O corso passou e Veridiana não viu
José Vicente J. Camargo
O
carnaval já teve seu tempo áureo longe das redes sociais principalmente nas
pequenas e medias cidades do interior onde a folia imperava entre as famílias.
Um dos pontos altos era o desfile do corso pelas principais ruas. O público se
aglomerava nas calçadas, nas praças e nas varandas das casas privilegiadas por
estarem na passagem da folia.
Veridiana
era uma das foliãs. Sua vontade de pular carnaval vinha desde a infância. Ela
própria não sabia explicar quando nem como começou. Simplesmente o desejo de
fantasiar-se, de colocar os adereços e a maquiagem ia ficando cada ano mais
forte. Começava pelas marchinhas de carnaval, que meses antes dos dias oficiais
da folia, a rádio da cidade tocava da manhã a noite a altos sons. Veridiana as decorava
e passava os dias cantarolando por onde fosse. Seu nervosismo crescia a medida
que o reinado de momo se aproximava. Sabia de cor a história do carnaval que se
orgulhava em contar aos amigos:
— Vocês
sabem que o carnaval no Brasil teve origem em Portugal onde, nesses dias, as
pessoas jogavam água, ovos e farinha umas nas outras? Aqui, o primeiro bloco
surgiu em 1855 fundado pelo escritor e boêmio José de Alencar. As primeiras
modinhas em 1880. A mais famosa, “O Abre Alas” de Chiquinha Gonzaga cantada até
hoje, foi composta em 1899. A primeira escola de samba em 1928 e se chamava
“Deixa Falar”, hoje “Estácio de Sá”. O primeiro rei momo desfilou no Rio em
1933 e era o próprio rei da canção Silvio Caldas.
— Que surpresa! Retruca um dos amigos. Mas acho
que você com essas histórias está dando uma dica sobre sua fantasia. Acho que
vai ser de “dengosa década de 20!”.
— Nada
disso! Tá muito longe, vai pensando...
— E vai sair no corso? Indaga ele
— Lógico!
É do que mais gosto, para mim o ápice da folia. Não perco um desde meus dezoito
anos quando meu pai consentiu. Tenho lugar cativo na caminhonete do Luizinho.
Ajudo na decoração. Este ano vai ser em homenagem a lava jato...
— Ah!
Sorri o amigo. Então vai sair de bandida jogando grana pros foliões...
— Errou de novo! Emenda
ela. Mas tem um senão me chateando! O Eduardo tá emburrado comigo. Diz que
namorada dele não fica se exibindo por aí... Ele não gosta de brincar e não
quer me deixar participar do corso. Me faz ameaças com separação, brigas....
Chego até a ficar com medo. Não sei que faço. Acho que vou dar uma pausa e depois
penso melhor se continuo. Não acho justo tirar minha alegria daquilo que mais
gosto. E o tempo não dá bis...
— Ciúmes é fogo minha amiga! Você
tem razão, vá em frente e mostre a ele que estamos no século 21. Mulher não é
acessório de tiracolo, tem vontades e direitos que devem ser considerados.
Na
quarta-feira de cinzas, o sino da igreja matriz chama os fiéis para as receberem
iniciando a quaresma. As corolas de véu e roupas pretas se agrupam nos bancos não
tão interessadas nas cinzas, mas muito mais nas fofocas sobre os motivos do
crime que desde domingo de carnaval vem escandalizando a cidade.
Para a
crônica do jornal local não há dúvidas: “Ciúmes e defesa dos direitos”
Pelo rolar
dos acontecimentos, Eduardo muito nervoso sobe na caminhonete preparada para
iniciar o corso com uma arma na mão e tenta tirar a força sua namorada
Veridiana fantasiada de pirata com punhal, espada, tapa olho e um short justo
que não escondia a falta da perna de pau, aos gritos de: “falei que te mataria se participasse”, dando a impressão de um
feminicídio. Porém, movida pelo ímpeto de não deixar sua alegria morrer, ela
saca o punhal da sua fantasia e lhe enfia no peito. Ele, curvado pela dor, consegue
disparar o tiro fatal...
Neste
ano o corso foi suspenso. Para o próximo, em homenagem a Veridiana, Luizinho promete
enfeitar sua caminhonete de rosa e azul. Eles de rosa distribuindo beijinhos,
elas de azul dando salvas com punhos cerrados...
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