A Vingança do Feitiço - José Vicente Jardim de Camargo

 

A Vingança do Feitiço
José Vicente Jardim de Camargo


No apartamento aconchegante aquecido pelo fogo da lareira, Joan, estendida sobre o tapete de lã, escutava o vento forte batendo nas janelas da sala. Nas mãos, as folhas manuscritas de sua tese de doutorado sobre a influência da telepatia na mente humana.

Desde criança sentia o dom de prever coisas que aconteceriam logo ou dias depois através da concentração da mente.

Recorda-se da primeira vez que fez este exercício. Foi exatamente como na história infantil que sua professora contou à classe e que a deixou fascinada. Olhando fixamente para seus pais, pedia a eles o que queria receber de presente no Natal e qual não foi sua alegria ao receber tal presente.

Com o decorrer dos anos foi crescendo suas tentativas e sucessos : pensava numa pessoa e esta lhe telefonava ou a encontrava de pronto; as matérias dos exames da escola eram as que tinha sonhado dias antes ou desejado.

Para completar sua tese faltava o material que procuraria obter na visita que faria ao vidente Ghotoz  que vive numa aldeia da Namíbia e famoso no meio acadêmico por sua extraordinária força telepática e por suas visões e adivinhações do futuro.  

Também estava a fim de saber algo mais sobre o desaparecimento da jornalista do Herald Tribune dias após ter feito uma entrevista com ele há 2 anos. Tanto ela, como o material da entrevista, nunca foram encontrados.

Súbito algo a faz desviar seu olhar para a coleção de estatuetas africanas que Fred vinha colecionando desde quando começaram a fazer as viagens à Namíbia. Conhecera Fred quando ele estudava História da Arte Africana e ela psicologia na Universidade de Cambridge. Foi amor a primeira vista. Casaram-se em seguida. Fred especializara-se na nos mitos, crenças e arte dos povos Kua-Kua que habitam há séculos grande parte do território que hoje é a Namíbia. Sua tese de doutorado rendeu-lhe o cargo de professor assistente na universidade.

Desde então visitam a Namíbia anualmente atrás de documentos e fotos que enriqueçam as aulas de Fred.

Da coleção de estatuetas africanas, uma sempre lhe chamou mais a atenção pelos seus traços fortes, marcantes, bem torneados, mas ao mesmo tempo de uma graça e leveza que lembra as estátuas femininas gregas. Fred, após pesquisa nas aldeias da Namíbia, de onde teria originado a figura, concluiu que seria a deusa da justiça dado segurar em uma das mãos um facão e na outra um rolo de pergaminho, simbolizando o castigo e a prova do crime cometido.

Seu pensamento é interrompido com o abrir da porta de entrada e a voz de Fred informando que os preparativos para a viagem estavam confirmados: itinerários, passagens, hotéis...

Joan, ansiosa, pergunta se a estadia em Cape Cross Seal Reserve também estava confirmada. Daí partiriam até a aldeia onde vivia Ghotoz, meio perdida no vale do Rio Ugab.

— Bem, responde Fred, até a pousada em Cape Cross, tudo ok. Daí pra frente entra o trecho desconhecido que nunca fizemos. Será uma aventura no escuro...

Joan, sempre que recebe respostas indefinidas como esta, aperta com força o amuleto de osso de leão ornado com sementes raras que ganhou de um curandeiro de uma das aldeias Kua-Kua e que traz desde então pendurado ao pescoço.

— Sempre que sentires uma força negativa, aperte-o com força e invoque a proteção de Watan, deus do bem - disse ele.

Joan, que já tinha comprovado a força do amuleto junto com seus dons telepáticos, sentia no seu íntimo que a visita a Ghotoz seria realizada sem empecilhos...

Já fazia 20 dias que haviam partido da Cidade do Cabo, como sempre ponto de partida para a temporada na Namíbia.

Depois de passarem pelos locais turísticos que não deixavam de visitá-los, dado as suas belezas naturais, aventuras de alta adrenalina e da comida bem temperada, farta e barata, Joan e Fred sonolentos, miravam o passar da paisagem típica da região pela janela do Shongololo Express Namíbia em direção a Cape Cross Seal Reserve.

Passaram a fronteira da África do Sul com Namíbia há 2 horas e, se a avaliação do Fred estava correta, em mais 1 hora chegariam a  cidade mais perto de Cape Cross. Daí, seguiriam em jeep alugado até a reserva e nesta ao “Lodge Cape Cross”, única pousada permitida para turistas no parque.

— Isto, se a locomotiva a vapor inglesa remanescente do período colonial, e a reserva que fiz, não derem problemas - completa Fred, demonstrando ares de dúvida.

