Promessa
não paga
Ises A. Abrahamsohn
No meio dos foliões vi, num relance, o
Bino. O Bino! A fantasia e a pintura do
rosto disfarçavam bem, mas era ele mesmo, eu o reconheci. Não creio que me viu.
Também não cheguei a ver com quem ele estava no baile. Aqui do camarote posso
ver as pessoas pulando lá embaixo, mas o perdi em meio à folia.
Já se passaram tantos anos... A gente morava na
mesma rua da Mooca. As casas modestas, todas
iguais, de pedra cinza, com uma veneziana e porta abrindo para a calçada. A
maioria dos moradores era italiana, vidreiros de profissão. Nas pequenas
oficinas do bairro a massa incandescente ainda era moldada a sopro e pelas
hábeis mãos dos imigrantes do Vêneto.
A criançada brincava na rua, onde apenas vez por
outra aparecia uma caminhonete para retirar as encomendas. Formávamos um bando
de umas quinze crianças. Ao escurecer as mães, tias ou avós gritavam os nomes chamando
para o jantar.
Lembro que o nome dele era Mário. O apelido
veio de como a mãe o chamava, “Bambino”, e assim ficou sendo Bino. Frequentamos
a mesma escola de bairro. O Bino aos quatorze anos destoava dos companheiros.
Era o mais alto, muito magro, tímido e bem educado. Não fazia parte da turma que assobiava e
dirigia gracejos indecentes às meninas. Durante alguns meses ele vinha à minha
casa para estudarmos juntos. Era bom em latim e francês, matérias do chamado
ginásio. Nós líamos muito; livros emprestados da biblioteca central. Conversávamos
bastante sobre as leituras. A família do Bino era muito religiosa. Nas poucas
vezes que fui lá buscar algum livro, olhava fascinada o altar montado sobre o
aparador com os santos, velas e sempre, sempre flores frescas. Ao entardecer em
frente ao altar rezavam o rosário acompanhando a transmissão do rádio.
Quando terminei o ginásio, meu pai anunciou que
iríamos mudar para Santo Amaro onde eu cursaria o científico no colégio
estadual.
Ao me despedir do Mário, pareceu-me muito
abatido. Por fim, contou. Os pais não
tinham mais como sustentar seus estudos e aos seus quatro irmãos menores. Ele
teria que trabalhar como aprendiz ou, se quisesse estudar, teria que ir para um
seminário e tornar-se padre. Havia uma tia rica disposta a lhe custear os
estudos. Tinha a ver com a promessa feita pela tal tia a algum santo de ter um
sobrinho ordenado padre. Ele, agoniado, me confessou ter escolhido o seminário.
Fiquei chocada. Conhecia meu amigo bastante bem e de nossas conversas sabia das
dúvidas que então já tinha sobre a doutrina. Mas o que poderia lhe dizer?
Apenas o abracei e disse que promessas feitas para alguém outro cumprir não
deviam agradar aos santos nem ser levadas a sério.
Nunca mais o vi até há pouco. Nove anos se
passaram. Desci do camarote para tentar encontrá-lo em meio aos foliões. Logo
avistei o seu chapéu de pierrô. Chamei: Mário! Bino! Após um minuto de hesitação, me reconheceu.
―
Cecília! Vamos para longe do barulho.
Contou que decidiu sair quando estava no
terceiro ano do seminário. Os pais e a tia fizeram de tudo para ele ficar, mas
em vão. Foi expulso de casa. Conseguiu um emprego de vendedor durante o dia e
entrou direto no curso de direito na São Francisco. O ensino no seminário era
muito bom. Morava numa pensão e iria se formar em dois anos. A tia nunca o
perdoou. Há poucos meses fizera as pazes com os pais. A moça com quem dançava
era colega e namorada. Queriam casar-se ao final do curso.
Deixei-lhe meu número de telefone. Ao se
despedir disse:
―
Nunca esqueci o que me disse quando nos despedimos. Me ajudou a tomar a decisão
correta e abandonar o seminário.
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