QUALQUER SEMELHANÇA...
Jeremias Moreira
Embora
não seja prisioneira, Elizabeth Gold, a Liz, é vigiada por uma policial. Ela
não entende o que se passa, está angustiada, preocupa-se por Leamas. Servem-lhe
o jantar. Um prato de sopa rala e duas batatas, que mais lhes causam náuseas do
que apetite. Também, na aflição, não sente fome.
− Porque não come. – pergunta a policial.
− Não tenho fome!
− Talvez faça uma longa viagem e, no outro lado, não encontre
o que comer.
− O que quer dizer?
− Os trabalhadores morrem de fome, na Inglaterra. Os
capitalistas os deixam morrer de fome.
− Quem disse isso?
− O Partido! O Partido sabe mais a respeito das pessoas do
que elas próprias!
Esse diálogo está no livro “O espião
que saiu do frio”, de John Le Carré, logo após Liz ser levada da sala do
Tribunal do Presidium para um departamento da Abteilung, a polícia secreta
oriental.
A história se passa durante a Guerra
Fria, nos anos 1950/60.
Alec
Leamas é um agente do Circus, o serviço de inteligência britânico. Atuava em
Berlim, que na época encontrava-se dividida pelo Muro. De um lado a Ocidental,
do outro a Oriental. A chapa fervia entre os dois lados. Travavam verdadeira
batalha no submundo e a espionagem corria solta. Leamas passou a ter dificuldades
quando Mundt assumiu o comando da Abteilung.
Control,
que comandava o Circus, elaborou uma estratégia para neutralizar Mundt. O plano
era levar Leamas de volta a Londres, rebaixá-lo e fazê-lo cair em desgraça. A
intenção era fazer com que a espionagem oriental se interessasse por Leamas e o
cooptassem. Na Segunda Guerra ele serviu como oficial do exercito inglês, nos
países nórdicos, mas era já um agente da inteligência. Como ex-combatente
conseguiu emprego numa pequena biblioteca exercendo função burocrática.
Verdadeiro final de carreira.
Porém
aconteceu o imponderável. Lá conheceu a Liz, uma jovem bibliotecária, e se
tornaram amantes.
Idealista
e ingênua, Liz era filiada ao Partido Comunista Britânico. Leamas descobre e
para não implicá-la, afasta-se dela.
Como
o Circus previra, Leamas é contatado pelos agentes da Abteilung. Eles querem
informações secretas que eventualmente possua. Oferecem uma grande soma de
dinheiro. Aparentando ressentimento com sua antiga Agência e sedução pelos
dólares, Leams aceita. É levado para a Bélgica onde é submentido a intenso
interrogatório. Em meio à informações inócuas ele deixa escapar, ao acaso,
dicas que comprometem Mundt e que insinuam que ele seja agente duplo, a serviço
de Circus. Devido à gravidade, essas informações devem ser conferidas. Então
ele é enviado para a Alemanha Oriental. Lá, quem assume o comando da
investigação é Fiedler, o segundo homem em comando e o verdadeiro cão de guarda
da inteligência oriental. Fiedler é adversário de Mundt e tem interesse na sua
queda e o acusa de traição. Instaura-se o Tribunal do Presidium.
Nesse
meio tempo Liz é convidada pelo Partido a participar de um seminário na
Alemanha Oriental. Ela aceita. Porém, os orientais acreditam ser possível,
através dela, conferir a veracidade das insinuações contra Mundt. Seu romance
com Leamas fora captado pelo radar da Abteilung e eles a querem como testemunha
no julgamento de Mundt. Surpreendido com a chegada de Liz, no julgamento,
Leamas se descontrola. Num impulso para livrá-la de qualquer suspeita, revela o
plano que encenava e proclama a inocência dela. Ele e Fiedler são presos pela
tentativa de tramar contra Mundt.
Na verdade Le Carré elabora uma trama
complexa.
Mundt
era de fato agente duplo, que Leamas desconhecia e que Circus precisava
preservar. Sem que Leamas soubesse, quem Control queria comprometer era
Fiedler, o verdadeiro empecilho e que desconfiava de Mundt. Com a confissão de
Leamas o Tribunal do Presidium foi induzido a acreditar que Fiedler era o
traidor.
Provocar
a ida de Liz para Berlim, depor, também foi ideia de Control. Ele previra que
Leamas trataria de livrá-la e, sem saber, faria seu jogo.
Descrevi essa breve resenha para
contextualizar o diálogo da policial com a Liz. Ele mostra muito bem como a
militância em países totalitários é condicionada a acreditar numa realidade
ilusória. John Lé Carré escreveu esse livro em 1962. O discurso da policial é o
mesmo que o da esquerda radical, nos dias de hoje no Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário