A CHAVE DA RESISTÊNCIA
Oswaldo U. Lopes
Éramos
duas iguais, antigas, grandes e pesadas. Tinha gente que dizia de nós que
éramos das primeiras e colocava nossa origem no século XVIII. Junto com nossa
parceira, a fechadura, servíamos para trancar e bloquear espaços. Móveis,
corríamos o risco de perda o que não ocorria com nossa parceira, sempre presa
numa porta ou portão.
Adivinhou,
somos chaves. Modelo antigo, feitas a mão, no geral carregadas numa argola.
Moramos e sempre vivemos numa pequena cidade italiana, na Toscana, com o
curioso nome de Bellosguardo, no caminho de Livorno. Ultimamente, nosso
habitáculo era uma sacristia, cada uma presa solitária de uma separada argola.
Era um costume ancestral, evitava a perda das duas juntas e o transtorno de
abrir o galpão na pancada.
Abríamos
e fechávamos um prédio antigo que não tinha nem janelas, apenas uma pesada
porta que ao ser aberta iluminava um amplo salão de pedra com um assoalho
rustico. Esse salão ficava encostado à Igreja e já tivera os mais variados
usos, desde guarda de vinho, guarda de azeite, depósito de grãos etc.
dependendo da ocasião e das necessidades locais. Atualmente quem cuidava de nós
era a velha Gerusa que nos escolhia ao acaso e limpava cuidadosamente o galpão.
Corria
o ano de 1943, Mussolini havia sido deposto e a Itália assinava uma paz em
separado com as forças aliadas. Durante o período da ditadura do chamado Duce
(Mussolini), a população da Itália encontrava-se dividida entre seus
partidários e seus opositores, uma divisão sangrenta que causou a perseguição e
morte de muitos civis. Mussolini governara com mão de ferro, agora, no entanto,
perdera o brilho, mesmo libertado pelos nazistas era apenas uma sombra do que
fora e dependia totalmente dos alemães para sobreviver.
Nesse
meio termo, os aliados fizeram sua primeira ação no continente europeu,
invadiram e tomaram a Sicília.
A
Alemanha não mais confiando nos italianos, por sua vez, invadiu e tomou a
Itália, instalando lá poderosas forças militares. Isso, como que uniu a
população, agora havia um inimigo conhecido e temido “i maledetti tedeschi”.
Bem e nós as pobres
chaves com isso? Os alemães tomaram Bellosguardo e resolveram fazer dela um
ponto de apoio logístico, um centro de intendência.
Nada mais simples, observaram
o galpão, concluíram judiciosamente pela sua importância, informaram-se de sua
origem e atual domínio e num átimo, invadiram a sacristia e tomaram uma de nós.
Mais tarde esse abandono de uma das chaves, revelou-se um terrível engano.
Por
hora, sopa no mel, fizeram uns poucos buracos para ventilação e atulharam o
galpão com munição e explosivos. Não se preocuparam muito com a guarda do
local, já que em Bellosguardo, nesse momento, só se encontravam velhos,
mulheres e crianças. Foi outro engano como se verá.
Havia
no povoado um bando de mulheres que integrava a resistência italiana. Não
participavam da luta armada, como mais tarde o fizeram as mulheres do Vale do Pó
e do Arno. Eram, no entanto, à sua maneira, muito eficientes na produção de
documentos falsos, sobretudo passes nazistas para facilitar a movimentação e
fuga de prisioneiros e dos partigianni.
D. Gerusa participava
do grupo, mas pela idade era das menos ativas. Cabeça e comandante do grupo era
Alicia, meia idade, que se disfarçava de viúva já que seu marido se engajara na
resistência.
Foi
de lá que vieram as instruções e o material necessário para a empreitada. Pacote
de dinamite e rastilho. Uma noite Alicia foi sorrateiramente levando de nós a
que sobrara na sacristia e colocou no famoso depósito o explosivo. Acendeu a
mecha e mandou-se. Alguns minutos depois a explosão foi de assombrar, não
sobrou nada do galpão e menos ainda de seu conteúdo.
Por
sorte os alemães atribuíram o acontecido ao material que estava lá dentro e não
fizeram as costumeiras represálias. Nós escapamos, uma no bolso do oficial
nazista e outra pendurada de novo na sacristia, depois que passara um tempo no
avental de Alicia.
Os
tedeschi abandonaram Bellosguardo e
rumaram mais ao norte. O oficial jogou a, agora inútil, chave num canto da
praça antes de partir. Ela foi encontrada e voltamos a ficar juntas, cada uma
em sua argola.
Ficamos,
é verdade, sem função, mas ainda moramos na velha sacristia, como memória das
mulheres de Bellosguardo e de seu heroísmo.
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