O FIM DA TURMA DA RUA DE CIMA - Jeremias Moreira


O FIM DA TURMA DA RUA DE CIMA
Jeremias Moreira

As duas ruas nasciam na estação de trem e subiam rumo ao norte. Cinco quadras depois elas ladeavam o jardim, mas ali a Rui Barbosa já estava num nível mais alto. Continuariam assim até baterem na cerca, que separava a Fazenda Contendas, da cidade. Por estar mais elevada a Rua Rui Barbosa era conhecida como Rua de Cima e a Domingues, como Rua de Baixo. O bairro era o Bom Retiro. As turmas das duas ruas viviam brigando. Quando o Tomas, retornou à cidade e reassumiu o comando, unificou a molecada. Ele fora com a família viver em São Paulo e pelo jeito não deu certo. Os inimigos comuns eram as turmas da Estação e a do São Benedito, bairro que era mais conhecido por Farveste, devido à quantidade de brigas que havia por lá.

As ruas eram de terra e era onde a gente brincava. Havia as temporadas da bolinha de gude, do pião, do papagaio, do taco ou do carrinho de rolimã. Amarelinha e pula corda era brincadeira de menina e a gente ficava longe. Futebol jogava-se com bola de meia e o ano todo. O gol se fazia com pedra, lata, ou o que estivesse à mão. Certa vez o Jura ganhou uma bola de capotão, mas nessa época já havíamos invadido o antigo Tênis Clube e transformado suas duas quadras em campinho de futebol. Nunca entendi por que acabou aquele clube. Por um bom tempo ficou território da nossa turma e era lá que as peladas aconteciam, todas as tardes. Manter a posse daquele espaço foi motivo de muitas brigas com a molecada dos outros bairros. Sempre conseguimos vencer, mas um dia acabou-se o que era doce. Construíram um prédio no terreno. Foi o primeiro da cidade.

A noite também era de brincadeira. A turma se reunia no jardim, a Praça Nove de Julho, e brincávamos de salva, mãe da rua, balança caixão e às vezes apostava-se corrida. Nessa hora vinha o bordão que todos temiam:

“Araruta, araruta, quem chegar por último, a mãe é uma puta!”

Como era para livrar a cara da mãe, fazia-se todo esforço para não ser o laureado. Felizmente eu era bom de corrida e sempre livrei a da minha.

Não sei precisar quando a turma se dissolveu, mas acho que foi depois que o Zé Maria, um garoto negro, criado pela avó, morreu de tétano.  

Também, entramos no ginásio, deixamos de ser meninos, passamos a nos interessar por garotas e não havia mais clima para aquelas brincadeiras.  


Bem... não sei exatamente. Mas, acho que foi assim que acabou!

NEGRO FINO - Carlos Cedano


NEGRO FINO
Carlos Cedano

Costumava ir com minha turma caçar rolinhas, derrubar favos de vespas, pegar lagartixas e outros pequenos bichos, mas meu sonho mesmo era ter um tordo negro fino. Tinha escutado seu cantar várias vezes em casa de um advogado, pai de meu amigo Victor. Ficava extasiado e com inveja, e quis ter um pra mim, esse desejo se fixou como uma obsessão!

Seu Elias, dono de uma pequena bodega, me ajudou a fazer a arapuca pra pegar um negro fino.

Não vai ser fácil! - me disse - é uma ave muito desconfiada, isso exige muita paciência e a espera pode durar horas e não há garantia de que desça pra pegar a isca.

Ele me deu dicas sobre como instalar a arapuca tais como: Colocar folhas sobre ela, obter a inclinação adequada, selecionar o material a usar e sobre como colocar as iscas entre outras dicas.

Que vai usar você como isca? Perguntou-me.

Migalhas de pão. -  respondi.

Não! Retrucou ele - Você precisa colocar um pedaço de favo de vespas com larvas, isso é um manjar dos deuses pra o negro fino!

Quinze dias após a arapuca estava feita com finas varetas de bambu, amarradas com linha dupla e coberta com um cartão grosso, ficou como uma caixa sem tampa e foi aprovada por seu Elias.

