DINAIR
José
Vicente J. de Camargo
“Nunca pense que você não é nada, porque você
deve ser o mundo de alguém...”
Assim
ele nasceu! No meio da noite fria e chuvosa, num barraco da periferia da cidade
grande. Puxado pelas mãos calosas, mas experientes da parteira, que assim como
a mãe, catadora de lixo no aterro do limão. Abriu o berreiro forte logo que
aspirou a primeira baforada de ar. Com o mesmo cuidado que segura um prato de
porcelana encontrado inteirinho no meio do lixo −
certamente jogado por descuido na lixeira de alguma família rica – a parteira o
mergulha na bacia de água limpa, o examina de alto a baixo com olhos experientes
– com curso de primeiros socorros oferecido pela igreja local − e
o embrulha no pano de prato preparado com asseio e carinho. Com um sorriso
triste o coloca no colo da mãe que cansada −
ainda surpresa pelo primeiro parto nos seus quinze anos de idade – o segura
desajeitada tentando num embalo improvisado cessar o choro estridente. Não
conseguindo, mira a amiga com olhar de súplica do que fazer. Esta se aproxima e
encosta o recém-nascido ao peito farto para o primeiro amamentar. No silêncio que
se segue, nota-se a transformação de um semblante pueril, através da força da
natureza da criação, para um de mãe de leite. A parteira nota a transfiguração
e uma lágrima de dor lhe corta os olhos:
−
Você é jovem, vai ter ocasiões melhores de formar família. É para o bem dele.
Deixe-o ir partir. A família que o adotará tem tudo preparado do bom e do
melhor. Coisa que você, neste lugar, nem em sonho pode oferecer. Vou telefonar avisando
que o levarei amanhã à igreja, para irem busca-lo.
−
Está bem, diz a jovem ainda ofegante, apertando contra si o ser que a suga e
que ela ainda não acredita que há pouco o tinha dentro de si. Mas não esqueça de
dizer meu único desejo:
“Que ele se chame Dinair”.
Com
essa união de Diná e Jair quero que leve para sempre consigo meu nome e o do
pai dele, que nem sabe que ele existe...
E,
exausta, se deixa levar pelo sono mostrando um sorriso feliz na cosquinha do
agora Dinair a lhe sugar o peito...
−
Dinair? Diz a colega de sala quando ele se apresenta como o novo advogado recém
contratado do escritório.
− Sim,
responde ele. Todos se surpreendem com meu nome. Segundo meus pais adotivos é a
união dos nomes de meus pais biológicos que não conheci.
Na
sua mente, porém, essa indagação, uma vez mais, não lhe deixa esquecer a
incógnita de sua origem. Desde que se recorda, nos primeiros anos da infância,
se depara com o olhar surpreso das pessoas ao ouvirem seu nome. Seus pais
adotivos só contam que o receberam na igreja do Limão, de uma catadora do lixão
do bairro, no segundo dia de vida, com a condição de uma única promessa:
“De lhe darem o nome de Dinair, desejo da
mãe”.
Sendo
estéril, o casal, em retribuição a alegria recebida, cumpriu a promessa. Ele,
no entanto, não consegue desvencilhar do pensamento que poderia estar vivendo
outra vida, ter outras pessoas amadas, talvez irmãos numerosos, que profissão
ou emprego teria? Onde estaria vivendo? Esses pensamentos se apagam ao
responder a si próprio, que dificilmente teria algo melhor do que hoje possui,
principalmente agora que ficou noivo de Lucinha, sua paquera de praia de há
muitos anos.
Mas,
da penumbra do inconsciente, volta o rosto irreconhecível da mãe. Sente por
essa imagem, uma atração que não sabe descrever, como que o atraísse para o
labirinto de um Buraco Negro, desse que tanto interesse lhe desperta no curso
que faz sobre os segredos do universo ainda desconhecidos.
Seu
devaneio se desfaz com o toque do telefone. É Lucinha convidando-o sem falta
para o jantar com seus pais:
“Tem
surpresa de sobremesa! “Diz ela sorridente.
No
brindar das taças espumantes, o sogro revela o presente das bodas:
“Um apartamento na planta prontinho para
iniciar a construção. Só falta o ato que a incorporadora fará amanhã com a
cooperativa dona do terreno, para a assinatura definitiva do termo de posse. Os
proprietários estão convidados”.
Lá
chegando, Lucinha e Dinair recebem uma pasta com informações sobre o
empreendimento. Ao folheá-la Dinair empalidece e balbucia algo incompreensível
mostrando a Lucinha seu dedo indicador sobre a folha com o título:
“DINAIR COOPERATIVA DOS TRABALHADORES DE
RECICLAGEM DE REJEITOS SÓLIDOS URBANOS”
Assinado:
DINÁ DA SILVA – PRESIDENTE
Ao
ler o folheto Dinair sente um calafrio a lhe percorrer o corpo. Aperta com
força a mão de Lucinha que ávida acompanha a leitura. É a origem do terreno onde se erguerá o edifício.
Inicialmente pertencia a prefeitura que ali iniciou há décadas atrás, um
depósito de lixo urbano. Como tantos outros, logo formou-se ao redor uma
comunidade de catadores, selecionando a sucata para revenda. Com o avanço da
tecnologia da reciclagem, combinado com os avanços dos programas de inclusão
social do município, este núcleo expandiu-se rapidamente tornando-se um exemplo
de cooperação e sobrevivência entre os catadores, conhecido como “vida
sustentável”. Várias organizações não governamentais (ONGs) se interessaram e
ajudaram na criação de uma cooperativa pressionando a prefeitura, com êxito,
para a cessão do terreno à mesma. Nomearam
Diná como presidente, escolhida
pelos catadores, dado ao seu carisma e perfil de liderança. Com o crescimento
do bairro ao redor e a necessidade de maior espaço para as atividades da
cooperativa, houve a decisão da venda do terreno para uma incorporadora
interessada na construção de um prédio de apartamentos, após o saneamento do
local.
Como
curiosidade, o folhetim informa que a presidente escolheu a incorporadora em
questão, na condição que o nome do edifício fosse “SOLAR DINAIR”, pois tudo que
mais estima tem esse nome – do cachorrinho, e do papagaio ao fusquinha recondicionado
−
como se fosse um amuleto a lhe trazer felicidade e alegria. Seu mundo gira ao
redor de DINAIR...
Dinair
levanta de um pulo! Agitado, tenta entre os presentes, avistar a mesa onde
ocorre a recepção. Lá, uma mulher bem asseada, assina sob aplausos, os papéis
da escritura. Uma onda de celulares se movimenta para fotografar o fato.
Lucinha ergue o seu na procura de um espaço livre. Dinair a detém baixando-lhe
a mão.
−
Não! Diz sem afastar os olhos da mesa em frente. Para mim é suficiente não ter
mais a visão do rosto disforme a me arrastar pelos labirintos da mente. Fico
com o destino que assim predestinou. Meus pais são os de sempre. Da minha mãe
natural, que agora tem um rosto e um nome, levo
o legado de saber que não me esqueceu, pois vou morar no meu nome, no
lugar onde nasci e na proteção do seu amuleto de felicidade e alegria...
Como
diz o verso:
“Se os trovões com seus clarões assustam os
caminhantes,
por outro lado alumiam a escuridão
dos caminhos”...
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