DOMÍNIO PÚBLICO - Antonia Marchesin Gonçalves



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DOMÍNIO PÚBLICO
Antonia Marchesin Gonçalves

                   Folheando o jornal me chama atenção uma noticia sobre Jose Bento Monteiro Lobato, cujas obras deste grande brasileiro, que foi escritor, jornalista, pintor, empreendedor, diplomata, crítico de arte, editor, publicista e agitador (no bom sentido), tornaram-se, após 70 anos de sua morte, de acordo com nossa legislação sobre direitos autorais, o chamado “domínio publico”. Entendo que grandes autores são usados com outras interpretações, mas no caso de Monteiro Lobato, com sua obra O Sítio do Pica-Pau Amarelo, seja modificada para o que consideram o politicamente correto para as novas gerações a lerem.

                   Eu imagino se ele ressuscitasse e ficasse sabendo que seus personagens não são bons exemplos para serem lidos. Por exemplo, Tia Anastácia, negra com vestimentas de escrava, teria que ser chamada de afro descendente e usar roupas de acordo com sua origem, Narizinho (por seu nariz empinado) criticada como uma inglesinha, quando na realidade Lobato deveria tê-la descrito de pele negra, quando ele a descreveu de pele cor de jambo. Pedrinho por  Lobato não é o mais brilhante da história, segundo os críticos, ele não gostava de meninos. A avó Dona Benta é a sabedoria em pessoa, que junto com Anastácia administra o sítio e ensina as crianças. Outra  personagem  feminina é a Emilia, boneca de pano, a mais esperta, inteligente e muita criativa com suas curiosidades, invenções e perguntas, dizem os críticos o fazem talvez um feminista.

                   Eu vejo Lobato lendo isso, será que tentaria ele argumentar,  por  exemplo, o Visconde de Sabugosa, muito culto e inteligente, argumentar outros tantos personagens defendendo-se. Não acredito, teria ele dificuldade de entender o que estão querendo fazer com os seus livros, tirando toda a originalidade criada por ele, de acordo com sua época , sua visão sobre criação, educação e incentivo ao saber, perguntar, criar mesmo errando, mas acima de tudo, ser desrespeitado como autor na sua obra, não concordaria com os politicamente corretos e com certeza vendo tanta incompreensão e ignorância, preferiria voltar pro tumulo.

                   Meus filhos cresceram lendo, assistindo o Sítio divertindo-se muito, faziam no sítio da família com o sabugo de milho o seu visconde, usando a imaginação com tudo que ali tinha, baseados nas histórias de Lobato, e nenhum deles em momento algum sofreu influências negativas, ao contrário das cartilhas atuais nas escolas, doutrinando as crianças para o socialismo agressivo, tentando a lavagem cerebral na nova geração.

                   Não aceito esses tais críticos e acho que deveríamos transformar essas críticas em mais amor ao próximo, ao planeta e à tudo,  respeitando a liberdade de ideias e de pensamento e estimular a criatividade do ser humano para o bem, não querendo se renovar anulando os nossos grandes autores.
                  



Encontro inesperado ou A amiga da onça - Ises A. Abrahamsohn



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Encontro inesperado ou A amiga da onça
Ises A. Abrahamsohn

Tenho uma surpresa pra você! segredou Olga assim que me abriu a porta. E mais não disse, mesmo quando insisti.

Na sala vi que conhecia todos os convidados. A conversa girou sobre os assuntos de sempre: política, filmes, os últimos desastres e algumas fofocas inocentes. Estava meio alheia, pensando no que minha amiga de muitos anos teria preparado.

Íamos nos servir do caprichado almoço quando a campainha tocou. Um convidado atrasado. Quando o vi fiquei paralisada. Uma sensação estranha de aperto no estômago me subia pela garganta. Não quero que ele me veja assim perturbada meu Deus, preciso me controlar por que Olga enche as paredes com esses quadros escuros? lá está ela, sorrindo por que o convidou? como estou? este vestido me cai bem azul, combina com meus olhos poderia ser mais justo que bobagem para que?

Ele me viu. Vem para cá. Me reconheceu coragem Lia ombros para trás mamãe dizia porte de princesa vem sorrindo, o mesmo sorriso cativante de há trinta anos tenho que controlar o meu nervosismo. Ele me estende a mão. Não vou deixar que me dê os beijinhos de praxe...

