Histórias
de Ernestina
Maria Verônica
Azevedo
Aqui
da minha janela observo o que acontece. É pra movimentar a vida.
Nesta
cidade é assim mesmo, não tem jeito de entabular muita prosa, porque o povo é sempre
atarefado. Ernestina está debruçada na janela do sobrado que vem da família.
Daqui
a gente vê o mundo de cima. Dá pra ver tudinho até o horizonte, onde os morros
encontram com o céu. Minha casa é a mais alta do quarteirão. Era o orgulho do
meu avô. É verdade que está bem velhinha, mas até que, de vez em quando, eu
mando dar uma mão de tinta aqui e ali. E fica bonita de novo.
Ela
mantém a mesma cor há anos, não deixa variar a cor, pois o verde clarinho era do
gosto da sua avó. Os janelões, eu deixa sempre só na madeira, com um verniz,
vez por outra.
Hoje de manhãzinha, quando ela abriu
as janelas, logo percebeu que o dia ia ficar assim ensolarado.
Não dá pra apreciar o sol no rosto,
a água do café já está fervendo e a broa no forno já deve estar no ponto.
Entrou
pra coar o café e esperar o Honório sair do banho, já com tudo na mesa.
Hoje não entregaram o jornal. Ele
vai achar ruim... Não sei o que houve, para falhar a entrega. Mais tarde a
gente vai acabar sabendo. Tudo se comenta por aqui. É só esperar aqui na
janela.
¾ Ernestina! Onde
está? Não vai tomar café?
O jeito é abandonar o meu posto e
sentar à mesa com ele. Hummm... Como ele está garboso. Todo elegante com esse
terno listado. Vai ver que está esperando alguma autoridade lá na Botica. Ele é assim. Fica sempre preocupado com a
aparência. É coisa da mãe dele. Ela nem está mais aqui pra ver... Mas o hábito
ficou.
¾ Já estou
saindo. Até mais tarde.
Ufa!
Finalmente
Ela
se apressa e volta ao seu posto.
É bom ver o movimento. Ali vem o
Elpídio. Moço garboso: alto, animado, sempre com um sorriso pronto para sair no
rosto tão bonito. Uma simpatia. Toda vez que passa por aqui, olha para a casa
do Seu Leopoldo. Com certeza tem esperança de ver a Aracy. O pai dela nem
desconfia, mas eu bem que vejo... Quando ela está na janela, o Elpidio diminui
o passo. Vem andando devagar. Tira o chapéu em cumprimento. Ela não lhe nega um
sorriso.
Outro
dia notei que Aracy faz alguns sinais discretos e ele retribui com outros.
Parece até um código. Sei não. Vai entender essa moçada.
Isso
ainda vai dar problema. As famílias dos dois são inimigas políticas. Se o Seu
Leopoldo descobre...
O
Elpidio até que é bom partido. Tem conhecimento. Quando menino esteve no
seminário. Depois desgostou e resolveu viajar para o Rio de janeiro em busca de
trabalho.
Eu
é que não vou me meter nessa história. Vamos ver no que vai dar esse namorico.
Estou ouvindo um furdunço!
Alguém vinha correndo e gritando
socorro.
Parece
um menino de saia... Não, é o coroinha da igreja.
O jovem parou em frente da casa de
Ernestina.
E
eu que detesto confusão.
¾
O que foi menino? Aconteceu alguma coisa com o padre.
¾
Não senhora. Nhá Tina. O padre está bem, mas teve um assalto na porta da Igreja
Matriz. Tinha um homem parado ali com um burro carregado de mercadoria. O
bandido queria levar tudo armado com uma garrucha. O dono do burro ficou
paralisado, duro que nem santo de andor na procissão. Eu que não sou bobo nem
nada, saí logo correndo para pedir ajuda. A delegacia está fechada. Estou
procurando o delegado.
Disse
e saiu correndo.
Acho
melhor fechar a janela e entrar. Vou ficar uns tempos dentro de casa. Sempre
tem alguma coisa para fazer. Quitandas, costuras e cuidar das plantinhas.
...
Ouço
a aldrava. Tem alguém batendo na minha porta!
A tarde já ia adiantada.
Quem
será? Depois de duas semanas, fechada aqui, bem que uma conversa vem a calhar. Deixa-me
ver pela janela. É a Clarinha. Louca para contar as novidades. Eu estava mesmo
isolada, pois nem à missa de domingo tinha ido por causa da dor nas costas.
Gostei da novidade. Parece enredo de filme.
Clarinha
contou-lhe que o Dr. José, irmão da Dona
Otília, tinha vindo do Rio de janeiro visitar a família do Seu Leopoldo. Ele é
amigo do Elpídio e descobriu o interesse dele pela filha do velho. Aracy estava
aflita, porque Elpídio queria pedi-la em casamento, mas estava com receio de
ser recusado, por causa da rixa política entre as famílias.
Clarinha
ainda disse que José foi falar com Elpídio para saber a quantas andava o
dilema. O rapaz se abriu para o amigo. Estava mesmo apaixonado. Já nem dormia
direito pensando na moça. José resolveu ajudar. Foi falar com o cunhado.
Ponderou com Leopoldo que o moço era
sério, trabalhador e de bons princípios. Disse até que o cunhado, já avançado
na idade, tinha que assegurar o futuro das filhas que eram seis. Leopoldo
chamou Aracy para conversar fechado no escritório. Ela, bem apreensiva, ficou
calada enquanto o pai lhe falava sobre a seriedade do casamento. Ele perguntou
se ela sabia do interesse de Elpídio. Ao que ela aquiesceu encabulada. E tudo
ficou acertado. Podiam avisar Elpidio para vir fazer o pedido.
E assim, se casaram Elpídio e Aracy.
É melhor eu voltar para minha
janela. Que pena que
não acompanhei todo aquele movimento na casa da frente...
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