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CADÊ?
MARIO AUGUSTO MACHADO PINTO
Já estava acordado quando o celular
tocou. Era o Mano dizendo que recebeu telefonema de um dos guardas florestais
avisando que algo estranho estava acontecendo na Reserva Carolá: os índios
estavam reunidos cantando e dançando ritos destinados a demonstrar descontentamento.
Não sabia porquê. Nesse instante a linha caiu e perdeu contato, por isso não
tinha mais detalhes, mas mesmo assim considerava preocupante a situação. Respondendo
à sua pergunta disse que iria com ele e o ajudaria dentro de limites.
Eu sabia que essa ida do Mano à Carolá refletiria
no seu programa de visitas projetadas para o segundo trimestre, mas ele não se
aborreceu: não era a primeira mudança nem seria a última a acontecer. Em todo
caso, ajudaria a quebrar a pasmaceira em que havia se transformado seu
casamento. Bizuca (pelos meus caracóis, que apelido!) botou na cabeça que Mano
estava tendo caso com uma das mulheres da tribo. Conheci a jovem – imagina só:
cara de malandrinha, bonitinha, 22 aninhos, quase nua e com tudo no lugar
certo! pitéu dos deuses! A verdade é que Mano não tinha envolvimento, dizia que
relacionamento com mulheres da tribo acabaria com sua autoridade fator fundamental
no exercício da sua função. Pra ele não era caso encerrado pois nunca existiu,
mas mudou seu comportamento de alegre pra meio sorumbático. Em sua casa não se
ouvia mais aquele zum zum de colmeia de abelhas nem era mais o porto seguro
onde atracava o navio da vida diária. Já não fazia mel pra Bizuca.
Bem, em todo caso disse que
com minha ajuda – não sei até que ponto - poderia adiantar a programação anual,
o que lhe permitiria gozar férias antecipadas. Conversamos sobre o assunto e no
final das contas pareceu-me animado com a perspectiva.
Após café corrido, montamos na
perua e lá fomos nós, ele dirigindo como numa disputa de rally. Era o seu normal.
Não conversava. Ficava em silêncio por longos intervalos e depois cantava. O
interessante é que cantava canções que eu conhecia, mas não mais me lembrava.
Era como volta ao passado. Importante é que as canções passavam pelo tempo, das
mais “idosas” às mais recentes e cantava, cantava com sua bela voz e dizia: é
show da Broadway para os índios escutarem e saberem que estou chegando alegre e
contente. Isso os deixa mais à vontade, sem animosidade. Apesar da explicação
notava que Mano estava tenso, gestos rígidos, fala atropelada, feições a
contrastar com a aparência exuberante do meu amigo de infância. O que estava
pra acontecer era a pergunta que eu me fazia e que não queria calar.
Pigarreou forte e iniciou o show
com musiquinhas que se aprendem no lar-escola:
“A, É, I, Ó, U, DABLIÚ, DABLIÚ
DA CARTILHA DA JUJU, JUJU”* repetia e já voltava ao silêncio.
Sabendo do procedimento, sempre
aproveito pra admirar a paisagem, a mata exuberante, lindas aves, sons que só
os iniciados conhecem quem os emite. Esse conjunto quando me atinge causa-me
arrepios. Razão tinha o poeta ao dizer que as aves que lá gorjeiam não gorjeiam
como as de cá. Cada pio faz o canto; o
cantor apresenta sua assinatura e toma posse no espaço que lhe cabe.
Assim
sem mais nem menos Mano diz bem alto:
“UM,
DOIZ, FEIJÃO COM ARROIZ, TRES, QUATRO, FEIJÃO NO PRATO *, etc..... Silêncio
novamente e uma pergunta:
—
Tô enchendo o picoá?
—
Não. por que essa cantoria toda? Tem destino certo?
—
Claro. Foi pra aprender a contar. Eles conhecem de cor. Há outras 3 ou 4 que
vou cantar. Servem pra conseguir reunir todos na praça da aldeia. Também aviso
que eu quero comer com eles. É pra preparar uma queixada. É pra dizer que que tá tudo bem. Você será convidado. Tá?
—
Tá.
Silêncio
de novo. Desta vez foi mais longo com a explicação da serventia: o que faria
era uma visita de amigo para amigos e, mudando um pouco a letra, cantou:
—
A CANOA VIROU, POR DEIXÁ-LA VIRAR, FOI POR CAUSA DA INDIRA QUE NÃO SOUBE REMAR,
PIRIRIM PRAQUI, PIRIRIM PRA LÁ*.
—
E essa aí, pra que serve?
Explicou:
—
É pra dizer que eu vou fazer as coisas certas. Sabe, pra eles Indira é o meu
serviço. Este contato é um agrado enorme pra eles.
E
assim foi cantoria por todo o caminho.
Ao
chegarmos, notei que todo pessoal da tribo estava reunido na lapa que alcançava
a cachoeira. Andaram passando por detrás da queda d´agua cada um voltava
começando a dançar. Mano parou a perua, desligou o motor e murmurou:
— Tá
mais sério do que eu pensava. Você fica; se precisar eu chamo.
E a
cantar, lá se foi ele encontrar o pessoal; recebeu e deu abraços, ensaiou uns tantos
poucos passos de dança e, afinal, passou pela queda d´agua. Cantava. Dava pra
ouvir o eco da sua cantoria:
A ROSA
FICOU DOENTE, O CRAVO FOI VISITAR, A ROSA DEU UM SUSPIRO E O CRAVO PÔS-SE A
CHORAR. PIRILIM PRAQUI, PIRILIM PRA LÁ...*.
O
grupo rodava em círculos, batia os pés no chão de terra levantando poeira que
aumentava de intensidade ao sabor da música cantada. Depois de certo tempo deu
para ouvir Mano ainda a cantar.
Silenciou-se
a cantoria. Só se ouvia o bater dos pés no chão a levantar cada vez mais poeira
que aos poucos foi ficando branca. De repente estourou a voz do Mano a gritar a
plenos pulmões:
— I
DID IT MY WAY** a repetir só essas
palavras, a voz ecoando cada vez mais fraca.
Só havia
a agitação da dança, o bater dos pés no chão e mais forte se fez ouvir
— VOU
PARTIR, BAIXO ASTRAL, VOU PRA PORTO ALEGRE, TCHAU, TCHAU...***.
Entoou
muitas vezes até voltar à agitação que se seguiu ao silêncio. Todos se
retiraram a entoar cantoria dodecafônica.
Nunca
mais ninguém viu o Mano e os Iapurá diziam que ele sumiu na nevoa da boca da
gruta da queda d´agua.
Foram
feitas expedições, inquéritos, processos, buscas pessoais e coletivas: nada,
nadinha foi encontrado. Prestei dezenas de depoimentos, consolei, chorei e
quase me perdi de saudades e dor. Nada!
Concretizando
o que me prometi, hoje estou cá. O local está abandonado. Os Iapurá se foram. Só
há uma trilha. Fiz o mesmo caminho, cantei os versos das mesmas músicas, dancei
o ritual pra passar por detrás da queda d´agua. Fiquei surpreso ao encontrar na
entrada da gruta dois pilares antigos, lascados, escrevinhado no maior:
VOCÊ
QUE VAI ENTRAR, VAI VOLTAR?
Já estavam ali? Sim! Não! Desde
quando? Como foram escritos? Quem escreveu? Mano leu? A pergunta permanece: Se
foi, onde está? Cadê ele? Cadê? Cadê?
Nadin, seu filho de quase dois
aninhos tem a resposta:
O GATO COMEU.
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