Olá Renato, há quanto tempo... Consigo dizer com voz normal enquanto aperto-lhe a mão de modo eficiente e burocrático. Não sabia que estava de volta ao Brasil.

Olhou-me nos olhos e retrucou:

Vim para ficar, chega de me sentir exilado, tenho saudades de tudo aqui inclusive de você. Conto-lhe tudo durante o almoço, disse o sedutor enquanto me segurava o braço na tentativa de me guiar para uma mesa no terraço.

Eu não esperava um ataque tão rápido. Conhecia as táticas. O olhar insinuante, a intimidade invasiva, o movimento das mãos... Ainda era atraente aos cinquenta anos. Me esquivei com a desculpa de lavar as mãos.

No lavabo recuperei o controle. Ele ainda me perturbava, mas não como antes. Eu o adorava, íamos nos casar em três meses e estudar na França. Me lembro bem do bilhete covarde que deixou. Dizia apenas: “Desculpe, Lia. Embarco hoje para a Austrália com a Marion. Foi bom enquanto durou”.

Olga estava ocupada com os convidados. Uma das copeiras me abriu a porta. Andei rápido até o carro.

Meu marido estranhou:

Voltou tão cedo...

Não me senti bem, acho que foi o vinho. Demorou demais. Nem comi nada. Depois ligo para a Olga.


PERSONAGENS - Sérgio Dalla Vecchia




PERSONAGENS
Sérgio Dalla Vecchia

Um escritor numa noite clara, deslumbrado pelo brilho dos trilhões de pontos redondos da abóboda celeste, começou a enredar uma história.

Escolheu três pontos redondos não colineares e lembrando da geometria, criou um plano passando sobre eles.

Nele buscou o porquê de tamanha uniformidade naquela superfície imaginária e percebeu que a causa era a mesmice e a monotonia.

Não tinha a graça dos pontos redondos, que com seus movimentos de rotação rodopiavam invertendo sempre as posições perante o Universo, fornecendo um dinamismo alegre e solto ao cenário.

Lá na abóboda estavam os três pontos dinâmicos atrelados ao plano, esforçavam-se nos rodopios, mas nada de animar o estático plano.

Então o escritor preocupado com os leitores, buscou uma alternativa para animar o enredo.

Zaz! Veio a inspiração. Criou um novo personagem.

Assim escolheu mais três pontos redondos e imaginou um outro plano.

Pensou na intersecção dos dois e dela surgiu seu novo personagem.

Reta era o nome dela.

Assim que ela entrou no enredo, acabaram-se os problemas de ação.

Agora os dois planos eram rivais e disputavam o charme da decidida e imutável reta.

O escritor contente encerrou os trabalhos e pegou a reta de casa sem demora.

Férias de Carnaval - Maria Luiza C. Malina




Férias de Carnaval
Maria Luiza C. Malina

Agora coloco uma pitada de inveja na nova geração.

Estudávamos demais para não ficar de 2ª. epoca. Sabe por que? Porque nossas férias eram maiores do que as atuais, as aulas eram iniciadas após o carnaval e, a segunda época, justamente no período do carnaval que, já foi minha festa preferida. O último de que me lembro de ter participado entusiasticamente, foi aquele que...

Bem, esbaldávamos em finais de tardes na praça da Igreja, depois do toque do sino das seis badaladas, parecia que era ele quem chamava a turma para lá. Parecia um formigueiro. Os passantes de lá para cá e, de cá para lá. A paquera era roubar o namorado da então caipira, mas isso não dava certo. Pegou na mão já era “cumprumissu assumidu”.

Mas.... Ah este, mas!

Mas, sempre havia uma brecha e eles notavam a “açanhadice das moças da capitar” – carta marcada – todos e todas de prontidão para mais uma luta.

No baileco a coisa esquentava, com martelinho na mão gritando “quénc...quénc...” os atingíamos pelas costas, sem a parceira perceber e nela, sangue de boi, quando se virava para a esquerda de onde viera o jato já estávamos a uns três passos à frente, à direita. Assim foi.

De carta marcada a jovem casadoira deveria ser levada para casa. E ele...rapidinho voltava para a folia, esplendoroso como ele só – e, é claro que as famílias sentadas em suas mesas cativas, de longe tudo se via e nada se comentava – rolou um beijo. A coisa pegou

Não sei quem dos quénc... quéncs... também procuradores de uma moça de bom comportamento, encheu a cara da minha carta marcada. As famílias levantaram-se e o escândalo rolou pela cidade à fora.