No dia da caça chegamos antes do sol raiar para armar a arapuca. Tínhamos que colocar a pequena forquilha com ângulo, altura e equilíbrio adequados num dos extremos da caixa e cobre-la com folhas, depois colocar os favos com as larvas no centro da arapuca.  Amarrei na forquilha a ponta da linha e meu amigo Luís levou o rolo até nosso esconderijo que ficava a uns 50 metros, com calma coloquei a forquilha na altura e ângulo adequados, o dia começava a clarear e os primeiros cantos dos pássaros já se escutavam!

Após uma espera de quase uma hora pousaram na árvore três negros finos, um macho e duas fêmeas, o macho começou seu belo canto o que me deixou entusiasmado, mas tive que me conter, eu era o responsável para decidir o momento de puxar a linha! Os três pássaros começaram a saltitar entre os galhos e o macho se aventurou a pousar no chão, mas desconfiado e olhando pra todos os lados, caminhava lentamente na direção da arapuca, subitamente o macho voltou para a árvore e ficou quieto com as fêmeas por um bom tempo.

Na vez seguinte o macho decidiu ser mais ousado, pousou bem mais perto da arapuca e  com movimentos nervosos  foi se aproximando até ficar a uns quarenta centímetros da armadilha, parou, avançou mais uns dez centímetros abaixou a cabeça pra olhar o que havia na caixa e voltou para a árvore.

O já sol estava sobre nossas cabeças quando o negro fino desceu decidido, chegou à beira da arapuca e com seu longo bico preto começou a “a puxar” pequenos pedaços de favo e se entusiasmou com as delicadas iguarias e sabores que ofereciam! As fêmeas desceram e ele se adiantou e foi penetrando cada vez mais embaixo da arapuca, com decisão puxei o fio e a caixa caiu, as fêmeas partiram em revoada rápida.  

Seguramos a caixa e fizemos um pequeno buraco nela, enfiei minha mão enrolada num pano grosso e mesmo assim senti suas fortes bicadas, quase desisti! Mas aguentei a dor e o agarrei pelo corpo, peguei minha camisa e consegui enrolá-lo deixando apenas sua cabeça livre, corremos até minha casa que estava perto, e quando minha avó me viu com o negro fino me disse:

        Você precisa acalmá-lo, pode morrer de raiva, bota ele debaixo da torneira até que aquiete, hein! E corte as asas, se não, vai fugir na certa!  

Fiz como a vovó mandou e o soltei, tentou voar varias vezes e não conseguiu e já cansado parou um momento e depois começou a cantar, mas seu canto tinha um  tom melancólico!

Com o passar dos dias foi se acostumando e comia o alimento que lhe era dado: milho quebrado, banana, mamão e também abacate, os insetos que comia eram por sua conta. Fiz uma jaula com uma caixa grande de papelão cortando-a de modo que parecessem grades. A noite punha o pássaro dentro dela e a cobria com pano leve e a levava a meu quarto junto a minha cama.

Ele tinha sua própria rotina, a cinco horas da manhã batia as asas contra a caixa, eu saia da cama e o levava para o pátio onde o soltava, ele tomava banho na cumbuca debaixo da torneira  e logo se sacudia, nesse momento escutávamos seu belo canto, de sua garganta surgiam trinados harmoniosos, o espetáculo de seu gorjeio durava uns trinta a quarenta segundos, era como escutar um miniconcerto!

Quando ia com os amigos a derrubar favos de vespas trazia uma boa quantidade de pedaços com fartas larvas, era um banquete que durava em quanto houvesse larvas.

Negro Fino, agora todos o chamavam assim, ficava no pátio convivendo com as aves domésticas e competindo com elas na cata de insetos, também invadia a sala de jantar e “ajudava” a tia Rosita a limpar a mesa de restos de migalhas e verduras. Em pouco tempo virou membro da família e amigo das visitas.

Nos fins de semana e nas ferias a diversão era especial, eu deitava numa esteira no pátio da casa e ele vinha a passear encima de mim, sua cor preta intensa tinha destelhos azuis que aumentavam sua beleza e suas penas compactas davam-lhe um toque de elegância ao andar. Era, sem dúvida, um belo exemplar da natureza!

