor ideia. Esses caminhos são o
verdadeiro segredo, principalmente para pessoas especiais como o tio Beto.
muito bom!
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