A Mala Preta
José
Vicente J. de Camargo
Aterrissei
no horário previsto. Seis horas da manhã. Sonolento, mal dormido, com torcicolo
e dor de costas pela incomoda posição, me arremesso para a passarela 3 A onde
devo retirar minha bagagem. “Não vejo a
hora de tomar aquele banho bem forte e demorado que recompõe as forças e tomar
aquele café que só ela sabe fazer – o do avião estava péssimo, gosto de
requentado. Antes de retirar a mala, vou dar um pulo na toalete – não sinto
vontade em banheiro de avião”.
Na
esteira das bagagens levo um susto: Será que minha mala já passou e eu não vi?
Demorei muito no banheiro? Nenhuma das malas que estão na esteira é a minha.
Que azar! Vou ter que reclamar no balcão da companhia aérea.
À
atendente explico nervoso:
− A
mala é preta, de couro, quatro rodinhas. Embarquei em Moscou, fiz baldeação em
Frankfurt, mas a mala veio direto para Cumbica. Aqui está o ticket da bagagem.
Preciso urgente dela, pois tenho nela o trabalho que fiz em Moscou e devo apresentar
amanhã aos meus clientes.
Senhor!
Grita um funcionário da companhia vindo em minha direção:
−
Sua mala deve ser essa, preta!
−Sim,
respondo aliviado, ainda bem que a encontrou.
−
Caiu do carrinho, na pista, replica.
Pego
a mala rápido e me dirijo ao ponto de táxi. Chegando em casa, beijo a esposa
sonolenta preparando os lanches para os filhos levarem à escola, e conto:
A
viagem correu bem, fora o aperto do assento e o extravio da mala que, por sorte,
acharam. Senão a viagem a Moscou teria sido em vão, pois o relatório de
trabalho que fiz lá, tenho dentro dela.
Corro
para o banho com a xícara de café – passado na hora – em mãos. Depois, relaxado,
enrolado na toalha, abro a mala em cima da cama:
“Pô!
Que é isso? Cadê minhas coisas? Não pode ser, esta mala não é a minha!”
− Amélia!
Corra aqui...
Reviso
novamente a mala e tento pôr a memória em ordem. Ela é idêntica a minha: cor,
tamanho, modelo, material. Só o interior é que difere. Mas estava tão certo de que
era a minha, que não abri para confirmar. Tampouco notei
que está sem a etiqueta de identificação, a minha tem. Me lembro que o
funcionário disse que a mala caiu do carrinho de bagagens na pista. Se foi
assim, então quer dizer que a minha mala chegou na esteira e foi retirada por
alguém.
Amélia
chega e surpresa pela visão, exclama:
− Meu
deus, que é isso!
— É
o que estou tentando decifrar.
Não
tem nada a não ser essa papelada toda em russo, com essas letras diferentes que
não entendo e esses desenhos técnicos que parecem ser de uma instalação fabril,
mas também podem ser de uma bomba ou de um míssil. Deduzo que foi também despachada
em Moscou e que essas informações devem ser importantes, pois várias páginas têm
esse carimbo “Top Secret”, em russo e em inglês. O pior é que está sem a
etiqueta do dono, talvez por conter
essas informações secretas. Portanto não tenho como contatá-lo. Nessa altura,
ele já percebeu a troca e está ansioso atrás dela. Como a minha tem minha identificação
com endereço e telefone, deve me contatar logo.
−E
se for algo a ver com a máfia russa? Balbucia Amélia. Dizem que são muito
violentos, torturam e matam sem dó quem os atrapalha. É uma gang muito poderosa
com ramificações em vários países. Quem sabe esses papéis e desenhos secretos
não é um contrabando que será entregue aqui em troca de um bom dinheiro? Acho melhor
avisar a polícia. Se vierem aqui em casa, estamos todos em perigo, inclusive as
crianças.
− O
pior é que não posso! Respondo. Tenho receio que comecem a me indagar o que
estava fazendo em Moscou e o que contém minha mala. Você sabe que meu trabalho
lá não teve nada de inocente. Meu relatório na mala que o diga. Tomara que quem
esteja com ela, não o leia ou não entende português, como eu não entendo russo,
pois, lavar dinheiro sujo dá cadeia, e das bravas. Preciso de mais um café pra
pôr a cabeça em ordem e ver o que faço. A coisa tá ficando preta pro meu
lado...
O
café já não desce gostoso como o primeiro, com a cabeça fresca. Imagens de
organização criminosa, sequestro, violências desmascaram o paladar.
