História para Boi Dormir - José Vicente Jardim de Camargo



História para Boi Dormir           
José Vicente Jardim de Camargo


As férias de fim de ano na fazenda do Vô Tino era o que mais forçava Tico a estudar e passar de ano na escola, pois, caso contrário, o castigo seria ficar os meses de verão na cidade grande vazia de amigos.

Na fazenda a primarada se reunia numa algazarra total, iniciando o dia com a tirada do leite das vacas, ajudar a Sinhá no preparo do pão de queijo, no ralar do milho e da mandioca para o preparo do curau e do biju. Depois a pelada no campinho de pasto aparado,  sob o apito e os cuidados atentos do velho Bento para evitar palavrões e briga, banho de rio na corredeira do Poço Fundo, empinação de pipas. E, no final da tarde a pescaria com vara de bambu verde valendo como premio para o maior peixe fiscado, pedir ao Vô a história da noite.

Foi assim merecido que naquela noite, Tico, por ter pego o maior piau, pediu ansioso ao velho a história da “Alma Penada” que vagava na serra assustando e, pondo pra correr, tropeiros valentes de derrubar touro no muque, e caçadores destemidos acostumados a abater onças pintadas.

Vô Tino acende o cigarro de palha, dá uma baforada, pigarreia e inicia:

— Era uma vez um casal muito pobre que vivia na beira do rio num casebre de porta e janela, chão de terra, paredes de taipa e telhado de sapé. A única riqueza que possuíam era a prole de seis filhos, fora os três já idos, vencidos pela maleita e mal de chagas.

Zé Chico, nascido Francisco tal qual o pai, era o primogênito. Ajudava no trabalho da roça, capinando as pragas daninhas e lutando com as formigas e cupins pelo melhor pedaço de terra. Da colheita pobre, ia socar o pilão, para tirar o farelo grosso, sustento  de toda a família.

A mãe, de tanto parir, já demonstrava pelo tossir constante, sinais de doença brava, e se arrastava pelo peso de ver a filharada minguando.

Zé Chico, que de longe era de todos o mais forte e corajoso, resolveu um dia partir a procura de emprego que desse alguns trocados para salvar a família do destino fatal.

Sua mãe, devota do Menino Jesus, deu-lhe  ao partir uma medalha do santinho que trazia ao peito e que servia de imagem na hora da reza do terço:

—  Meu filho, nunca se separe desta medalha. Em dificuldades aperte-a nas mãos e peça ajuda do Jesus menino.

Zé Chico, contendo as lágrimas, despediu-se da mãe sem saber se voltaria a vê-la; do pai, sabendo da falta que faria na lida da roça e soluçou ao dar adeus ao irmão caçula que ajudara a criar.

Com a trouxa nas costas contendo uma muda de roupa, nacos de cana, bananas e uma mistura de farinhas de mandioca e milho, saiu às pressas do casebre entristecido morro acima pela trilha dos macacos desaparecendo na curva do mandiocal. No bolso da calça surrada levava o canivete e o isqueiro que pertencera e herdara do padrinho querido e dos quais nunca se separava como se fossem partes integrantes dele.

O caminho da trilha lhe era desconhecido. Já ouvira relatos dos mascates que paravam em sua casa para beber água fresca, que era o inicio da subida da serra, mata fechada povoada por onças pintadas, suçuaranas, jaguatiricas, cobras e aranhas de diferentes tipos. Três dias de caminhada até o topo da serra de onde se via o descampado da fazenda Boa Vista, de propriedade do coronel Siqueira.

Apertando a medalhinha na palma da mão, entrou na mata se livrando dos cipós espinhentos e mirando fixo para ver se nenhuma jararaca lhe armava o bote atrás da folhagem ou camuflada nos troncos das árvores.

Com o cair do dia, o que de comida lhe faltava, sobrava o cansaço e o tormento das picadas de borrachudos e abelhas. Já estava a procura de alguma gruta ou de um tronco caído onde pudesse se encostar e tentar repousar sem pegar no sono para não ser atacado por algum animal selvagem.

Foi então que viu uma clareira na mata e se aproximando viu uma casinha de aspecto sombrio, que pelas portas e janelas escancaradas notava-se que estava abandonada. Ao entrar, Zé Chico vislumbrou uma cama quebrada coberta com trapos de roupa, uma cadeira de três pernas, uma pilha de tijolos sobrepostos formando uma mesa e ao lado um braseiro de pedras. Aproveitando-se dos últimos raios do dia, catou lenha ao redor da casa e com o isqueiro do padrinho acendeu o braseiro que iluminou e aqueceu a noite entrante. Abocanhou a última porção da mistura de farinhas, esvaziou o cantil de água que enchera na bica do caminho e desmaiou de sono  sobre a cama empoeirada.
Não se deu conta do tempo corrido quando ouviu um vozeirão rouco em tom choroso e lastimoso dizer espaçadamente:

- Eu caio, eu caio!

Zé Chico pensou ouvir coisas pelo cansaço da caminhada intensa e se deixou levar pelo sono novamente quando o vozeirão quebra outra vez o silêncio da madrugada:

— Eu caio, eu caio!