Transcorreram três anos de amizade e um dia recebi a boa noticia de que minha mãe viria à cidade pra levar-me à capital. Era uma boa noticia sim, mas também triste, teria que me separar de Negro Fino, viajar de ônibus não era recomendável para minha ave, além disso, ela já estava um pouco velha.

Fui falar com o pai de meu amigo Victor, para saber se ficaria com meu pássaro e me disse que sim, que o cuidaria com muito carinho, seu filho lhe tinha contado toda história de Negro Fino. No dia seguinte, com o coração partido levei-o pra casa do advogado numa caixa de papelão nova, igual a que fiz na primeira vez.

Despedi-me do senhor e não quis olhar na cara de Negro Fino, além da tristeza de que sentia por abandoná-lo, temi ver seu olhar de reproche!

O primeiro trem. - Sergio Dalla Vecchia



O primeiro trem.
Sergio Dalla Vecchia


Era Natal.

A família toda estava reunida na sala  de estar do sobrado da Rua Luiz Goes.

Eu e meus três irmãos estávamos muito ansiosos, pois já era quase meia noite e o Papai Noel estava por chegar trazendo os nossos presentes.

O Eduardo, o mais velho havia pedido uma bicicleta Monark aro vinte e seis,  pois já tinha mais de quinze anos e se achava o “adulto”.

O Pérsio, meu irmão gêmeo esperava uma nova bola de basket. A bola velha já estava com os gomos gastos e vários deles sem couro. Ela até que aguentou muito, pois havia uma cesta no quintal e aconteciam diariamente inúmeros rachas. O mais interessante é que no jogo de vinte e um, no qual participam apenas dois jogadores o resultado era sempre alternado, ora era eu o vencedor ora meu irmão gêmeo. Havia lógica nisso, pois éramos  idênticos, na aparência, peso e altura. Assim ganhava sempre quem estava com mais garra. A diferença era sempre de uma cesta.

O irmão caçula pediu um velocípede, que era um triciclo muito em moda na época.

Eu pedi um trem elétrico da ATMA. Era uma miniatura do famoso trem de passageiros que fazia a rota São Paulo / Barretos.

A noite estava estrelada  dignificando da importância da data do nascimento de Jesus.

Por fim as esperadas doze badaladas do relógio antigo ressoaram pela sala toda como prenúncio de felicidade e alegria.

Em seguida  ouvimos a voz do meu pai lá do andar de baixo:

 — O papai Noel esteve por aqui e deixou alguns presentes, desçam aqui, venham ver que como são lindos !

A tática dos meus pais era essa, enquanto éramos distraídos na sala pela minha mãe, meu pai descia para o andar de baixo e abria uma pequena sala que seria uma futura adega e que servia como guarda volumes deles, pois só eles tinham a chave.

Meus irmãos e eu descemos a escada voando e fomos direto para a adega e pronto! Lá estavam os nossos queridos presentes.

A bicicleta Monark do Eduardo era linda com os para-lamas na cor vinho e os cromados reluzentes!

A bola de basquete do Pérsio era de couro marrom, com gomos muito bem costurados  e tinha aquele cheirinho de couro novo que todos nós apreciamos.

O caçula  montou no seu velocípede de imediato e já deu umas voltas externando toda a sua alegria, com um lindo sorriso e brilhos nos olhos.

Em fim o meu presente. Lá estava a grande caixa de papelão que na sua tampa estampava uma gravura da composição do trem  dos meus sonhos.

Após todos abrirem os presentes, subimos para cearmos. Os brinquedos foram vistos, apalpados e cheirados, mas para brincar mesmo só no dia seguinte. Essa era a regra lá de casa.

Todos à mesa e meu pai dizia algumas palavras de agradecimento ao menino Jesus pela fartura daquela refeição, pelo  bom ano, pela nossa saúde e pela prosperidade. Daí  sim iniciávamos a ceia.

Após muitas conversas e a barriga cheia, o sono surgiu de repente e nós crianças fomos todos cambaleando para as nossas camas. Desmaiamos de sono!

