SHERLOCK
TEM EM QUALQUER LUGAR, ATÉ NA MEDICINA.
Oswaldo U. Lopes
Era professor de medicina.
Difícil imaginá-lo outra coisa. Alto, mais que a média, magro, mais nem tanto,
tinha volume muscular, quer dizer presença. Quando entrava na enfermaria fazia
diferença.
Era encantador, sobretudo com alunos e doentes, como que
reconhecendo neles a parte frágil do conjunto. Nuns via sofrimento a ser
aliviado, noutros a continuidade de uma profissão a qual se dera com profunda
dedicação.
Tinha coisas que não perdoava. Às vezes alunos e residentes
caiam na bobagem de dizer:
— Este doente, este
paciente.
Ate tolerava paciente embora soubesse e dissesse que paciente
é o que tem paciência, não enfermidade. Adquirira tolerância junto com os
cabelos brancos que já lhe tingiam as têmporas o que ajudava a compor uma
figura sóbria e serena. O intolerável era o
doente ou vá lá paciente, não ter
nome. Aí o bicho pegava.
Gostava de sentar na cama
e conversar com o enfermo:
— Seu José vem de onde? Tem filhos? Quantos? O que fazem?
Era conhecidíssimo pelas inferências que fazia ao longo destas conversas. Aliança no dedo, qual dedo,
simples ou especial, mãos calejadas ou suadas. Mãos de pedreiro ou sapateiro.
Fala mansa ou afogueada, respiração rápida ou pausada.
Ficara famoso pelas incríveis deduções e pelo trabalho a que se dava em busca de respostas. Como o dia em
que se mudara praticamente para a casa de uma doente, para vê-la fazer as
tarefas de casa e descobrir de onde vinha o pó que a deixava com crises de asma.
Ou então aquele distinto senhor que só tinha dermatite de contato nas mãos
quando ia para o Rio de Janeiro.
Não, não era o Rio de Janeiro a causa, era a barra transversa
da direção do carro que incluía o aro da buzina feita de antimônio e que o
senhor em pauta só segurava na estrada, quando em longos trajetos.
Tudo isso lhe valera o
carinhoso apelido de Sherlock, pelas incríveis e brilhantes investigações de
que era capaz observando e anotando mentalmente pequenos detalhes, sons
diferentes, manchas muito discretas.
Era exímio também com o estetoscópio, mas quando ia usá-lo,
os alunos já sabiam que conhecia toda moléstia e sua história. Não era vaidoso,
quando instado a contar uma de seus brilhantes raciocínios, lembrava o caso em
tudo semelhante, ou igual se quiserem ao que Conan Doyle, o genial criador de
Sherlock Holmes, lembrava-se de ter ouvido do médico escocês Dr. Joseph Bell a
respeito de suas incríveis conclusões.
Como o próprio Conan Doyle, enfatizou mais de
uma vez a criação de Sherlock Holmes devia muito senão tudo às lembranças que ele tinha do seu querido professor de
medicina.
Enfim
era a história de um doente que era músico de profissão. A simples observação
de um tórax avantajado, lábios bem salientes e as bochechas estufadas compunham
um quadro típico de um valente tocador de instrumento de sopro: trompete ou
trombone. Feitas estas preciosas observações, perante seus alunos, perguntou
enfim o professor ao doente que instrumento tocava:
— Bumbo. - foi a resposta terrificante.
A
enfermaria era de Clinica Médica quase que em oposição a de Clinica Cirúrgica.
Toda e qualquer doença que não fosse de tratamento imediato por operação, tinha
lugar ali.
Tireoide,
pulmão, coração, fígado, rins, diabetes, você imagine ou nomeie cabia lá
dentro. O Prof. Luís André Resende, era este seu nome, atendia a todos e
discutia brilhantemente cada caso e dava a todos o devido encaminhamento. Se o
caso era complicado e exigia exames complementares ou cirurgia como parte do
tratamento, alguém ia acompanhar e de perto, fosse para onde fosse. Tinha até
reunião de óbitos, para discussão dos casos em que tudo feito não resultara em
cura e alta com seguimento.
Mas,
havia a Silvia... Silvinha como a chamavam a internada já fazia um mês, exames
todos feitos e o Prof. Resende hesitava em tomar ou recomendar uma conduta.
Silvia
agora uma moça de 28 anos, tivera na infância a famosa febre reumática de que
resultara um sopro no coração e uma válvula apertada, estenosada como diziam os
médicos. A cirurgia era ainda incipiente e de resultados duvidosos. Silvia levava
a vida sem problemas, mas casara e como não é raro, engravidara. Agora, pensava
o Prof. Resende, é que são elas.
A
sobrecarga era visível, com quatro meses de gestação, Silvinha já demostrava
certo grau de dispneia e por duas vezes entrara em edema agudo de pulmão. Edema agudo é uma sufocação
fora d’água por afogamento interno, devido a acumulo de líquido no pulmão.
Havia uma coisa a fazer, interromper a
gravidez antes que a mãe morresse. O professor conversava no melhor do seu
jeito com a moça, para ouvir apenas um discreto, educado e resoluto “não”.
Já não sabia o que fazer, respeitava
aquela doente, mais do que qualquer outra, mas sentia-se totalmente perdido.
Não encontrava consolo nas suas brilhantes conclusões nem em suas magistrais
observações. Toda manhã entrava na enfermaria 670, com medo do que pudesse ter
acontecido. Queria ser informado de qualquer coisa.
Naquela
manhã viu a cama desfeita, vazia. A enfermeira apressou-se em informá-lo que
ela passara mal e fora encaminhada a uma enfermaria onde pudesse ficar aos
cuidados de vários médicos.
Correu
para a enfermaria e parou na porta. Desolado percebeu que as pessoas se
afastavam de uma cama com ar entristecido. Não foi necessária sua notável
capacidade dedutiva para entender que o doente na cama, não respondera aos
esforços empenhados. Silvia estava imóvel, pálida e provavelmente muito fria.
Passou
a mão nos olhos e saiu procurando ar puro, e entendimento para tudo aquilo que
vira e ouvira, e pensou com a face
visivelmente molhada:
STABAT
MATER
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