Zé Chico, levado mais pelo inconsciente sonolento reponde bravo:

— Então caia logo, diabo desgraçado, que medo de lobisomem não tenho não. Trago Menino Jesus no coração, apertando nas mãos a medalhinha da mãezinha protetora.

De repente ouve-se um estrondo como se uma pedra caindo batesse e rolasse pelo chão duro:

- Bum prolumbum bum bum!

Zé Chico num pulo só se põe de pé, e desperto agarra um tição do braseiro fumegante e mira em direção do barulho misterioso. Arregala os olhos, se aproxima, e vê algo horripilante: um pé e uma perna retorcidos, deformes como se tivessem sido roídos por ratazanas famintas.

Mas, seu corpo cansado com nada se assusta. Quer dormir mais, recompor as forças em direção ao seu destino. Estica-se novamente na cama torta e assim que fecha os olhos, ouve novamente a vozeirão choroso:

— Eu caio, eu caio!

— Vai-te Satanás, do inferno não tenho medo não! Trago a força do Divino comigo.

E o barulho – Bum prolumbum bum bum!- se repete.

Com o tição nas mãos, Zé Chico volta o brilho para o lugar fatídico e vê outro pé e perna retorcidos com aparência de carniça. Faz o sinal da cruz, pensa em fugir, mas a noite escura, o caminho desconhecido o faz relutar. Nas mãos o canivete do padrinho de lâmina pronta para o que der e vier,  e a medalha sagrada.

— Eu caio, eu caio!

A ladainha se repete e – Bum prolumbum bum bum...

Desta vez rolam o tronco e a cabeça, buracos no lugar de olhos e nariz; dentes negros emergem da boca.

De repente os pedaços esparramados começam a se mover. Zé Chico se lembra do recado da mãezinha de nada temer. As partes vão se aproximando uma das outras formando um corpo disforme que aos poucos vai se levantando. Um cheiro forte de enxofre infesta o ar.

Zé Chico se afasta. Corre pra porta. Prefere a escuridão que aquela coisa nojenta, quando a voz se faz ouvir:

— Moleque valente! Há tempos aguardo este momento de me recompor, de virar homem novamente e poder descansar em paz. Zé Chico, não sabendo se é miragem ou real, vê a coisa falante desaparecer no meio de uma nuvem negra e fedorenta. Recupera-se do espanto, afasta a cama, encontra uma enxada encravada no chão, começa a cavar. Aos poucos uma caixa de couro cru vai surgindo e ao abri-la, a recompensa prometida: uma fartura de moedas de ouro brilha na escuridão.

Atordoado pelos acontecimentos, sai bamboleando, esquecido do cansaço rumo ao caminho de volta. No pensamento o desejo forte de beijar a mãezinha doente, os irmãos que largou chorando, o pai curvado pelo peso da roça.
Nada mais de pernoite na mata. Direto ao lar, esse sim agora será verdadeiro, sem sofrimentos, comida farta, alegria reinante.

No caminho cruza com um caixeiro viajante, mula carregada. Na conversa fiada pergunta se conhece a casinha abandonada na clareira da mata.

— Sim - diz o ouvinte - era a morada do Dominguinhos, velho solitário e avarento. Diziam que tinha tesouro escondido, e por tal boato perdeu a vida. Na calada da noite assaltantes arrombaram sua porta a procura do tal tesouro. Como tudo negasse  esquartejaram seu corpo em pedaços. Quem depois viu a matança, não podia acreditar. Pernas, braços e cabeças separados do corpo espalhados pelo chão ensanguentado. Como era sovina  tinha muitos desafetos e por vingança lhe enterraram as partes em diferentes covas. Deste então o local é tido como mal assombrado. Gente que quis lá pernoitar, diz ter ouvido vozes e ruídos, e saíram correndo. Quando vou por aqueles lados, desvio o caminho e me benzo três vezes pras almas me protegerem. Até a mula teimosa acelera o trote.

Zé Chico ri consigo mesmo que pensa: Eh, todo boato tem um fundo de verdade!


 E apressa o passo na ansiedade de logo desfrutar de seu novo destino...


Vô Tino acende mais um cigarrinho de palha de fumo de corda e olha a netaiada estendida por todos os cantos do quarto grande da fazenda. Alguns adormeceram, mas a maioria, de olhos arregalados, se entreolham entre si para ver quem primeiro confessa estar com medo de dormir e sonhar com lobisomem.
Tico cochicha com o primo ao lado:

— Tenho uma grande ideia!

Mais tarde vamos brincar de ‘Eu Caio” na janela do quarto das meninas. O primo, com um sorriso safado, concorda e esfrega as mãos com satisfação já visualizando a gritaria de horror que o susto trará.


O avô percebe a travessura planejada e recorda, no passado distante, quando também incitava os amigos às mesmas brincadeiras, e pensando agradece àqueles entes queridos que lhe contaram essa e outras histórias de folclore, as quais, enriquecidas por suas próprias fantasias, lhe permitem agora desfrutar da admiração e das alegrias dos netos agradecidos...



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