VOO É TUDO IGUAL
Oswaldo
U. Lopes
Sempre cismei que voo é
tudo igual. Você paga mais na executiva, mas não chega na frente. Na primeira
classe a mesma coisa, paga mais e chega junto. Se bater, bate primeiro.
Para sentir diferença mesmo só voando de paulistinha ou teco-teco.
Ai você sente o vento de trás ou de frente, sente nuvem chegando e você não
enxergando! Voo comercial em avião grande é tudo igual: comida ruim,
temperatura baixa e serviço que mais parece desserviço.
Como tenho que voar, religiosamente, uma vez por mês para
Manaus, já tenho assento cativo na fila quatro, para ficar na frente da asa, na
janela e lado de duas poltronas, para poder esticar as pernas e as
necessidades, sem ter que passar em cima de muita gente. Do meu lado já sentou
gente de todo tipo: senador, deputado, médico, fazendeiro, grileiro, dona de
loja de muamba, dona de bordel, dona de casa etc.
Hoje sentou-se uma senhora, cara de tia solteira, espevitada
e magra, tailleur leve cor de rosa e blusa com gola tipo jabô. No dedo girava
aqueles terços que parecem anéis. Não era freira, as freiras não costumam se
assustar com voo, parece que estão sempre preparadas para um encontro com o
Padre Eterno. D. Emília como esclarecido mais tarde era a mais velha de três
irmãs, netas de um rico fazendeiro do tempo da borracha. A família ainda tinha
posses.
O pai soubera manejar as coisas. Ficara viúvo
muito cedo e D. Emília como era a mais velha tornara-se a dona da casa. A
história não era nada original, original era o pavor que D. Emília tinha de avião.
Coisa brava, falava um pouco e rezava muito, tinha o mau hábito de rezar em voz
alta, quer dizer, dava para ouvir perfeitamente de onde eu estava. Lá se iam
dezenas, terço e rosário completo. Percebia-se o fim da dezena pelo Pai Nosso e
o fim do terço pela Salve Regina.
As
condições do tempo não ajudavam muito D. Emília a superar o seu medo. Em
Guarulhos o tempo estava encoberto e quando passávamos à altura de Belo
Horizonte a voz característica do comandante fez-se ouvir. Ficamos sabendo que
ele se chamava Sergio e que o tempo à frente estava ruim com chuvas e
trovoadas, mas que nossa altitude de cruzeiro nos colocaria fora do alcance
dessa situação em poucos minutos. Não nos colocou ou porque continuávamos a
voar em altitude baixa ou porque o mau tempo também subira com a aeronave.
D. Emília era a própria encarnação do
desassossego. No intervalo das orações pedia-me para olhar pela janela e ver se
a turbina estava no seu devido lugar. Temendo que aquilo ficasse pior do que já
estava, ofereci-lhe o lugar da janela, só para ouvir:
- Deus me livre! Aí que eu morro mesmo,
vendo essas nuvens e essa chuva caindo sem dó.
Tentei levar a conversa para outros
rumos, embora o balançar do avião torna isso bastante difícil. Para piorar a
moral a bordo, as comissárias resolveram que não havia condições para o
serviço, quer dizer necas de lanches, refrigerantes e assemelhados. Nos voos
mais longos como este de Manaus o que se servia durante o voo era até razoável.
Enfim fiquei sabendo que a família ainda tinha uma bela casa na cidade, próxima
do Rio Negro, quer dizer sem mosquitos para chatear e terras, muitas terras,
aonde agora reinava a soja em vez da árvore da borracha. Tinham ainda um tanto
de seringueira já que o látex não perdera de todo o brilho e valor comercial.
Os
cunhados eram gente muito boa e todo mundo se dava bem, ela é que não se dava
com avião. Tinha até um sobrinho piloto comercial que voava na Azul. Ela achava
que ele fazia isso só de birra para encher ela de preocupações e orações.
Quando sabia a escala de voo dele, puxava uma novena inteira enquanto durasse o
voo. O Luiz Carlos, como se chamava o rapaz resolvera o problema ocultando a
escala de voo até da mãe.
O tempo passando e nada das condições meteorológicas
melhorarem. Melhorarem? O avião começou a despencar, coisa de meter medo ate em
gente tarimbada, eu por exemplo! Sabe aquelas quedas que você acha que vai ate
o chão, pois eram daquelas. Alguns objetos que estavam no piso do avião
começaram a flutuar durante certo tempo. Três compartimentos de bagagem se
abriram e de lá vieram duas bolsas, chapéus e uma maleta. Tripulação amarrada
nas cadeiras, nem falando pelo rádio. Os passageiros mais antigos e mais
destemidos é que se ocupavam de arrumar a tralha de volta.
Para
piorar, lá veio a voz do comandante Sérgio:
— Senhores
passageiros, o aeroporto de Manaus acaba de fechar devido ao mau tempo e não
tem previsão de reabrir. Nossa aeronave não tem combustível suficiente para um
voo até Belém de modo que estamos virando a proa para a cidade de Tefé onde
deveremos aterrissar dentro de uma hora aproximadamente.