O dia amanheceu e eu desci desesperado  para montar o meu trem elétrico.

Escolhi um lugar seguro embaixo da escada que era ideal para se montar os trilhos.

Assim fui montando um a um os segmentos de trilhos, até que o circuito composto de duas retas e duas curvas de 180º graus se formou. Agora faltava ligar o transformador e pronto.

A  energia elétrica estava ligada e a locomotiva já podia se mover, bastava apenas colocá-la nos trilhos.

Na sequência montei o cenário, que consistia de uma estação ferroviária  e uma casa de fazenda com miniaturas de vacas, cavalos etc.

Enfim, tudo pronto. Peguei a locomotiva de dentro da caixa e a instalei  nos trilhos.

Meu Deus, que imponência! Era a réplica de uma locomotiva elétrica “GE A1A- A1A” e estava nas minhas mãos! 100t de peso e quase 20 metros de comprimento!

Ela era na cor azul e tinha a marca da Companhia Paulista de Estradas de Ferro “CP” em branco. Igualzinha a verdadeira.

Sim, eu sabia, pois viajei varias vezes nesse trem quando ia para Barretos, cidade onde nasceu o meu pai.

Coloquei-a nos trilhos. Acionei a alavanca de avante no transformador e pronto. Lá foi minha locomotiva desfilando pelos trilhos. Eu estava maravilhado! Eu me deitava com a cabeça junto aos trilhos e a admirava com meu próprio zoom a passagem dela quase raspando no meu rosto.

Após algumas voltas parei a GE na estação e fui pegando um a um dos cinco vagões que formavam a composição:

O do correio, o restaurante, o Pullman, o de primeira classe e o de segunda classe. Todos na cor azul e o teto em prata. Fui colocando-os nos trilhos, sentindo, admirando e recordando minhas viagens.

Enfim a composição estava completa, todos os vagões engatados à locomotiva e tudo pronto para iniciar a viagem inaugural do meu trem! Só minha!

Assim a composição partiu. Eu me posicionei deitado junto aos trilhos e extasiado com a passagem de cada vagão junto ao meu rosto.

 O vagão Pulman com suas poltronas giratórias, o restaurante com suas mesinhas ornadas cada uma  com o seu abajur, o de primeira classe com seus bancos estofados  na cor vinho e o da segunda classe com  bancos revestidos de palhinha.


Assim o trem passava e por vezes eu era acordado por alguém, pois havia dormido embalado pelo som  dos trilhos emitido pelas rodas passando pelas suas emendas: tetreque-tetreque, tetreque-tetreque... E viajando, viajando me veio um sono danado. Vou cochilar por essa prazerosa lembrança.

Curiosidade: A PORTA "PEGA-GORDO" DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA


A PORTA "PEGA-GORDO" DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA




Alcobaça é uma cidade  uma cidade de Portugal, distrito de Leiria, região Centro-Oeste, a 97 klm de Lisboa, com cerca de 17.770 habitantes. É banhada pelos rios Alcoa e Baça, de onde se originou o nome da cidade. O concelho é densamente povoado, acima da média nacional; Possui dois trechos à beira mar (norte e sul) envolvendo com isso a vizinha cidade de Nazaré.

Alcobaça que fica a 88 quilômetros de Coimbra, em Portugal,  é conhecida pelo seu mosteiro,  em torno do qual se desenvolveu a povoação, a partir do século XV. Em estilo gótico,  foi fundado por D. Afonso Henriques em 1148, construído pelos monges de Cister e concluído em 1222.

Os primeiros monges de Alcobaça,  tiveram uma ação civilizadora notável: em 1296 abriram a primeira escola pública. Também desempenharam ações de assistência e beneficência através da botica e farmácia.

O Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, também conhecido como Maria de Alcobaça ou mais simplesmente como Mosteiro de Alcobaça, é a primeira obra plenamente gótica erguida em solo português. Está classificado como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO e como Monumento Nacional, desde 1910.

