Faz parte da história.
Fernando
Braga
Certa
ocasião, três médicos neurologistas de São Paulo decidiram ir até o Rio de
Janeiro, não apenas
para rever a cidade maravilhosa, mas para fazer uma consulta na biblioteca da Faculdade
Nacional de Medicina, da Praia Vermelha.
Esta biblioteca era famosa naquela época, por possuir muitos livros e artigos
em revistas estrangeiras, que não eram
encontradas na biblioteca da USP.
Queria
um deles, completar a bibliografia de um trabalho muito importante que vinha
desenvolvendo e somente lá, poderia conseguir alguns destes trabalhos.
Saíram
quinta feira, uma bela manhã do mês de maio de 1960, em um Chevrolet 1954. Os
três trabalhavam em uma Escola médica
(EPM), cujo chefe era um catedrático neurologista muito famoso, o Prof. Paulino Longo. Tendo
tido conhecimento desta viagem o Prof. Longo escreveu duas cartas, uma para seu
colega Deolindo Couto, o Prof. catedrático de Neurologia daquela faculdade,
recomendando-os, para que fossem bem atendidos, e outra, não entenderam bem, para um seu velho amigo que morava em uma fazenda, distante uns 10 quilômetros da
Via Dutra, na altura de Cunha. Fazia questão absoluta de que lá passassem e
talvez pernoitassem, pois se tratava de
pessoa muito querida, muito
amável, com a qual havia perdido o contato. Era ele, Otávio Medeiros do
Prado. A viagem foi ótima, sem intercorrências, ficaram em um pequeno hotel em Copacabana e no dia seguinte, logo
pela manhã seguiram para a Faculdade. Foram muito bem recebidos pelo professor
que os conduziu à biblioteca, fazendo recomendação de que tudo lhes fosse colocado à disposição. Deolindo e
Longo eram como carne e unha.
Naquele dia, a maior parte da pesquisa foi realizada.
No dia seguinte foram à praia, almoçaram divinamente um file de Peixe com molho de camarões, e à noite foram
apreciar o footing e tomar umas cervejas
em um concorrido bar da avenida Atlântica. No dia seguinte, após tomarem o
desjejum pegaram o caminho de volta. Após
a subida da serra, viram uma seta indicando o caminho de Angra dos
Reis. Um deles sugeriu que descessem a serra e dessem uma chegada até Angra,
pois o caminho embora de terra era muito bom e a vista, extraordinária.
Poderiam ir até a praia, almoçar e
voltar até Cunha para irem visitar o
amigo do Prof. Longo. Dito e feito, só que a estrada era muito ruim, a viagem
muito mais demorada. Chegaram, almoçaram e pegaram a estrada de volta. Quando já
bem perto de Cunha, começara a entardecer.
Tomaram
o caminho indicado até a fazenda do Sr. Medeiros. Quando lá chegaram, já eram
sete horas, estava escuro e havia pouca
luz dentro da casa.
Era
uma sede de fazenda muito boa, grande, térrea e bem antiga, mas muito bem conservada.
Tocaram a buzina e logo apareceu uma
senhora:
—
Os senhores quem são e o que querem?
—
O seu Otávio Medeiros está? Temos esta carta para ele.
—
Aguardem um só momento, vou entregá-la. Dali a cinco minutos, lá estava um
senhor de cabelos brancos, que veio alegremente
recepcioná-los:
—
Que maravilha recepcionar estes três discípulos do meu mui caro amigo Paulino,
a quem não vejo há cinco anos.
—
Vamos entrar!
Comentaram
entre si: “Que sujeito simpático! Que
alegria espontânea, sincera, demonstra!”
Foram
conduzidos a uma ampla sala, com decorações antigas, móveis coloniais, quadros
de pinturas, jarros.
Logo chegou sua esposa, também extremamente
simpática, que foi logo perguntando:
—
Vocês já jantaram?
Percebendo
que não tinham comido, pediu licença e foi
preparar o jantar. Tomaram uma cachaça famosa da região, geladinha.
Logo veio o convite para pernoitarem lá, pois havia um quarto grande para
hospedes com três camas.
É
claro que aceitaram.
Após o jantar caseiro, com bife, ovos, salada,
arroz com feijão e arroz doce como sobremesa, voltaram à sala de visita onde
entabularam uma ótima conversa. O homem era falante, com um papo muito bom e
dizia ser radioestesista. Veio com um pêndulo preso em uma correntinha e
começou a balançar a peça sobre cada um
deles para diagnosticar se havia algo errado, ocasião em que o pêndulo começava
a girar. É claro que diziam que ele havia acertado tudo.
Foi
então que começou a falar de sua vida, o que muito nos interessou. Sua mulher
logo sentou-se a seu lado.
Ele
começou a contar:
—
Nossa família tem esta fazenda há 100 anos, desde 1860. É uma fazenda de 250
alqueires, onde sempre criaram gado e tinham
plantação de algodão e cana de açúcar. Havia muitos escravos que
trabalhavam na lavoura e cuidavam do gado. Até hoje temos ainda senzalas, que
foram conservadas como relíquias daquela época e que vocês amanhã podem
visitar.
Meu
avô adquiriu esta propriedade em 1860, quando tinha 40 anos e meu pai apenas
10. Naquela época, as estradas eram muito precárias, de terra batida por onde
passavam boiadas, cavaleiros, carroças e ocasionalmente carruagens.