Trim
– Trim −Trim,
toca o telefone:
−
Alô! Sim. É ele quem fala... Como? Encontro aqui em casa? Não! Sugiro na Cafeteria
Paulista do Shopping Augusta. Hoje, as quinze horas. Devolvo a mala, que está escondida
em lugar seguro (melhor mentir para evitar que venha aqui), só
depois de ter uma prova que está com a minha. Venha sozinho e nada de celulares
(assim evito gravação e foto). O local é bem movimentado, portanto nem pensar
em vir armado. Terei nas mãos um jornal. Estando tudo certo, marcamos um
segundo encontro, hoje mesmo, para a troca das malas.
−
Vou com você!- brada Amélia
−
Nem pensar, retruco. Vou sozinho, pode ser perigoso. Se for máfia, deve ter outras
pessoas vigiando.
No
caminho ao Shopping, passo pelo clube, deixo a mala no meu armário do vestiário,
e sigo em frente.
Sentado
na cafeteria, degusto − sem sentir o gosto pelo nervosismo −
um expresso duplo com pouco açúcar. Me abano com um jornal disfarçadamente, mirando
se alguém me olha estranho. No segundo gole, um sujeito puxa a cadeira na minha
frente e senta rápido. Espantado pelo gesto repentino, o olho curioso. Sinto
uma decepção...
Na
minha frente, em vez do mafioso corpulento, de cara enrugada e brava, nariz de
boxeador, olhos de rapina, mãos grossas e orelhas grandes, vejo um magrinho,
loiro de olhos azuis, face delicada, que me fala com uma voz suave e fina, um
tanto afeminada, de forte sotaque russo:
− É
o Sr. Almeida? Desculpe o atrevimento. Vi seu nome na etiqueta da mala. Sou
Ivan Abrazinov, de Moscou e estou com ela. Sinto muito pelo incomodo que estou
lhe causando. Como sou novo nesse país maravilhoso, das mil e uma noite, não me
acostumei ainda com esse corre-corre um tanto desorganizado das pessoas, com essas
cores entrelaçando-se num arco íris esplendoroso, essa miscigenação de raças
que me excita a alma, esse jeitinho charmoso em que tudo termina em música,
dança e piadas na santa paz. Na esteira do aeroporto estava tão ansioso, que
não prestei muita atenção na identificação da mala. Além do mais, estava aflito
procurando as outras, seis ao todo. Trouxe várias roupas folclóricas com botas
e casacos que quero deslumbrar no próximo carnaval. Desde que aqui cheguei,
essa atmosfera do “deixa pra lá” me tem arrebatado. Curou-me de uma forte
depressão que tinha em meu país, a qual os médicos davam por incurável. Em
troca dessa cura e de todo o carinho que tenho recebido aqui, que me deu um novo
viver, quero investir em algo que traga alegria para esse povo. Para tanto vendi
minhas propriedades na Rússia − herança de várias
gerações − e
quero construir uma fábrica da mais pura vodca, igual as melhores de lá. Viajei
a Moscou atrás de um sócio especialista no assunto, que entrasse no negócio
fornecendo a tecnologia. Encontrei um que me forneceu a documentação necessária.
Só que a trouxe em segredo, para não despertar o apetite da concorrência,
sempre ávida por novos mercados, e também para não pagar os impostos de importação
de know-how.
A
revelação do falso mafioso me cai como uma ducha fria. E eu, que entrei na
cafeteria dando uma de 007, agora me vejo frente a uma “drag-queen” moscovita,
tão inocente e fofa quanto a neve abundante por lá, disposta a abraçar e beijar
agradecida qualquer brasileiro que encontra.
Refeito
da decepção lhe pergunto:
−
Ivan, você leu o relatório que tenho dentro da mala?
−
Eu? Vira essa boca pra lá! Curiosidade para mim só com coisas vivas, nada de
papeis mortos. Só toquei na etiqueta a procura do dono para contatar. E como
você, pelo visto todo certinho, deixou também o telefone da residência. Se me
der o Whatzapp, convido para a
inauguração da fábrica de vodca. Planejo uma festa de arromba, tipo cabide.
Depois
dessa, penso comigo: “Se tem alguma bomba nessa história, ela está comigo, na
minha mala”...
Depois
de passar pelo clube e trocar as malas com Ivan, abro a porta de casa e Amélia
vem correndo ao meu encontro, gesticulando seu nervosismo crônico:
− Você
está bem? Não te maltrataram? Trocaram as malas?
−
Sim, respondo. Tudo deu certo, sem violências. De errado só minha desilusão!
Entrei de 007 e sai abraçado com uma “drag-queen” pra lá de Carmem Miranda.
−
Como?
−
Depois explico. Agora tenho de ir para a empresa me livrar dessa bomba, antes
que a “lava jato” a exploda...
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