Nos braços sul e norte da igreja do mosteiro, acham-se duas obras-primas da escultura gótica em Portugal: os túmulos dos eternos apaixonados do século XIV, imortalizados por Camões, D. Pedro e D. Inês de Castro. O mosteiro possui grandes dimensões. É constituído por uma igreja ao lado da sacristia e, a norte, por três claustros seguidos, sendo cada um circundado, na sua totalidade, por dois andares. O edifício completo ainda hoje possui uma área de construção de 27.000 m² e uma área total de pisos de 40.000 m². A área construída, juntamente com o claustro sul, terá tido a dimensão de 33.500 m². A fachada principal do mosteiro, da igreja e da ala norte e sul tem uma largura de 221 m, tendo o lado norte cerca de 250 m.

Os túmulos de D. Pedro I (1320-1367), de D. Inês de Castro (1320-1355), que se encontram na igreja, ainda hoje atribuem um grande significado e esplendor ao local. Os túmulos  são uma das maiores esculturas tumulares da Idade Média. Quando subiu ao trono, D. Pedro I tinha dado ordem de construção destes túmulos para que lá fosse enterrado o seu grande amor, D. Inês, que tinha sido cruelmente assassinada pelo pai de D. Pedro I, D. Afonso IV  (1291-1357).

Os monges de Cister, tendo ali vivido por muitos séculos construíram diversos aposentos que se destacam como os dormitórios,  cozinha, e refeitório. A exaustão  da cozinha é fantástica. Outro destaque é o sistema hidráulico que alimentava a cozinha. É surpreendente que os monges tenham desde muito cedo criado um sistema próprio de abastecimento de água. Do rio Alcoa, foi aproveitada uma fonte, cuja água foi encaminhada subterraneamente durante mais de 3,2 km. Por vezes, ela corria em direção ao Mosteiro, numa inclinação de 0,25%, através de túneis transitáveis ou por canais a céu aberto. Era desta forma que o Lavabo à entrada do Refeitório,  e a cozinha eram abastecidos de água. Dentro do muro do Mosteiro existiam também diversos poços, de onde provinha água potável. O uso adequado da água é uma característica dos monges de Cister. Seus mosteiros são sempre próximos de rios.

Os monges do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça eram submetidos na Idade Média a um tratamento infalível contra a obesidade. Até hoje não foi superado por nenhuma dieta. Os monges que comiam no refeitório eram obrigados a buscar a própria comida na cozinha ao lado. Ninguém podia servi-los.

Os superiores dos monges recorreram à porta pega-gordo porque a gula é um dos sete pecados capitais e a obesidade os tornava menos aptos aos trabalhos braçais. Os religiosos pertenciam à extinta Ordem de Cister, cujos seguidores trabalhavam como agricultores e produziam tudo que consumiam.

Os abades faziam de tudo para controlá-los a mesa. Mandavam comer sem pressa, mastigando, ouvindo no refeitório coletivo a leitura de um trecho da Bíblia. Regulavam o consumo de alimentos, punindo os desobedientes com uma dieta a base de pão e água. A carne e a gordura, até mesmo por motivos religiosos, que previam dias de jejuns e abstinências, foi vetada por muito tempo.

Abria-se exceção só no caso de doença.  Em 1666, porém, o papa Alexandre VII autorizou seu consumo. A liberação alterou as cozinhas da Ordem Cister, que precisaram aumentar a estrutura para assar dois bois inteiros, atravessados por grandes espetos. A lenda diz que a melhor solução foi encontrada por um abade do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, no Centro da Capital, construído no século 12, hoje transformado em museu. Ao visita-lo os turistas se surpreendem com o amplo refeitório e a enorme cozinha, cruzada por um braço desviado do Rio Alcoa.

No refeitório, os monges sentavam-se com os rostos virados para a parede e comiam em silêncio. O abade ficava de costas para a parede, observando os subalternos. Alguns metros a frente, havia uma porta de 2 metros de altura e 32 centímetros de largura. Serviria para controlar o peso dos monges. Uma vez por mês, eles deviam atravessá-la, o que era possível apenas se o fizessem de lado. Caso não conseguissem, o abade os submetia a dieta de pão e água.

