Tique-Taque
José Vicente J. de
Camargo
Tique-Taque,
Tique-Taque...
Não conseguia ficar
acordado! Suas pálpebras pareciam de ferro insistindo em fechar-se pelo peso
das horas de tensão, vigília, medo desde que lhe contaram o perigo que corre. Medo?
Medo não! A morte não o assusta, já vira
irem-se entes queridos, amigos fiéis, não queria era ficar aleijado, depender
de outros pelo resto da vida. Aí sim! Ele mesmo lhe daria o fim desejado.
A mente, ávida para
entregar-se aos braços de Orfeu, mergulhar no descanso dos sonhos, acompanhava
o passo a passo dos ponteiros na tentativa de manter-se desperta zelando pela
própria vida.
Tique-Taque, Tique-Taque...
Cair no sono nessa situação
era o mesmo que abrir o peito à espera da bala encomendada, do safado que vive
da morte de outros por um punhado de dinheiro sujo. Mas com ele esse cabra da
peste vai se dar mal, vai parar de desgraçar famílias, tirando o sustento
delas, jogando mulher e filhos nas ruas, na incerteza do amanhã...
E aperta com força
o 38 na mesinha da cama, destravado, pronto pro fogo amigo, certeiro,
libertando-o da agonia de ser pego de surpresa, sem tempo de reagir, de dar o
troco ao Zé Prefeito que contratou capanga pra lhe calar, não contar a verdade
ao juiz de direito, amanhã, no fórum da cidade, na praça principal, com certeza
lotada de gente para vê-lo, ouvi-lo por fim a essa roubalheira desgraçada,
depenando o pouco que resta do cofre público, e justo a quantia pra merenda das
crianças, que ficam a ver navios com água salobra e pão amanhecido, falta de
vergonha, mas não contavam com ele, contador concursado da prefeitura, encarregado
de checar o balanço das compras, cabra macho, carregador do andor de Jesus
morto nas procissões de sexta-feira santa, pai de família, marido fiel... Quem
sabe depois dessa não se candidata a vereador municipal? Teria muita
chance lhe disseram, o povo tá ávido por
justiça, por ordem, quer ver ladrão na cadeia, comendo o pão que o diabo
amassou...
Tique-Taque,
Tique-Taque ...
Força homem, não
feche os olhos! ─ o ronco estridente da mulher deitada ao lado que tanto o
incomoda, hoje vai ajudar a manter a insônia ─ não sei como ela consegue dormir
tão profundamente estando eu nessa enroscada de cão ─ Tem de ser esta noite! O
desgraçado não vai querer me acertar na entrada do fórum, praça cheia, com
certeza vários repórteres de jornais, talvez até de televisão. Além do mais vou
ter de casa até o fórum escolta policial, colete a prova de balas.
Tique-Taque,
Tique.....
Parou? Falta de
corda não é! Dei ontem a noite antes de deitar como sempre. Alguém parou o
pendulo, quer se orientar no silêncio, ouvir os mínimos ruídos, sentir
respirações...
Só pode ser ele,
fechadura de porta velha não é empecilho pra malandro alugado, levanto ou
espero deitado? Não, levanto! Senão ponho em risco a vida da mulher, o ronco
dela vai guiá-lo até aqui ─ ronca mais alto Chica, desta vez não vou brigar ─ vou
ficar no lado oposto, ao lado da porta, única entrada. Nada como conhecer o
próprio campo de batalha, tintim por tintim, há vinte anos que faço este
caminho toda noite pra me aliviar no banheiro do corredor, sonolento, proibido
de ascender a luz pra não levar bronca da dita cuja, detesta claridade, ranzinza
como ela só! Mas até que compensou, vai me salvar a vida!
Venha miserável! Chumbo
grosso te espera...
Segurou a
respiração, sentiu o suor das mãos juntas, firmes, agarradas ao “38”, vai ser
tiro a queima roupa, sem chance de errar...
Um calafrio
percorreu a coluna quando sentiu a porta roçar suave seu dedão do pé. Mesmo sem
ver, delineou o perfil do antebraço segurando o punhal, um vago brilho deslumbra
a lâmina mortal. O instinto acompanha o levantar da mão assassina em direção ao
ronco da presa indefesa. Porém o gesto final é interrompido pelo estampido
ensurdecedor da bala surpresa. No mesmo instante, um cheiro forte de pólvora
queimada invade as narinas suadas e se confunde com o baque surto do corpo que
cai, sem sequer dar um pio de resposta. No ar ecoa a gritaria frenética da Chica,
que, sem saber oque se passa, busca desesperada o botão da luz do abajur ao lado...
Dopado com
calmantes, anti-soníferos e bebidas energéticas, ele caminha sonambulo entre a
multidão curiosa, amparado por dois policiais, que deste a madrugada sangrenta
não o desgrudam nem mesmo pro banho que lavou o sangue estilhaçado do infeliz, que
aceitou por uns cobres calar seu depoimento, que, qual uma bala, irá também emudecer
atrás das grades o corrupto Zé Prefeito.
─ Já ganhou, já ganhou! Grita o povaréu
em vivas
─ Já tá garantido pra futuro vereador!
Diz convicto um dos policiais.
─ Vereador nada!
Prefeito na certa. - replica o outro.
Tique-taque,
Tique-taque, Tique-taque...
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