No dia seguinte precisei embarcar para a “capitar”, com a carta marcada acenando por detrás de uma árvore na praça. No ano seguinte voltei, mas com um anel brilhando no dedo e à tiracolo, o noivo cujo braço no meu ombro, pesava mais do que um saco de café tão amargo quanto a saudade do primeiro beijo roubado.



O ENCONTRO MARCADO - Ledice Pereira







O ENCONTRO MARCADO
Ledice Pereira


Aquela reunião havia sido marcada com toda antecedência. A comissão organizadora pensara em tudo: local, crachás, data propícia, cobrança antecipada.

Agora que a data se aproximava eu sentia calafrios. Depois de quarenta anos, um reencontro.

A lista de confirmação estava no site. E o pior, ou melhor, o nome dele estava lá, com número do telefone fixo e do celular.
Nunca mais o vi só de pensar que vamos ficar cara a cara fico em pânico meu coração acelera não posso demonstrar que ele ainda mexe comigo juro que pensei ter superado isso mas foi só ver o nome dele pra que todo aquele sentimento amortecido voltasse latente.

O encontro estava marcado para o próximo fim de semana. Agora eu não tinha mais como recuar nem inventar uma desculpa. Afinal, o hotel fazenda estava reservado e pago. E não era barato!

Conforme o roteiro, a chegada programada para sexta-feira à noite incluía um coquetel de boas vindas e jantar em volta da piscina.

Que vale que era perto. Se fosse o caso eu daria meia volta.

No dia, entretanto, caprichei no visual. Escolhi uma roupa descolada, moderninha, fiz uma maquiagem discreta e lá fui eu vencer os quase 70 km até São Roque.

O trânsito de sexta-feira, pra variar, estava intenso. Coloquei uma música da minha playlist do Spotify no intuito de me acalmar.

Como será que ele está será que envelheceu muito e se não me reconhecer...
Cheguei um pouco antes das 20:00h. Da entrada, pude ouvir o burburinho que vinha da piscina. Fiz o check-in rapidinho. O coração pulsava como o de uma adolescente.

Logo, vieram me receber, colocando-me no peito um crachá e me oferecendo uma taça de prosecco.

Eu procurava algum conhecido. Não reconhecia ninguém. Estavam todos tão diferentes. Ou gordos, ou de barbas e bigodes brancos ou carecas.

As mulheres me pareciam mais familiares. Mas eu olhava sem ver.

De repente, eu o vi. Ele também me viu. Veio vindo em minha direção sorrindo. Fiquei estática. Não sabia o que fazer.

Ai meu Deus me ajude! Não permita que eu desmaie!

Ele se aproximou. O mesmo sorriso!

Os cabelos grisalhos o deixavam ainda mais charmoso.

─ Nossa! Você está igualzinha. Eu te reconheceria em qualquer lugar. Não está me reconhecendo?

Eu sentia o rosto queimar. Devia estar parecendo um pimentão vermelho.

Ouvi minha voz saindo lá de dentro num sussurro sem graça:

─ Claro que sim. Você também está ótimo!

Não consegui salvar minha taça, que escorregou da minha mão, indo se espatifar no chão.

Fui socorrida por alguns que conheciam nossa história e preferiam assistir de longe àquele reencontro.

Aos poucos, consegui me refazer e participar do grupo.

O final de semana foi divertido e teve mil atividades.

Fiquei sabendo que Geraldo estava divorciado e só.

Eu também havia saído, há poucos meses, de uma relação conflituosa, jurando que nunca mais me envolveria com alguém.

Trocamos celulares e prometemos nos ver.

Acho que não vou conseguir cumprir meu juramento.



O MENINO DO BONÉ VERMELHO - Oswaldo U. Lopes




O MENINO DO BONÉ VERMELHO
Oswaldo U. Lopes


         Passou apressado, correndo. Parou diante da vitrine da loja de Artigos Esportivos e ficou olhando a camiseta que fazia tempo namorava. Deu empate ela custava cinquenta reais e era essa a quantia que ele tinha no bolso do casaco.

