Tio Sam e suas Esfinges - José Vicente Jardim de Camargo


Tio Sam e suas Esfinges
José Vicente Jardim de Camargo



Falar comigo qualquer assunto relacionado aos Estados Unidos me deixa contrariado. Não importa se é sobre turismo, política, finanças, gastronomia, esportes... Me recorda os maus momentos que lá passei como vitima inocente e mal tratada.

Desembarquei no aeroporto de Los Angeles e, com todos os documentos em mãos, me dirigi à cabine da imigração que era ocupada por uma funcionária negra de porte altivo que, já de inicio, me lança um olhar de desconfiança:

- “Passport!” me diz em tom seco sem demonstrar um mínimo gesto de simpatia como se eu estivesse implorando para entrar em seu país.

Eu lhe entrego o documento, retribuindo o semblante sério:

- Yes, here it’s!

Com unhas postiças pontiagudas e pintadas de vermelho bem vivo, que me recordaram as da bruxa entregando a maçã à Branca de Neve, ela inicia com as mesmas a virar cada página de meu passaporte, me mirando de vez em quando com certo ar de desdém.

Não creio que fosse impressão ou exagero de minha parte, pois, na verdade, o que mais queria naquele momento, após um voo tão longo, era ir logo ao hotel e tomar um bom banho. Dali a algumas horas iniciaria o Congresso que era o motivo da minha viagem.

Terminada a vistoria, ela anota algo na tela do seu computador, deixa de lado meu passaporte e me aponta com a unha reluzente a direção de uma porta, que não era a da saída para pegar as bagagens, e diz:

- Go there and wait!

Tento argumentar o motivo da retenção do meu passaporte, pois, a meu ver, tudo estava em ordem já que costumava viajar freqüentemente ao exterior, principalmente a Alemanha, país de origem da empresa onde trabalhava.

Sem sucesso! Muda, a esfinge negra continuava a me apontar com o dedo alongado a porta misteriosa.

Caminho até a tal porta, fazendo questão de manter um porte altivo e adentro a uma segunda cabine onde um funcionário de traços hispânicos me revista de alto a baixo, me retém o celular e abrindo a porta oposta, me informa para aguardar ser chamado. Este tão pouco me dá atenção sobre o motivo da minha retenção.

Entro num ambiente fechado, sem janelas, desprovido de qualquer gosto, com uma mesa de um lado e cadeiras do outro lado com algumas pessoas sentadas que se comunicam entre si na maioria em espanhol.

Do teto sobressaem duas câmeras.

Sentado, volto-me ao rapaz ao meu lado:

- Há quanto tempo aguarda ser chamado?

- Quase três horas, responde. Minha noiva e seus pais vieram me buscar. Moram aqui e eu vim para me casar. Não me deixam comunicar com eles. Imagine a aflição deles sabendo que o avião já aterrissou e eu não apareço.

Vendo minha curiosidade continua:

- Há pouco, um casal retido entrou em desespero e a mulher desmaiou. O marido enfurecido chutou tanto a porta que apareceram dois policiais, o imobilizaram com violência e o levaram, assim como a desmaiada. Não sei para onde.

Aos poucos vou me integrando da situação de cada um dos presentes. A maioria veio sem passagem de volta, sem reservas de hotel, sem dinheiro suficiente e não davam informações precisas sobre pessoas ou empresas de contato nos EEUU. Tornava-se quase evidente a intenção dos mesmos de permanecerem longo período ou mesmo de fixarem residência clandestina no país.

Mas, e o meu caso? Era completamente oposto!

Passagem de volta classe executiva reservada, hotel cinco estrelas e carro de luxo idem, cartão de crédito internacional à disposição... O que será que aquela esfinge negra me aprontou?

Certamente me viu com cara de terrorista! Sabe-se que neste país existe um trauma doentio a este respeito. A menor suspeita já leva o individuo à prisão incomunicável, tortura, Guantánamo...

O pior é que não tinha como me comunicar com o escritório da minha empresa em New York, ou mesmo em São Paulo ou Berlim, já que me retiveram o celular e quando alguém aparecia era para chamar o seguinte da fila sem dar a mínima atenção às solicitações dos demais.

Pensei em fingir desmaio e assim poder desfrutar de uma maior atenção. Mas a truculência dos guardas me assustou.

-Ah! Mas na hora da minha vez, iriam ver com quem estavam falando! Ligaria ao presidente da empresa nos EEUU, que me tem consideração, lhe explicaria o ocorrido e lhe pediria para intervir a meu favor, explicar meu cargo na empresa que me enviou como seu representante no Congresso mundial sobre “Energias do Futuro”, inclusive o papel da empresa como grande investidora no mercado americano.

- Sim, quem ri por último ri melhor!

Já estava sentindo a perda da palestra de abertura do Congresso, que, como de praxe, é a mais interessante, quando meu nome é chamado.

Atordoado pelo fuso horário, faminto, apreensivo pelo o que me poderia acontecer, me deixo conduzir a uma sala adjacente:

- Grande Surpresa! Em pé, ao lado de um policial sentado, que pelo número de listas e estrelas em seu uniforme, deduz-se que é de um grau superior, está ela - a esfinge negra!

O oficial, tendo meu passaporte e celular em mãos, me os entrega:

- “A demora foi necessária pelos contatos que tivemos de fazer com nosso consulado em São Paulo onde seu visto de entrada foi expedido. A suspeita de irregularidade no seu passaporte foi observada por nossa funcionária. Uma das páginas tem uma pequena rasura na parte superior junto ao número impresso. Sugiro que quando retorne ao seu país, retire outro passaporte para evitar novos problemas”.

Levanto meio aliviado, mas bastante frustrado. Nenhuma palavra de desculpa; de “sinto muito” pelo transtorno causado; pelo cansaço acumulado de tirar a vontade de comparecer ao Congresso; pela perda do tempo importante.

Certamente a esfinge recebera cumprimentos pela atenção observada, pelo “um milímetro” de rasura que, com certeza, lá já estava há muito tempo e que por tantos postos de imigrações em diferentes países passara.

Minha frustração era ainda maior por que não conseguira “rir por último”, telefonar com o presidente americano da empresa para que ele desse uma repreensão pelo tratamento a mim dispensado.

No final dos três dias de Congresso, ainda com um resto de frustração incontida no íntimo, tenho uma pequena recompensa ao ser solicitado pela direção do evento a participar do grupo que iria escolher a cidade organizadora do próximo Congresso dali a dois anos.

Alguns delegados sugeriram outra cidade americana, a qual me opus veementemente e, com o apoio que consegui obter dos hermanos sul americanos, Rio de janeiro foi a cidade escolhida.

Chega de síndromes de pânico, de bombas e atentados terroristas!

Que venha o colorido dos trópicos, o calor humano dos cariocas e, se a organização tiver lá suas falhas, esta será suprida pelo contagiante rebolado do samba na proteção do Cristo Redentor.



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