Em 1834, foram obrigados a abandonar o mosteiro, pelo decreto governamental que suprimiu as ordens religiosas de Portugal.  Hoje, o Mosteiro de Alcobaça, considerado uma das sete maravilhas de Portugal, funciona como museu. Uma de suas atrações é justamente a porta pega-gordo. 

 
Porta "pega-gordo com 0,32 cm de largura)

         

Planta baixa do Arquitetura Cisterciense:

1- Igreja
2- Porta do cemitério
3- Coro dos conversos
4- Sacristia
5- Claustro
6- Fonte
7- Sala Capitular
8- Dormitório dos monges
9- Dormitório dos noviços
10- Latrinas
11- Caldarium
12- Refeitório
13- Cozinha

14- Refeitório dos conversos


MEU CAJUEIRO - Oswaldo Romano


MEU CAJUEIRO
Oswaldo Romano

O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas recordações da minha infância: belo, imenso, no alto do morro, na rua atrás da casa.

                Todos temos uma rotina. Quando criança, falo dos meus nove a treze anos, nossa rotina é lembrada a noite e seguida de tal modo que no café da manhã está toda montada. Não é tomado, é deglutido. O horário escolar, de manhã ou a tarde nos ensinou respeitar, é sagrado.

                Sagrado era também, diariamente sair pela rua empurrando o arco, chamado de arco de barril. Na verdade, o nome não condiz porque este é de tanoaria, achatado e torcido para um dos lados da barrica cônica. O que eu usava era tirado da borda de pneus antigos. Redondinho, circulava sem demonstrar o barulho da sua emenda. Aliás, para vê-la se fazia necessário correr os dedos em toda sua volta. Rodava empurrado com uma haste de ferro de um metro, grosso como um lápis, cuja ponta dobrada, formava um U caído.

                Um dos muitos brinquedos que produzíamos, como: carrinho de rolimã, papagaio, telefone de lata, peteca, alçapão, patinete, roleta, estilingue.  Pião de fieira  e bolinhas de gude, eram comprados ou trocados pela amareladas figurinhas.

                O arco, brinquedo simples, de meninos simples, era bom para percorrer as ruas e juntar-se a um, ou vários amigos que também desfrutavam do mesmo gosto.

                Correndo, geralmente descalço, era levado ao vento que refrescava nossa cara, enquanto podiam os pés.

                Quando acontecia, era o sinal pedindo descanso. O descanso dos descalços. Também momento do alerta: hora de visitar nosso alegre pé de cajueiro que além dos perfumados frutos, nos acolhia sentados em sua refrescante sombra. As varetas dos garfos condutores dos arcos, pareciam moldados para o seu apanho. Coincidência? Muita, e inquietante. Parando para pensar você acaba procurando, e não vai encontrar, como são moldadas pequenas coisas do mundo. Com fé fica mais fácil entender, mas ainda no suspense...

                Esse quadro marcou minha infância, tanto que, ao deixar o interior aos quatorze anos, nas intermináveis cartas aos pais, nunca deixei de perguntar pelo meu cajueiro. Na verdade, muitas vezes citava o pé de cajueiro, usando-o como partida, para continuar disparando saudades.
       
                Como Rubem Braga: “Ah que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo...” Outra coincidência: Seu cajueiro. Muito igual ao meu.

                Agora minhas cartas são mais curtas.

Na última resposta, a mãe, preocupando-se com as palavras, escreveu: O cajueiro, o seu cajueiro filho, caiu.


                Demorei para responder, para não transferir minha  tristeza.

De Amor e dor - Ises A. Abrahamsohn


De Amor e dor
Ises A. Abrahamsohn


Michel nasceu na antiga Palestina de família árabe tradicional.  A família optou por morar no estado de Israel antes da guerra dos seis dias.  O rapaz  se formou com técnico de informática e, com 24 anos, ainda morava com os pais e um irmão em Haifa. A cidade é bastante cosmopolita e as muitas empresas de tecnologia oferecem bons empregos.  Michel era alto, magro de tez morena mediterrânea, olhos expressivos e cílios incrivelmente longos e recurvados, inveja de muitas moças vaidosas. Desde pequeno jogava vôlei e, adulto, treinava um time de crianças da vizinhança.

