O
NOME.
Mario Augusto Machado
Pinto
O vento penetrava uivante
pela fresta do encaixe da janela do vagão e resfriava meu rosto. Tratei de
proteger-me com a echarpe preta que levava ao ombro.
Acomodei-me melhor na
poltrona da segunda classe. Suspirei. Olhei o relógio: duas da manhã. Falava
pra mim mesma:
“Preciso dormir. Chacoalhando assim... Só uma
soneca. Bem, chegarei à estação antes das oito. Tomara que Juvenal não se
atrase desta vez. Dependendo das condições da estrada vou enfrentar mais duas
horas de automóvel até a “casona”.
Dava pra ver o cansaço no
meu rosto refletido no vidro da janela. Lá fora estava escuro como breu. Nenhum
clarão, só o reflexo amarelo das luzes do teto do vagão iluminando o cascalho à
beira dos trilhos.
Quando cheguei, milagre
dos milagres, Juvenal já estava à minha espera. Cumprimentou-me com o seu famoso
jeitão:
-
Bom dia Dona Dama, fez boa viagem?
Encarregou-se de minha
pequena bagagem, guiou-me:
-
Entre, fique a vontade. Faremos um bom percurso. Disponho de água geladinha. Se
quiser é só avisar.
Certa vez disse pra Fran
que achava que ele é um tanto pernóstico, irritante, mas ela nega:
-
É resultado das suas leituras, romances e dicionário. Ele quer mostrar que é
educado e sabe dar bom trato aos nossos amigos. Não liga não, faz Hum, Hum, e tudo
bem. Deixa pra lá.
Deixei pra lá, mas fiquei
com a irritação. Lembrei-me que todos meus amigos e conhecidos passaram a me
chamar de Dona Dama. É apelido, claro, mas funciona como se fosse meu nome próprio.
Até eu me confundo, já assinei assim. Não gosto. Hoje me irritou. Lembro-me dele
falando “Dona, a senhora é uma dama”.
Ficou como nome... Todos sabem, mas é assim que me chamam em toda parte: DONA
DAMA!
A “casona” fica ao final de
uma alameda de uns dois quilômetros de árvores, cujas copas se encontram no
alto formando um túnel florido na primavera. É simplesmente lindo! Depois, gramado
de grama japonesa que parece veludo tratado a tesourinha de unha, e a casa
colonial brasileiro, enorme, com dois andares. É visão que ninguém esquece.
Chegamos juntas: a Fran está
a cavalo. Eu, de carro. É muito gostoso
rever essa amiga de todas as horas sempre com um sorriso, uma palavra
carinhosa, outra alentadora. Acertei quando a convidei para administrar Belo
Campo. Estava divorciada, moral no chão e desorientada não sabendo o que fazer.
Desmontou, deu um abraço
daqueles, envolvente, forte. Sei que é sincero, exprime verdadeira amizade.
-
Então, como é? Só assim consegui que você viesse.
Fomos andando, devagar, eu
enchendo os olhos com a boniteza ao redor e os pulmões com o perfume no ar.
- Sabe Fran, as coisas estão cada vez mais complicadas. Desde que me
separei do Anibal faço tudo relativo à Belo Campo. O que toma mais tempo é a
compra e venda do gado. Tô andando pelo sul todo. É muito pedido. Quando
colocados à venda, nossos animais são muito disputados. Fico ao telefone o
tempo todo. Vou a almoços sem fim. Escuto todo tipo de “cantada”. Na verdade
não está fácil.
-
Tudo isso tem recompensa: bom lucro.
- É verdade e você tem parte importante nesse sucesso. Sempre sou
agradecida.
-
Ah, deixa disso. Fazemos porque queremos e gostamos. Eis nosso sucesso! Vamos
conversar no saloto ou quer descansar um pouco e depois tratamos das coisas?
- Prefiro agora. Depois descanso um pouco.
Ela chama o meu escritório
de saloto. Todas as decisões são aqui adotadas, e hoje temos varias. A Fran tem
o que chama de “meu canto” na parte detrás da “casona”. A parte da
administração a cargo dela fica perto, numa pequena casa. Quando vou lá é por
pouco tempo, mais para que me vejam. Sinto que interfiro. Sei que não, sou a
dona, tudo é meu, mando, pago, mas não me sinto à vontade. Enfim, são coisas e
a Fran aceita sem reclamar.
Fomos ao “saloto”. Vimos e
decidimos o que precisava. Levou tempo. Comemos ali mesmo. Estava muito cansada.
Da agenda ficou apenas para o final da tarde a assinatura dos papéis da venda
do touro que fizemos pra Fazenda Rodeando. Combinamos tratar disso no dia
seguinte. Fui descansar pedindo pra me chamarem as sete para o jantar.
Após o banho, repaginada,
desci. Fran já me esperava com um ginger ale. Conversamos um pouco e ela me
avisou que amanhã às três horas o Nhô Tim, nosso vizinho, me oferecia carona
para São Paulo no avião dele. Comentamos que era uma boa, pois além da rapidez e
comodidade teria a companhia agradável de um homem “meio apaixonado por mim”
como dizia ele. Meio porque faltava minha metade. Rimos a valer.
Jantar tranquilo, ótimo
leitão pururuca e pastéis, minha paixão na fazenda.
Falamos sobre detalhes de
tarefas a fazer. Combinamos nos encontrar amanhã cedo sem horário fixado e
fomos dormir.
Acordei bem cedo devido ao
calor, andei a cavalo, dei umas corridinhas em volta da casona e fui pra
piscina. Ai a Fran me encontrou, falamos sobre o trabalho na fazenda, nadei,
comentei o sucesso dela quanto à qualidade dos nossos touros subindo na escala.
É trabalho muito importante: é que eles são destinados à reprodução ou aos
rodeios. Temos tido muito sucesso.
-Não
quero apressar, mas está na hora de você se preparar pra voltar. Ah, ainda tem
que rever e assinar o contrato da vendo do touro. E também tem os papéis da
Secretaria. Lembre-se que leva mais de meia hora até a pista do Nhô Tim. Vamos,
então?
Sem correria fiquei pronta
a tempo e hora.
Assinados os documentos,
saí pro pátio: carro pronto, Juvenal a postos, comecei a me despedir da Fran
quando ela gritou:
-
Nossa! Faltou colocar o nome do bicharoco no contrato e nos formulários. Nós
não chegamos a um acordo, lembra? Ficamos indecisas. Qual vai ser?
E foram ditos mil nomes e
nenhum era a cara do nosso touro. Foi quando o Juvenal falou:
-
Com vossa licença quero lembrar: há um touro em Barretos que até hoje é o melhor,
mais forte, campeão de todos os rodeios. O nome dele é “Bandido”. Eu acho, se
me permitem, que o nosso vai ser melhor que ele. Então posso sugerir um?
- Claro. Pode. Qual é?
-
Pregunto: quem é maior que bandido? O chefe dele. Tem que ser o melhor. O
número um! Então o nosso touro tem que se chamar CHEFÃO. ´brigado.
Rimos alegres e satisfeitas
com a sugestão. Aceitamos na hora. Demos parabéns pro Juvenal. Ficou
encabulado.
Demonstrou seu
contentamento quando abriu a porta do carro e me disse:
- Pode entrar, Dona
Gertrudes.
Disse meu nome!
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