         Enfiou a mão nesse bolso, para sentir o dinheiro e ai tristeza imensa, não achou nada além de um furo grande lá no fundo,  por onde os pobres reais tinham escapado.

         Se soubesse a letra teria começado a cantar “meu mundo caiu”, mas o fato é que seu mundo caíra. Foi quando ouviu um zumbido e sentiu uma pedra grande passar e explodir na vitrine que se fez em pedaços. Armou-se a confusão, o dono da loja saiu na rua, um pedaço do vidro atingirá a menina Júlia que morava perto e estava passando na hora H.

         Ela caiu, ele achegou-se e viu sangue, muito sangue no rosto dela. O dono da loja olhava para ele muito desconfiado, começou a juntar gente em volta, parados na calçada, olhavam a cena. Acenderam uma vela. No Rio de Janeiro, acender velas continua sendo uma profissão, como cantava Nara Leão (música de Zé Keti).

         Ouviu-se um grito no meio da pequena multidão “pega ladrão”, o menino do boné vermelho pensou rápido, vai sobrar para mim, se vai pelo menos vou levar alguma vantagem:

— Um médico, chamem um médico, antes que seja tarde demais (Nara Leão de novo).

         Aproveitando a confusão, ele passou a mão na amada camiseta e se mandou.

         Nisso a menina Júlia, como que recuperou a consciência e sentou-se na calçada. Alguém apareceu com um lenço e ela enxugou o rosto e sorriu. Todos em volta também sorriram felizes por vê-la bem e até apagaram a vela!

         Foi só então que o dono da loja, olhando a vitrine despedaçada, deu por falta da linda peça.

         Oi, você quer saber quem jogou a pedra? Eu também.

CURTAS E CÍNICAS - Oswaldo U. Lopes




CURTAS E CÍNICAS
Oswaldo U. Lopes

1 – Mariazinha a do comportamento duvidoso
         Como muitos sabem a Mariazinha é que nem o Joãozinho, só que do outro gênero. Franca, direta, viva e às vezes um pouco inadequada. Essa é a razão pela qual eles raramente são vistos juntos. Armariam uma confusão incomensurável.
         Bem, nesta história o par dela era o Alfredinho, um pouco simplório, mas justamente por isso parceiro, ideal para ressaltar as qualidades dela. Foi quando resolveram que era hora de fazer xixi e aí começou a confusão. Mariazinha viu que ele fazia em pé e não precisava se agachar. Achou muito prático e próprio. Dai resolveu espernear e gritar que queria ali e agora um daqueles.
         A mãe veio correndo achando que ela estava aprontando outra e ouviu a reclamação e o desejo imediato de um daqueles.
Então explicou:
— Agora não é possível, mas quando você crescer e se comportar bem vai ter um só para você.
— E se eu não me comportar, retrucou a Mariazinha, que burra não era e sabia a pestinha que saíra.
— Bem, ai vai ter uma porção.

2 – A história da leoa e do emponderamento feminino
         Há não muito tempo, era frequente passarem na televisão, um daqueles vídeos da vida animal, filmado em alguma reserva na África. Várias coisas chamavam a atenção na luta entre o leão mais jovem que desafiava o mais antigo.
         Não lutavam até a morte. Lá pelas tantas o velhote se retirava confirmando a soberania do desafiante. O narrador no informava que o retirante iria morrer de fome em pouco tempo. O leão jovem herdava o harém do outro o que significava cinco ou seis leoas e suas crias.
         Para enorme surpresa dos espectadores o novo soberano ante o olhar impassível das mães, ia matando um a um os leãozinhos filhos do derrotado. Isto era anunciado, como feito, para evitar concorrências no futuro.
         Sempre me choquei um pouco com aquela história e usava o fato para situar a questão da cogniscência. Entre os humanos era possível mudar os costumes a partir da evolução do pensamento e da maneira de encarar e viver na sociedade. Um comportamento como o observado entre os leões, se existente algum dia, não seria admissível hoje.
         Já entre os grandes felinos a coisa era antiga e continuaria imutável. Não imagino ninguém tentando doutrina-los a respeito do infanticídio.
         Bem, outro dia me contaram que numa versão mais recente do combate dos reis da selva, a leoa resolveu se insurgir e botou o leão para correr, salvando sua cria.
         Perguntaram-me o que eu achava.
         Hesitei um pouco, mas formulei o meu pensamento.
         — Essa mania de construir pousadas, superequipadas, nesses parques safari, cheias de conforto, inclusive gigantescas televisões nas varandas que os animais podiam ver de longe, dava nisso. O emponderamento feminino chega à floresta.