Foi lá, no centro esportivo do bairro que encontrou Leah.  A moça, da mesma idade de Michel, já tinha feito o serviço militar e com mais dois anos dera baixa como oficial do exército israelense. Estava no último ano da faculdade de enfermagem. Leah era a típica sabra.  Não era muito alta, mas compensava a altura com o porte altivo, corpo esbelto e musculoso. Os olhos verdes  e os cabelos escuros quase negros contrastavam com a tez bem clara do rosto. Um pontilhado de delicadas sardas na base do nariz e das maçãs do rosto suavizava a expressão franca e decidida do olhar.  A moça também era voluntária e treinava um grupo de meninas  em judô. A atração foi mútua. Em duas semanas estavam perdidamente apaixonados.

Porém um grande problema pairava sobre o casal. Michel era de família árabe maometana e Leah era judia. Nenhum empecilho para os dois namorados, mas muitos no futuro, tanto familiares como em relação à condição de Leah como oficial de reserva. Namoraram durante seis meses escondidos dos pais e longe das respectivas comunidades de Haifa. Nos fins de semana viajavam para a Galileia ou para Tel-Aviv. Finalmente resolveram falar com as respectivas famílias.  Iriam casar e morar em outra cidade. Como esperado, os parentes detestaram a união e ameaçaram cortar os vínculos para sempre. Mas nem uma nem outra família era tão religiosa a ponto de levar as ameaças realmente a ferro e fogo.

Os noivos viajaram para Chipre para um casamento laico um ano após se conhecerem.  Michel conseguiu um novo emprego nos arredores de Tel Aviv e Leah também, num dos grandes hospitais. Tudo parecia ir bem para o casal até que, depois dos vários  atentados palestinos de 2000  que culminaram no ano seguinte com o mais letal da pizzaria Sbarro, ocorreu a convocação dos reservistas e também de Leah.

A jovem enfermeira não ficou muito preocupada. Trabalharia na retaguarda, no serviço de saúde e dificilmente correria maiores riscos. Trabalhou dois anos em turnos de 4 dias por 3 de folga de 2002 até meados de 2004. Michel amorosamente  cuidava de Leah e lhe dava cuidados e carícias em dobro para compensar os quatro dias  de separação. A rotina de serviço militar assim prosseguiu  até que em junho de 2004 as unidades da retaguarda hospitalar onde Leah trabalhava perto de Nablus foram atingidas por um foguete do Hamas.  Ao acordar do ataque  Leah não sentia mais as pernas. A explosão a atirou a 50 metros de distância contra um muro de pedra, causando fratura da coluna e lesão à medula, além de fraturas nas pernas e lacerações no rosto e braços.

Ao acordar das cirurgias Leah sabia que não voltaria mais a andar. Michel estava ao seu lado e lhe deu outra notícia que no primeiro momento ocasionou sentimentos irreconciliáveis. Os exames havia detectado uma gravidez em fase inicial. Leah não conseguia imaginar um futuro como  paraplégica cuidando de uma criança.  Por outro lado, sentia que o marido queria aquela criança e que esta poderia ser um elo a mantê-los unidos.  Decidiu seguir com a gravidez  mesmo durante o processo de  recuperação e fisioterapia .

Leah agora se aproximava do sétimo mês de gravidez.  Sabia que em Tel-Aviv havia aquele grupo de reabilitação especial que poderia ajudá-la.

— O resultado vai depender  de como você se adaptar ao equipamento, foi o que ouviu do  médico chefe.

Queria  o novo equipamento, o exoesqueleto, disponível em principio apenas para os soldados mutilados  em ação.  Só ele poderia livrá-la da dependência total da  cadeira de rodas. Tinha atrás de si horas a fio de penosos exercícios para  estimular a musculatura.  Michel procurava estar  sempre ao seu lado, incentivando-a  a superar as dores e o cansaço e proporcionando carinho. 

Conseguiram de um  hospital a oportunidade de realizar o teste com o exoesqueleto, que atado às pernas e tronco  e ativado eletronicamente , permitiria ao paralisado o ato de  caminhar.

