Eu finjo que
não ouço
Lúcia Amaral de
Oliveira Ribeiro
Se em festa de família / o
assunto é casamento / eu finjo que não ouço / essa escola eu não frequento...
Cantarolando baixinho, canto
interior, sem perceber de onde vinha a lembrança antiga, ele de calça xadrez
vermelha, época da Jovem Guarda, nossa, faz tempo! Estacionou o carro e tocou a
campainha.
– Ta pronta?
– Mudança de planos.
– Hã?
– Vamos almoçar aqui, almoço de domingo, com a família reunida. Todos
querem te conhecer.
– Como assim? Quem são todos?
– Meus irmãos, sobrinhos, e meus pais.
No terraço com um copo de cerveja
em uma mão, um pastel na outra, ele ainda não sabia quem era quem na rodinha,
tinha misturado nomes, gerações, não sabia se falava com o sobrinho ou com o
cunhado de Mariana.
– Então você faz plantão no
hospital ao lado da minha casa. E atende pelo meu plano de saúde. Posso marcar
uma consulta com você?
– Na sua idade, pelo que você me
falou, vale a pena ir a um cardiologista, tenho um cartão, você pode marcar o
dia que for melhor pra você, vou todas as tardes ao consultório.
Enquanto isso, na cozinha...
– Mas vocês se conheceram em um show do Roberto Carlos, é isso mesmo?
– Foi, em um navio, eu estava com duas amigas, ele com a mãe, era
aniversário da mãe dele.
– Filho atencioso, dedicado, né?
– Filho único, não tem muita escolha.
Sem perceber, ela cantarolava com
a bandeja na mão. Chegou a tempo de socorrer Renato, ele tinha derrubado o copo
de cerveja sobre a mesa, a cerveja escorria na direção do seu pai.
– Eu não escutei, pedi pra ele
repetir a pergunta. E então foi ele que não me ouviu, o aparelho dele caiu no
chão, eu fui pegar, esbarrei no copo...
– Não liga não, isso seca. Acho
que eu sei qual foi a pergunta, mas essa conversa pode ficar pra depois.
A conversa ficou pra outro almoço,
dois meses depois. Não demorou muito, e a iniciativa foi do Renato. Tomou o
café cantarolando, cantava pra dentro: Eu tenho tanto pra te falar / mas com
palavras não sei dizer. Sem ensaiar muito, tirou do bolso uma caixinha. Falou
primeiro com o pai de Mariana.
Seis meses depois, Mariana e
Renato saíram da igreja cantarolando: Além do horizonte / existe um lugar. Ela
de vestido branco, curto, ele com gravata super colorida.
E a festa durou três dias e três
noites, casamento como nos contos de fada que a mãe contava pra ela enquanto
costurava, no tempo da jovem guarda.
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