3 – Telefone celular um pouco antigo
         Meu celular e um modelo antigo que serve perfeitamente minhas necessidades. Meus próximos chamam-no de orelhão porque eu mais falo do que recebo, mas é inapropriado e apenas má-lingua dizer que Moises quando desceu do Monte Sinai tinha um desses na mão.
         Dia desses, minha neta que, logo logo, estará no comando de alguma startup, passou a mão nele e começou a fazer pequenas alterações, do tipo: ele se abre com a foto de um por do sol sobre uma linda ponte, depois de algum tempo ligado ele entra em compasso de espera com um bonito girassol e se fecha com uma gota caindo num belo lago azul.
         Comentei com meu filho que estava bonito, mas que isso ia acabando com a memória do dito cujo que não é das maiores. Comentário dele:
— Pai o seu celular não tem memória, tem uma vaga lembrança!
         Retruquei no calor da refrega:
— Desgraçado, vai falar isso para sua mãe.
         Ele foi e agora são dois a injuriar meu celular.


O CUSTO DA AUTORIDADE - Sérgio Dalla Vecchia


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O CUSTO DA AUTORIDADE
Sérgio Dalla Vecchia


Lá pelos anos oitenta eu gerenciava várias obras na cidade de São Paulo e municípios vizinhos.

Engenheiro civil já com experiencia em obras de infraestrutura, tocava com responsabilidade os negócios, esforçando-me para atingir as metas de produção.

Problemas dos mais diversos ocorriam no dia a dia em decorrência da dinâmica das obras. Panes nas horas mais inesperadas, surgiam nas máquinas e caminhões. Faltava o operador de uma máquina imprescindível naquele dia. Despencava chuva na hora da aplicação da massa asfáltica, paralisando os serviços. Era um clima constante de surpresas e tensão!

Certo dia, o chefe da oficina mecânica veio me relatar que o mecânico socorrista do caminhão oficina andava parando em botecos. Ele já tinha sido advertido, mas insistia na conduta. Era um homem de meia idade e forte. Tinha fama de violento no meio dos trabalhadores e na região.

O chefe pediu meu aval para demiti-lo, no que concordei plenamente.

No dia seguinte quando cheguei ao canteiro de obras deparei com o sujeito conversando com o encarregado administrativo, na sala ao lado.

Entrei na minha sala e mal me acomodei na escrivaninha, quando o intempestivo mecânico a invadiu.

Jogou a carteira de trabalho sobre a mesa e logo esbravejou.

Por que fui demitido?

Tentando me controlar, respondi que ele bem sabia o motivo e estava feito.
—Isso não é motivo. Uns goles não fazem mal nenhum.

Eu estava em pé com as duas mãos sobre a mesa e enquanto insistia que estava certo, cutucava fortemente uma das minhas mãos com o dedo, até que olhou bem nos meus olhos e disse:

— Carinha bonita hem! Vamos ver como vai ficar depois.

Nesse instante já havia se formado uma rodinha de colaboradores atraídos pelo áspero diálogo.

Foi a gota d´água para meu sistema defensivo, não me contive e ordenei:
 — Ponha-se daqui para fora!

Repeti uma vez, nada!

Outra vez, nada!

A terceira foi acompanhada de uma saraivada de tapas, que ele surpreso se desequilibrou, e de costas foi de encontro à porta do banheiro, onde caiu.

Logo foi acudido e o levaram para fora da sala, onde de lá me ameaçava:

— Venha aqui para fora!

— Venha aqui para dentro, respondia eu com o fígado!

O diálogo a distância durou pouco e o valentão logo foi levado para fora do canteiro.

A adrenalina baixou e logo vieram me cumprimentar pela reação.

— Ele mereceu mesmo. Provocava todos nós. Se achava o valentão, confessaram alguns dos homens.

Meu ego agradeceu as palavras, que validaram a legítima defesa da minha atitude.

Fiquei com a consciência tranquila em defender a honra e manter minha autoridade de líder perante todos.

Segui em frente com meu trabalho.

Aconteceu que o instinto de sobrevivência martelava minha cabeça dia e noite sem parar.