No dia D, Leah procurou não se animar muito. Tantas vezes tivera decepções ao achar  que poderia recuperar os movimentos. Manteve a calma enquanto lhe instalaram  as conexões.

Sobreveio-lhe um aperto no coração e fechou os olhos. Pensou em Gabriel que estava já quase pronto para nascer.
Alguém ordenou: mexa no relógio de pulso. Leah respirou fundo e apertou os  controles. Levantou-se e deu o primeiro de três passos. Parou quando as lágrimas lhe toldaram a visão. Abraçada a Michel desandou a chorar convulsivamente.


O impossível acontecera. Voltara a andar.  Deu mais uns passos e sentiu o líquido morno escorrer-lhe pelas pernas. Dali mesmo foi levada para a sala de parto. O pequeno Gabriel também tinha urgência em sair da sua reclusão imóvel para uma nova vida.

Amor Tupi - José Vicente J. de Camargo


Amor Tupi
José Vicente J. de Camargo

Vamos fazer uma pausa e dar um passeio no parque da Árvore Morta? Convida Andiara a Gracinha, sua noiva de há 6 meses, nos preparativos da lista de convidados para o casório e na escolha do local da lua de mel.

Parque da Árvore Morta? Onde fica isso? Exclama ela

Nada mais que o parque do Ibirapuera, que em Tupi quer dizer madeira morta, por que lá, antigamente, era um pântano com muitas árvores.

Gracinha não se surpreende com a expressão do noivo, pois sabe do seu interesse pelo idioma tupi-guarani,  e retruca:

Já disse que você deveria ter estudado antropologia e se especializado nos habitantes primitivos do Brasil. Assim como você, eles eram grandes aventureiros, adoravam esportes radicais e davam muito valor à natureza.

Certo, responde Andiara. Acho que meus pais tiveram essa premonição ao me deram esse nome. Mas não só os indígenas da época do descobrimento eram profundos conhecedores dos segredos da mãe terra. Seus descendentes, que habitam hoje nossas florestas e sertões, também o são. Seus conhecimentos e sua linguagem devem ser preservados. Pena que nossos governantes e, por consequência a sociedade e, principalmente os jovens, não lhes dê a devida importância.

Cuidado para não se ficar culpando de ter escolhido a profissão errada e ser mais um advogado frustrado. Completa Gracinha. E repito que não quero passar a minha lua de mel nas missões jesuíticas.

Não, responde Andiara. Vamos passar em Porto Seguro onde houve o primeiro encontro dos tupis com os portugueses. Algumas tribos ainda vivem lá. Lindas praias e interessantes pontos históricos. Você vai gostar, e emenda:

O que você acha de depois do passeio no parque, irmos comer tapioca na barraca da Tainara? Ela faz uma de açaí com coco ralado de dar água na boca!

Ok, concorda Gracinha. Mas não invente depois de querer completar com pamonha e sorvete de milho. E já vou avisando que hoje não vou jantar pato no tucupi...

Tupã! Exclama Andiara

Ok?  - Indaga a noiva

Trovão em tupi, vai chover! Vamos ter de adiar o passeio para outro dia. Voltemos para oca, quero dizer, pra casa. Até que essa chuva veio a calhar, assim podemos estrear a rede de balanço que comprei, é de casal....

Nem pense nisso! Interrompe Gracinha. Só se você concordar que o nome do nosso primeiro filho não será Jacaúna como você quer, mas sim qual eu escolher...

Está bem! A peteca tá contigo, meu biju! Mas se for menina pode ser Bartyra? Veja, eu até já fiz essa poesia para ela:

 Bartyra
Por nobre Bandeirante deslumbrada
À margem das águas do Paraná
Pousada entoa com voz veludada
Canto de mata de sol recortada

Coração luso à visão meiga palpita
Sonhando os cabelos de negra lisura
Com rudes mãos afagar com ternura
Até o transe da paixão esquecida

Num impulso tal onça parceira
Aos seus pés humilde se prostra
E mirando seus lábios pitanga
Ruge forte seu canto de amor...