TENHA DÓ
Oswaldo
U. Lopes
Hiroito coçava a cabeça. Embora já
tivesse certa fama pelos casos difíceis ou curiosos que resolvia, a gentileza
do Dr. Fabricio era, para dizer o mínimo, surpreendente. O enfurecido chefe do
DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção a Pessoa Humana) não só, não
esbravejara como de costume, como o chamou pelo nome em vez do costumeiro:
“Alô, Japonês”.
A continuação matou a charada. O chefão
tinha um primo, engenheiro, cheio da grana e de quem era próximo, que estava
metido numa confusão danada. Cornificação da grossa. Bem, e daí, Hiroito não
era acendedor de lampião, riu-se ao lembrar o sermão do padre italiano na
paróquia perto de casa. Como era mesmo o dito que ele usava?
“—
Si tutti i curnuti purtassero un lampione in testa, minchia che illuminazione”.
A Igreja fora tomada de uma avassaladora gargalhada porque quase todos entenderam
perfeitamente o dito e, imaginaram os cornos com um lampião na testa e a cidade
toda iluminada.
Esse negócio de flagrar traição
conjugal não era coisa de detetive sério que trabalhava na polícia civil.
Correr atrás de corno, ou melhor, correr para saber por que o cara virara corno
era para detetive particular da pior espécie. Porra, pensou, logo eu!
Bem, mas não convinha desafiar o chefe,
aliás o desfecho podia até ser engraçado. Anunciar ao Dr. Fabricio que o primo
era corno de primeira tinha lá seu encanto desde que fizesse um ar
constrangido.
O caso se revelou simples. O cara era
um só, mas ostentava no mínimo dois lampiões! Eta mundo esse em que vivemos,
eta tempos modernos. A mulher do primo não tinha um caso tinha dois. Um era um
rapazote de seus vinte e poucos anos que ela encontrava para almoço toda
terça-feira na Cantina Montechiaro e depois tomavam rumo desconhecido, quer
dizer desconhecido para o marido, ela tinha um matadouro finíssimo para onde
levava o menino e de onde só saiam no fim da tarde. Será que o primo entenderia
“matadouro” ou seria necessário falar em garçonnière. Está certo que o mundo
não é mais aquele e que a mulher do primo tinha fortuna própria, mas aquele
apartamento daria o que falar se se tornasse público.
Mas a história não parava por aí, o
caso era de múltiplos chifres, logo tinha mais. Ela jantava toda sexta-feira
com uma amiga e depois... Iam para o matadouro, fora os carinhos e beijinhos e
champanhe que trocavam durante a refeição. Custara caro jantar, mesa ao lado,
naquele restaurante, ainda bem que o Dr. Fabricio disse para não poupar nem se
preocupar com as despesas. Foi o que
fizera. Agora escrevia um relatório completo com endereços e tudo mais que
havia para contar. Isso estava ficando saboroso.
Estava, pois é, estava, o telefone
tocou e aquela voz inconfundível rugiu:
—
Japonês (chi, pensou Hiroito, ligaram o ventilador), levanta o rabo da cadeira
e vai trabalhar.
—
Como assim, chefe?
—
Assim sim. A mulher do primo foi encontrada morta num apartamento na Praça da
República com um revólver na mão. O corpo já está no IML começa por lá e vê se
mantém a coisa no discreto, sem imprensa.
Lá se foi o Hiroito, resmungando, essa
não, agora o caso era com ele e com todas as letras e lampiões. O delega devia
estar brincando, uma socialite encontrada morta num matadouro e ele queria a
coisa discreta e longe dos repórteres, nem a pau...
No IML encontrou o seu amigo Borges que
lhe explicou rapidinho o que já sabia:
—
Encontrada morta deitada na cama, pouco sangue em volta, revólver na mão
direita, ferimento no tórax perto do mamilo, tiro vindo da esquerda, entrara
pela ponta do coração e subira até a raiz da aorta que fora despedaçada. Morte
quase imediata pela secção total dessa artéria. Suicídio? Nem que ela fosse contorcionista,
ninguém conseguiria dar um tiro destes com o revólver na mão direita. A arma,
uma Pistola Glock .380, era da própria e costumava ficar na gaveta do
criado-mudo. No caso o que estava no lado contrário ao do cadáver. Coisa de
gente rica e fina.
Que ela, Maria do Carmo, era destra ele
já sabia. Não havia resíduos de pólvora na mão. Quem fizera o serviço, não
planejara de antemão. Uma vez feito tentou esse recurso frouxo de colocar a
arma na mão da vítima.
Hiroito repassou mentalmente as pessoas
que frequentavam o apartamento e aquelas que tinham a chave. Frequentavam, Jorge o rapazote, Isadora a
amiga muito chegada. Tinham a chave o porteiro Joaquim e a faxineira Silvia.
Estava montado o quadro, sem esquecer Henrique o primo. Vai saber se ele não
tinha descoberto a coisa durante a investigação do Hiroito, com recursos
próprios, era até fácil.
Uma semana depois, Hiroito juntou os
pedaços e formulou sua hipótese. O assassino se aproximara de Maria do Carmo
sem que esta se sentisse perturbada. Isso
afastava Henrique que não entraria em silêncio, mas fazendo um belo escarcéu. O
tiro fora dado com precisão anatômica de baixo para cima, desses que você
precisa saber algo de medicina para dar.
Jorge era estudante de administração na
FEA-USP, não saberia nem de que lado ficava o coração. Isadora estudara direito
embora não praticasse a profissão. Tinha tido aulas de medicina-legal e devia
saber algo sobre tiros.
Joaquim era bronco de todo, mal sabia
ler e escrever. Que dizer de manejar um revólver e dar um tiro de precisão.
Silvia, a faxineira, tinha uma história
interessante. Era auxiliar de enfermagem, com grande experiência de
pronto-socorro, já vira tiro à beça. Tinha ficha corrida meio longa, com casos
de roubo e assalto. Já estivera presa. Sua conta bancária mostrava, recentemente,
polpudas entradas todos os meses. Aquilo cheirava chantagem.
Pressionada, Silvia entregou o pacote.
Descobrira quem era o marido de Maria do Carmo e começou a ameaçá-la, tinha
fotografias do apartamento e até da entrada dela no próprio, acompanhada. Sabia
manejar um celular. Começara a gostar da história e começou a subir seu preço.
Naquele dia, a surpresa, Maria do Carmo a encurralou e foi explicando:
—
Gravara várias das conversas que eram explícitas e podia e iria entregá-la a
polícia, sabia algo do seu passado, ia mofar na cadeia. De modo que se ficasse
quietinha e se contentasse com o que já tinha levado, podia até deixar para lá,
mas a situação se invertera e ela não hesitaria em denunciá-la.
Maria do Carmo não tinha ideia do
tamanho da ficha completa, nem o que resultaria de uma denúncia dessas, anos e
anos na prisão. Sílvia pensou rápido, quando a outra fechou os olhos como quem
quer dormir, ela deu a volta, pegou silenciosamente a pistola e aproximando-se
fez o disparo perfeito e fatal.
Depois pensou em simular o suicídio e
fez o que fez.
Bem, sendo a faxineira, a confusão com
a imprensa talvez fosse menor, pensou Hiroito, mas que o matadouro ía dar o que
falar, ía. Fora os lampiões na cabeça do primo.
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