Durante o sono agitado vinha à mente mil conjecturas: ele devia estar blefando quando ameaçou, era um momento de raiva, mas era valentão, talvez queira se vingar mesmo do vexame que passou, quem cuidará de minha família, preciso me precaver!

Dai por diante comecei a andar armado. No porta luvas do carro e na inseparável pasta de engenheiro.

Quando na sala, a porta ficava aberta com vista para a portaria e a mala aberta sobre mesa expondo a arma pronta para usar.

Assim nesse clima foi passando o tempo.

Vez enquanto alguém me avisava que o sujeito estava no bar da esquina. Era o suficiente para meu coração acelerar, adrenalina subia me deixando pronto para o combate.

Passou mais um tempo e eu sempre alerta!

Certa ocasião, estava parado no trânsito, quando vi a silhueta do mecânico se aproximando pela calçada. Instantaneamente empunhei a arma, mas para minha surpresa, ele apesar de conhecer meu carro passou direto sem me encarar.

Aliviado do susto, agradeci a Deus e continuei na vida de vigília.

Alguns meses depois, enquanto conversava fora do carro vistoriando uma obra, notei que vários operários saíram de uma grande oficina para o almoço e dentre eles lá estava “ele”!

Vinham na minha direção.

Antes mesmo de me preparar para a defesa, percebi que o valentão se desgarrou do grupo e atravessou para o outro lado da rua.

Muito surpreso e contente, tal atitude me fez entender que o caso estava encerrado.

Esse foi um dos dias mais felizes da minha vida. Nasci de novo.

Fui para casa mais cedo, logo abracei esposa e filhos, emocionado e felicíssimo por saber que não era mais a última vez.

Que alívio!

A MULA QUE NÃO ERA BURRA - Oswaldo Romano



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A MULA QUE NÃO ERA BURRA
Oswaldo Romano


         Depois da jornada na lavoura de algodão do pai, eu tomava o rumo de casa.
        
         Preparava o animal para regressar à cidade. Montava a Rola, a mais bonita e uma das mais inteligentes mulas que já tivemos.

         Nesse dia foram duas surpresas. Hoje conto uma.

         Quando saía da casa da colônia, casa de pau a pique, que ficava praticamente no meio da plantação do algodão a mula titubeou seguir. Dava alguns passos e estancava.

         Ai quem parou para pensar fui eu: o que fiz de errado, o que está faltando? Ela não é disso! Fiquei aí, pensando, vendido. Estaria ofendida comigo...

         O tio Artur, administrador da plantação, aguardando a saída, me olhava e dava de ombros. Por duas vezes. Também não entendia.

         Fazer o que? - Desmontei do robusto animal. A acariciei como sempre fazia, roçando minha face em seu rosto, dando-lhe duas três palmadinhas.

Imagina se cutucasse com as esporas, e ela burra não entendesse a mensagem. Podia, revoltada, empinar e me jogar no chão. Ainda, limpando a área, soltaria o costumeiro estampido e o coice. Difícil de acontecer porque somos amigos, mas tudo tem a primeira vez, imagine com burros.

         De novo, sem falar nada, pensei: está tudo em ordem... aí lembrei, a barrigueira, é isso!

         —Tio, folgue as barrigueiras, veja se alguma coisa a incomoda, talvez debaixo das selas.

O tio soltou as fivelas e foi dizendo:

         —Wado, tá tudo em ordem.

         —Tio, o que será que está acontecendo. Vamos esfriar a cabeça, enquanto isso por favor, tô com sede, pegue um caneco d’água.

Quando eu tomava água a Rola, num esforço, virando o pescoço olhou para mim, seus olhos brilhavam de vontade. Mesmo com dificuldade pois, o tapa olho atrapalhava.

Na hora o tio matou a charada. Voltou-se rápido, alcançou e encheu um balde de água.

Enquanto isso, tirei o freio, livrando sua boca.

Quando chegou a água, com três quatro sugadas o deixou vazio.

         A tia Áliche, com seu vestidinho de chita quase roçando o chão, aparecendo o pé descalço, assistia.  Assistia impávida a tudo, enquanto via eu partir. Virou-se para o tio:

         — Mama mia. Porque deu minha água da manhã pra coitada. Era pra lavar a louça com ela. Podia pegar uma fresquinha...

         — Tá bene. Vou no poço, te puxo outra!