TERRORISTA?
Mario Augusto Machado Pinto
11
de agosto!!!
Dia
de comemorações na Faculdade de Direito da USP. Nessa data, em 1.827, foram
criados os Cursos de Direito em São Paulo e Olinda. Neste dia, na “velha, mas
sempre nova academia” o clima é de festa e preparativos para o célebre
“pindura” quando os estudantes se divertem, comem do bom e do melhor e não pagam.
Essa tradição termina com declamações e cantos homenageando o responsável pelo
estabelecimento. Após despedidas bem humoradas os estudantes continuam a
comemoração em outro lugar e assim passam a noite toda.
No Largo de São Francisco no meio do som
estridente da tradicional bandinha e do barulho de centenas de pessoas, consegui
ouvir alguém me chamar pelo apelido:
kraó, kraó! Aqui na entrada! Era o Geraldo, amigão, companheiro de turma e
de lutas. Empurrei gente pra todo lado. Fui empurrado por alguém que, com voz
de comando gritou entra no carro! Rápido! Rápido, vai, vai! Em segundos me vi no banco de trás de um carro entre dois soldados mal encarados.
-Pisa,
toca pra casona. Não para. E você não abre a boca senão leva porrada da boa!
Não se meta a bacana!
Nervos à flor da pele. Eu olhava as
construções, as placas das ruas, de modo que sabia onde estava. No meu tempo de
presidente de Centro Acadêmico, “Ir pra casona” significava ir pra sede do DOPS,
famoso de temível e terrível. Não senti
medo. Afinal, sou advogado e lá há advogados, pelo menos o Delegado de plantão.
Aos empurrões me tiraram do carro e me levaram
para uma sala sem janelas, iluminada por lâmpada que provocava penumbra no
ambiente; uma pequena mesa e duas cadeiras, fedida como ela só.
Então,
quem temos aqui? O famoso Lordecá? É, é você! Diga, o que vai ser hoje? Qual a
atividade à noite? Ônibus queimado? Bancos assaltados? Cara, hoje vou fazer
você cantar e dançar. É que você não é original nem...
Cortei a fala do Delegado dizendo:
- Sou advogado, seu colega, hoje é 11 de
agosto, dia do “pindura”! Fui pro Largo ver...
-Larga
essa! Advogado porra nenhuma!
-Posso provar com minha carteira da Ordem.
-Isso
é muito fácil. Hoje se falsifica qualquer coisa, cara! Até a mãe! É, a mãe! com
a barriga de aluguel!! Cala a boca. Ninguém mandou você sentar. Levanta!
Dizendo isso, me deu um empurrão
esbravejando “Puto, puto! De merda”. Riu quando quase caí; tirou os óculos
escuros; de imediato reconheci o “colega”:
-Nicolau, ô Nicolau, fomos colegas de banco
e contemporâneos na Faculdade. Não me reconhece? Sou o Kraó! Kraó, de Nazaré. Lembra?
Eu te passava “cola” nos exames! Fiz a tua prova de CLT do Cesarino! Você foi chefe
da Delegacia de Estrangeiros. Assisti à tua posse! Quando veio parar aqui?
Contestou dizendo ”que nada Cara, cala a boca.
Vamos dar uma geral...Anda, sai e não abre mais a boca!
Saímos. Prosseguimos pelos corredores sombrios,
quase escuros, escorregadios, com cheiro esquisito, paredes pintadas de bordô a
meia altura e de branco até o teto. Havia sons assemelhados a soluços, gemidos
e gritos de dor...
-Tá
escutando o rumor? São teus colegas “cantando”. O cheiro, reconhece? É de
sangue, urina, fezes, vômito e não sei mais o que que sai das entranhas dessa turma. Não para, segue em frente!
- Seu santinho do pau oco, terrorista de merda,
desgraçado sem coragem que ataca escondido e mata sem dó nem piedade. Não vamos
ter dó nem piedade de você, mas você vai cantar O sole mio, e vai tocar
“piano”. Ah, isso vai: nós ensinamos!
O Nica, o operador da máquina e alguns
assistentes riam-se de gargalhar.
Acenderam as luzes e me empurraram para perto
de um piano verdadeiro, mas diferente: tinha teclas metálicas.
-Toca
as teclas 1, 2, 3 e a 4. Estão numeradas. Vamos toca!
Obedeci e toquei as teclas: inicialmente só
emitiam som, mas de vez em quando uma dava um choquinho que foi aumentando cada
vez mais, ficando forte, intenso e eles solfejando. Perdia o folego, requebrava
e tirava os dedos de cima das teclas e eles gritavam Não, nanão, nanão. Bota no mesmo lugar! Anda! E gargalhavam. Fui estapeado,
socado, cuspido por não sei quanta
gente. Repetição. Repetição. Repetição até que comecei a cantar “O sole mio....
O sole mio...”
-Para
com essa porra. Dá um banho de gato nele e leva o cara pra minha sala.
Foi o que fizeram: não me deixaram andar,
me arrastavam e deram o tal banho de gato. Deram e me levaram.
-Entra,
senta! Que tal? Tá vendo esses três gaveteiros?
Você vai ter que escolher um deles: o da direita tem pastas de alguns
dos seus colegas; o do meio tem pastas de gente a ser investigada, como você; o
da esquerda tem pastas de gente que já foi investigada, passou por aqui e
escolheu mudar de vida, mas continuam em observação. Decide rápido, rápido que
não tenho tempo a perder!
Fiquei olhando pro Nica e não acreditava
que era o Nica, meu colega da Faculdade. Era...
-Bom,
vou ajudar você: vou colocar sua pasta no gaveteiro da esquerda. Pronto! Legal!
Kraó, não leva a mal, mas estou fazendo meu trabalho... e agora vai embora!
Miranda!, põe esse cara pra fora daqui!
Fui puxado e empurrado, colocado num táxi:
-Leva
esse cara e não cobra a corrida. Cortesia da casa. Não volte aqui! Ai você morre! Tchau,
seu puto de merda.
Ainda deu para ouvir:
Pega
o retrato do velho
Bota
no mesmo lugar...
Durante um tempo procurei pelo Geraldo;
soube que ficou no caminho, só que ninguém sabe qual.
Lamento até hoje. É ferida que não para de
sangrar.
Que pena!
Geraldo!
Ele se foi! Nós continuamos aqui! Vamos fazer!
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