Cruzes, como vou explicar para D. Emília
as características do aeroporto de Tefé. A cidade é bem pequena, agradável até,
tem base da marinha da aeronáutica e do exercito. É aeroporto regional, pouco
maior que Congonhas e embora seja de asfalto não passa de um pequeno local
próprio para aviões de médio porte. Não tem nem esteira para bagagens, se bem
que nas condições em que estávamos a bagagem e a esteira eram absolutamente secundários. Aterrissar um Airbus 330 cheio até a boca,
totalmente lotado de passageiros e com chuva por todo lado, ia ser um
acontecimento. Sem falar nos ventos famosos de Tefé.
Olhei de lado D. Emília não estava
ajoelhada porque o cinto de segurança não deixava, mas o anel terço estava tão
cravado no dedo que este se tornara roxo. Achei que não escaparia de um infarto
ou algo parecido, para falar a verdade, o gostosão aqui também sentiu o
estomago embrulhar. Aliás o ruído característico de vômitos já era bem audível.
O que mais podia nos acontecer?
O
avião começou a descer e mesmo com chuva intensa a visibilidade apareceu e deu
para ver as luzes do aeroporto de Tefé. O piloto começou a fazer a aproximação
enquanto nos orientava a travar as mesinhas e manter as cabeças abaixadas, só
não recomendou colocar um documento entre os dentes para facilitar a
identificação porque, evidentemente, ia pegar mal. Pela janela dava para ver
uma ambulância e o carro dos bombeiros. Pensei que considerando o tamanho do
avião e a quantidade de gente que estava a bordo estava faltando era carro
funerário. Se aquele negócio acabasse mal a ambulância só ia servir para
socorrer parentes e amigos dos passageiros e tripulantes se é que em Tefé
tivesse alguém desse tipo.
Tava
na cara que o comandante ia querer a pista inteira e mais um pouco pelo que se
aproximou da cabeceira voando baixo o que só aumentava o tormento. A chuva
forte era bem visível e o vento, este fortíssimo entortava as palmeiras. Estas
já naturalmente encurvadas pela força dos famosos ventos de Tefé que sopravam
de través, varrendo a pista lateralmente, ou seja, empurrando o pobre avião
para o lado e consequentemente para fora.
E
D. Emília? Já não era deste mundo. De olhos cerrados segurando o anel terço com
as duas mãos, parecia flutuar. Por fim o avião tocou o solo e começou sua louca
corrida pelo chão molhado. Era obvio que o comandante iria aplicar os freios
com parcimônia, para evitar uma derrapagem monumental. A reversão das turbinas
já fizera um tremendo estrago nas tripas pressionadas pelo cinto de segurança.
Que bom seria terem os passageiros o cinto de segurança do tipo suspensório
como tinham os tripulantes. Um vez um comandante, que ficara conhecendo nessas
habituais viagens, me explicara, com um raciocínio ultra lógico que se o piloto
não estivesse protegido com oxigênio, cintos especiais etc. a chance de todos
escaparem no caso de acidente era zero.
Era a lógica do salve-se quem puder
aplicada em proveito de todo o resto e lá íamos nós deslizando pela pista.
Estávamos chegando ao fim desta, as coisas aparentemente sobre controle quando
faltando coisa como que de 100 metros uma rajada forte pegou feio e lá fomos
nós para a terra aos trancos e solavancos. A teoria do caos explica tudo menos
o próprio caos na hora aga. Compartimentos de bagagens abriram todos ou quase
todos, passageiros mal presos pelo cinto ou que não os haviam colocado como
devido, passaram voando pelo corredor. Por fim a aeronave parou de fato e foi
possível imaginar que a notícia do dia transmitida pelo radialista, agora
famoso de Tefé, ia ser na base do “entre mortos e feridos salvaram-se todos”.
Os
mais tranquilos batiam palmas para o comandante, a tripulação começava a dar as
caras olhando pela cortininha. Os passageiros habituais, iam ajudando os
tombados e recolhendo as bagagens do chão. Parecia que além de leves
escoriações não havia ninguém a bordo que pudesse ser classificado como ferido.
Estavam todos salvos e com ótimas histórias para contar a filhos, sobrinhos e
netos.
A
meu lado D. Emília continuava parada as portas do céu recitando uma ladainha
que, imagino, recitam os anjos ao pé da porta:
Santa
Agatha ora pro nobis
Santa
Anastasia ora pro nobis
Dava para reconhecer a
Ladainha de Todos os Santos, apropriadíssima para o momento visto que, só
havíamos escapados desta por interseção de todos eles. Hesitei em tirá-la do
transe, mas achei que ela merecia a boa nova.
Toquei-a
de leve e fui trazendo-a de volta a doce realidade:
— D.
Emília esta tudo bem. Estamos todos no chão sãos e salvos. Comecei a rir a
solto ao me lembrar do português que questionado pela aeromoça na escada do
avião sobre o medo evidente de voar:
“Como
é seu Manoel ta com medo do avião”? Respondeu:
“Medo
eu não tenho. Quer ver eu até passo a mão nele. Eu não gosto é de estar dentro
quando ele esta lá em cima”.
Soltar
o riso é um ato conhecidíssimo de quem passou por grande aflição e escapou, ou
o leitor esta pensando que quem escreve é o Clark Kent.
Bem
D. Emília voltou ao mundo e aí ouvi coisas que jamais pensara pudessem sair de
uma boca tão santa e virginal:
— Merda
de avião, voar para quê? Piloto fdp quer nos matar a todos?
E
foi por ai afora. Fiquei olhando e pensando em como é sutil a alma humana.
Sutil e frágil.
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