Os
senhores não sabem, mas esta fazenda era um dos locais preferido para viajantes
pararem, se alimentarem e pousarem, como vocês esta noite. No período de
reinado de Dom Pedro II, ele e sua caravana, por 3 vezes aqui pararam quando
iam do Rio ou Petrópolis em direção a São Paulo. Em 1875, meu avô resolveu
plantar café, o ouro verde da época, deixando um pouco de lado o açúcar e mesmo
o algodão, e se deu muito bem. Havia os escravos, aos quais meu avô, dizem,
fazia questão de tratar muito bem. Vejam o que aconteceu. Em 1880, ano muito
trágico para todos nós, meu avô que estava rico, era caridoso e ajudava a
construção de Santa Casas, recebeu um mensageiro que trazia uma carta de nosso
imperador, Pedro II. Na carta, elogiava muito meu avô e dizia que ele havia lhe
concedido o título de Barão, que deveria vir ao Rio para recebê-lo e lhe ser
consagrado em cerimônia no palácio, com
data e hora marcada.
Segundo
meu pai, com 21 anos completos na ocasião, meu avô ficou radiante de felicidade,
parecendo uma criança quando recebia presente
de Papai Noel. Foi uma felicidade contagiante.
Três
dias antes de sua viagem, arrumou uma carruagem, puxada por 4 cavalos e partiu,
junto com seu amigo do peito, outro
fazendeiro da região. Um dia após
chegaram ao Rio, foram a uma belíssima pensão conhecida e bem requisitada.
No
dia seguinte pela manhã foram à praia, descansaram após o almoço e à tarde
resolveram ir visitar os famosos Arcos da Lapa. Como turistas, tomaram um bonde puxado por duas mulas e foram apreciando
a paisagem. Quando estavam chegando
depararam com uma enorme multidão agitada, gritante, mas ainda pacífica. Ainda dentro do
bonde parado, observaram quando chegaram
os guardas, a polícia a pé e montados a cavalo e começaram a atacar os
manifestantes com seus cassetetes compridos, conhecidos como bengalas de
Petrópolis. A polícia era mal preparada e odiada. Oriunda do mundo
escravagista, vista como aquela que pode bater nas pessoas. Os policiais eram
recrutados à força, mal pagos e muitas
vezes chicoteados por seus superiores. A manifestação descambou para a
violência, o povo começou a fazer uso de paralelepípedos arrancados da rua e
atirados contra os guardas, e seus cavalos. Meu avô e seu amigo resolveram
abandonar o bonde, pois o condutor já havia se arrancado, as mulas recebiam
pancadas, pedradas e o cacetete comia largado.
—
Estava instalada a famosa Revolta dos Vinténs, que o povo havia feito contra o
aumento da passagem de bonde, instituído
pelas companhias de transporte e aceite do governo.
—
A população em pé de guerra atacou os policiais com o que tinham, pedaços de pau,
de ferro, estiletes e facas. Foi quando
o capitão que comandava os policiais deu ordem para disparar. Com os tiros a
multidão tratou de fugir, mas três
pessoas foram mortas. Aí sucedeu
o pior. Meu avô no meio da multidão, procurando se evacuar, encostando nas
paredes, subitamente recebeu uma cacetada na cabeça, atingindo sua “fonte” ou seja, bem na região do lado da cabeça.
Atordoado, ele e seu amigo conseguiram ainda se evadir, ficando longe de todos.
Após meia hora meu avô começou a passar mal, com muita tontura, dor de cabeça,
caindo dos lados, até pranchar no chão. Seu amigo ainda conseguiu uma carruagem
para levá-lo à Santa Casa, mas em lá chegando ele estava sem respiração,
inerte, morto. Hoje sabemos como, nos foi explicado por um médico que ele deve ter desenvolvido um
hematoma extradural, por ruptura do osso
temporal e da artéria.
Coitado,
não teve tempo de receber seu título, tão almejado.
—Tudo
isto no ano de 1880, ano que nunca mais saiu de nossas mentes. E vejam as
coisas boas que aconteceram nesta mesma
ocasião neste mesmo ano e que meu avô, que adorava o progresso, não teve
ocasião de ver. Foi o grande início das indústrias, ano em que Thomas Edison inventou a
lâmpada incandescente, Rodin terminou sua maior obra: O Pensador, que
Siemens inventou o primeiro elevador elétrico, que o movimento republicano
criou força e até foi o ano do nascimento do general Douglas MacArtur, herói da
segunda grande guerra, no Pacífico.
O
seu Otávio contou tudo com muita maestria e orgulho de seu avô que recebeu o
título de Barão, mesmo postumamente.
Seu
avô tinha 60 anos quando deu-se o sucedido e seu pai apenas 30.
—
Eu nasci logo após em 1885, um pouco antes da Lei Áurea e também da Proclamação
da República em 1889. Hoje já tenho os
meus 75 anos, minha mulherzinha 70. Graças a meu querido pai, também generoso e
aventureiro, conservamos esta linda propriedade, cheia de montanhas,
cachoeiras, muito gado.
—
Nossa missão também já foi cumprida! Pena que não tivemos filhos, mas em
compensação meu irmão mais novo tem 6
deles. E serão os nossos herdeiros.
No dia seguinte, logo após o lauto café da
manhã foram o visitar a Senzala, em prefeito estado e interessante que encontraram no chão, no meio das pedras alguns cravos, ou
seja aqueles grossos pregos que serviam
para prender as ferraduras dos cavalos dos viajantes, na época imperial.
Despediram-se desejando além da boa viajem de retorno que entregassem um
pequeno presente ao seu amigo querido,
que o havia tratado tão bem, quando fora seu
médico.
Segundo
ele, tornaram-se irmãos.
Chegando
foram ter com o Prof Longo, que ao ouvi-los contando as histórias
de seu Otavio, enfatizou:
—
Eu já tinha ouvido tudo isto! Eu sabia que vocês iriam adorar passar uma noite
com o Tavico, em sua fazenda colonial. Daí a minha insistência!
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