Joan, apertando seu amuleto com força, replica:

—  Não creio, tudo vai dar certo...

Cape Cross Seal Reserve é uma reserva parque na costa do Atlântico, descoberta em 1486 pelo navegador português Diogo Cão que lá fincou uma cruz demarcando a descoberta. É uma das maiores reservas mundiais de focas e lobos-marinhos, orcas, baleias, aves e peixes de varias espécies. Verdadeiro santuário para naturalistas e biólogos.

Os nativos desta região vivem em varias aldeias espalhadas desde a costa rochosa até o vale do Rio Ugab. Alimentam-se basicamente da pesca e da caça e são adeptos fervorosos de rituais que evocam as magias negras comandadas pelos feiticeiros, entre eles, Ghotoz, reconhecido como o mais poderoso dado a sua força de adivinhar pensamentos e de prever o futuro e do poder de seu feitiço.

Sem problemas, Fred e Joan estavam acomodados em seu apartamento no “Cape Cross Lodge” saboreando um refresco de frutas diante da vista deslumbrante dos rochedos cobertos de focas e aves marinhas e batidos pelas ondas encrespadas do mar revolto. No ar o cheiro da maresia misturado com o odor acentuado de restos mortais desses animais devorados pelos seus predadores e de seus excrementos.

— Amanhã, a estas horas, já estaremos de volta da visita a Ghotoz” - disse Joan enquanto Fred fotografa a paisagem.

—  E espero com o material necessário para completar sua tese e noticias do paradeiro da jornalista do Herald - responde Fred ajustando o zoom da sua Nikon.
Joan olhando o horizonte, vê em sua mente um quadro confuso de imagens e sombras. Não conseguindo interpretar o significado, aperta com força seu amuleto de ossos e invoca Watan para que a acompanhe amanhã na visita a Ghotoz.

Em sua cabana, mais espaçosa que as demais, em posição de ioga, na penumbra, no meio da neblina proveniente de incensos aromáticos, rodeado de cuias e sacos com sementes, pós de diversas cores, crânios e penas de animais e aves, Ghotoz medita.

De repente balbucia:

— Se despertares a ira dos meus espíritos, terás o mesmo fim que a outra! -  e, se estremecendo todo, lembra da tentação ardente que lhe tomou o corpo ao ver e falar com a estrangeira que o visitara tempos atrás e que quanto mais dele perguntava, mais seu desejo crescia. Ao despedir-se dele e contar que iria encontrar o noivo nos rochedos da praia, o espírito da luxuria o penetrou e seguiu-se o ritual do sacrifício entre gritos, chamas, fumaças e raios. Da cabana um clarão eleva-se ao céu.

No mesmo instante, do Rochedo da Cruz, um corpo de homem despenca ao mar...
Do lado de fora, passadas e murmúrios quebram o silêncio.

— Entre a moça loira de mochila, homem alto ruivo com câmara não! -  comanda a voz de dentro.

Joan, com passos vacilantes aproxima-se, já se dando conta do poder de adivinhação do visitado, uma vez que ele, não os conhecendo e de olhos fechados, não poderia saber de detalhes pessoais de ambos nem o que traziam consigo.

— Tudo que queres saber de mim, já o disse a outra! - escuta Joan e, ao tentar argumentar que desconhecia o paradeiro da outra, os olhos de Ghotoz se abrem e miram, com um brilho penetrante como um raio, seu amuleto de ossos que no mesmo instante arde como brasa. Um solavanco a derruba ao solo. Quer gritar por Fred, mas tem sua voz tapada por algo invisível.

Nisto, uma luz brilhante surge no teto da choupana e uma figura de mulher de semblante raivoso envolta em neblina e com um facão nas mãos, desce rapidamente e com violência esfaqueia Ghotoz que, com fisionomia de pânico, gestos de terror e uivos, cai sem vida ao chão. A figura, agora com semblante gracioso, mira Joan e desaparece...

Esta, recuperada das forças, corre para fora a procura de Fred e o encontrando, abraça-o e com um olhar de satisfação murmura:

— Tenho tudo que precisava. Voltemos para casa.

Ao entrarem no hall do prédio, vindos do aeroporto, o porteiro dando-lhes as boas vindas, informa:

— Ontem, uma jovem deixou comigo esta pasta para entregar a miss Joan quando voltasse de viagem. Disse que são documentos importantes.

Joan agradeceu e como já desconfiando do que se tratava, subiu no  elevador ansiosa para confirmar sua suspeita.

No beiral da porta, Fred assustado grita:

— Alguém entrou em casa, pois a minha estatueta da Deusa da Vingança desapareceu!”.










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