A
CATARATA
Mario Augusto Machado
Pinto
Há treze anos vivo nos EE.UU. Já consegui o Green Card,
apartamento próprio, um carrão daqueles e Pós Graduação em hotelaria. Pratico
alpinismo e ski racing nas épocas apropriadas. Enfim, tenho vida já
estabelecida, prosperando e tranquila. Solteiro por convicção. Tenho prazer em
morar e trabalhar aqui, em Buffalo.
O hotel em que trabalho recebe excursões programadas vindas
de várias partes do mundo para ver as quedas d´agua, as Niagara Falls, e passear
de barco pelo rio bem perto delas. Habitualmente é tudo feito dentro de
horários pré-estabelecidos e cumpridos, exceto quando chegam excursões dos meus
patrícios. É, do Brasil. A direção do hotel já sabe e me destaca para cuidar
deles. Falam muito e alto, querem tudo na hora, acham tudo caro e melhor no
Brasil, dão pouquíssimas gorjetas e nesta época querem fazer Carnaval nos
salões do hotel. No Brasil tem. Por que aqui não? Claro, mas pelo
hotel não é possível e a mim cabe domar as feras. No final dá tudo certo, mas a
zoeira é enorme. À vezes até sai um relacionamento melhor com componente de algum
grupo. Foi o que aconteceu agora.
Horácio veio com a mulher Berta e as duas filhas
maiores, Cida e Das Dores. Interessante: os pais são economistas “máster” pela
USP, estão no BNDES, no Rio e as filhas engenheiras de minas pela Colorado
School of Mines, estão na VALE, no Pará.
Conversando com os quatro sobre as fortes nevascas, Cida
mostrou interesse em fazer uma corrida de ski. Também queria ver as cataratas de perto com a
queda d´água totalmente congelada e andar no leito do rio. Programa pra nenhum herói de HQ botar
defeito. Praticante de corrida na neve, me ofereci para ir junto. Aceito,
combinamos para as oito horas do dia seguinte.
As oito, de jeep, lá fomos nós equipados com skis, sapatos
com espinhos e agasalhos. Após dias de tempestades de neve e frio de congelar
pinguim, não nevava no momento. Céu azul de brigadeiro. Subimos a pista pelo
transporte segurando uma corda e nos lançamos do alto varias vezes. Boa esquiadora (aprendeu no Colorado, pratica
ski aquático no Pará) foi ótima companheira. Faltava a segunda parte: as quedas
d´água.
Vivendo tão perto, acostumado que estava com o barulho
da cacheira, ao ver a Niagara Falls
congelada e silenciosa me lembrei do comentário da Sra. Roosevelt ao ver
Iguaçú: Poor Niagara.
A visão daqui era estonteante, para lembrar por toda a
vida. Tudo congelado, inclusive a queda d´água, daí o silêncio. Começando de
baixo fomos tirando selfie em vários
patamares nos observatórios das margens. Agora, subindo, aconteceu uma pergunta
inesperada da Cida:
- Quê que você
acha de passar por trás da queda congelada? Quero fazer isso desde quando
estava no Colorado! Como será que é? Deve ser fe-no-me-nal! Olha! Olha! Tem
gente indo! Ai, vamos, vai! Já estamos com os sapatos...
Confesso: fiquei estupefato, de boca aberta a olhar
fixamente o rosto da Cida. A ideia dá uma boa HQ. Cara, ali são mais de
cinquenta metros de altura. Alto pra caramba! Um escorregão e beléleu, sifo. Já estive na Del Angel da Venezuela, na
Tequendama da Colômbia, mas que não se comparam com isto aqui. Sentí um empurrão e ela dizendo:
-
Acorda! Não vai me dizer que não é seguro, seu medroso! Acorda! Ô loco, nunca
pensei...
- Nem eu. Que é perigoso, é. Podemos verificar e
tentar.
-
Tem nada disso não. Vamos e pronto! Machão, sexo forte! Vai encarar?
-
Vou, e é pra já! - falei meio chocho, sem convicção, percebido.
-
Vamos! Depois te pago um grogue bonzão!
Ventava bastante. No caminho nos ajudamos a ajeitar e
apertar as capas amarelas com capuz. Mãos dadas – aperto forte, o dela – passo
a passo vamos em direção à cortina do que pareciam estalactites. O caminho dava
justo para uma pessoa andar raspando o corpo no paredão de pedra de tão
estreito que é. Um escorregão e já viuuuuuu.
Benditos sapatos com espinhos! Havia grutas abrigando umas vinte pessoas
em cada tirando fotos e selfies. As paredes rochosas mostravam nitidamente o
caminho escavado pelas águas per secula
seculorum. Formei e descrevi várias pareidolias para a Cida. Impressionei
com a imaginação. Chupamos um pouco da neve.
Iniciamos a subida do caminho para alcançar o rio. É
íngreme, nos deixa de língua de fora, coração batendo forte e rápido. Parece o
meu Camaro, digo pra Cida. Ela não comenta. Olho pra trás e vejo o rosto dela:
lábios roxos e sobrancelhas cobertas de gelo. Puta la vida, e agora? Tem mais
uns vinte metros e o pessoal da frente anda devagar. Falo para ela colocar as
mãos em concha perto da boca e soprar rápido, sem parar. Vou para trás dela,
tiro uma das minhas luvas e ponho a mão pressionando levemente seus lábios
esperando aquece-los com o calor dos meus dedos. Chegados ao topo, eu continuo
insistindo:
- Sopra, sopra. Presta atenção, vamos andar e vou fazer
por muito tempo como se te beijasse. Não para.
Colo e descolo
meus lábios aos dela, sopro e vou falando. Fica tudo engrolado:
- Estamos chegando. Apoie-se nos meus ombros. Anda
depressa. Segura na minha cintura. Faz de conta que é o jogo da maçã. Aqui!
Pronto, pronto, chegamos. Alguém, por favor, um chá, rápido. Você encosta a xícara
de leve e tira da boca. De leve, pô! Isso! Pronto. Obrigado, gente, obrigado.
Tira! Encosta! Não para! Assim, é, assim mesmo! Não para!
Uma senhora se aproxima e quer saber o que houve.
Explico e ela diz que fomos loucos.
- O
senhor já imaginou essa moça ter que cortar os lábios por congelamento?
- Ela quis! - replico.
- Mas
o senhor concordou e foi junto. Loucos!
Bem, a senhora tinha carradas de razão. Foi loucura,
mas fizemos. Ela porque quis, e eu, empurrado pelo machismo. Ainda bem que está
dando certo.
Depois de umas duas horas Cida já conseguia falar sem
medo de rachar os lábios. Veio até mim, segurou meu rosto que beijou de leve, passou
a língua nos lábios, me colou um selinho, me abraçou como só as mulheres sabem,
e meio rouquenha falou ao meu ouvido:
-
Meu Galahad!
Valeu tudo!
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