Belvedere Trianon nos anos 40
São Paulo dos anos 40 – 50
Ises Abrahamsohn
Irene descia a escada tentando enxergar a amiga Gisela em meio à multidão que se aglomerava no cais. O sol tropical quase a cegava, apesar dos óculos escuros. E o calor úmido sufocante… Ainda bem que lembrara de colocar seu chapéu de abas largas e o tailleur de linho. Muitas companheiras de travessia sufocavam dentro de seus pesados vestidos de lã, alguns com golas de pele. A fila para entrar no armazém da alfândega era enorme. Era o mês de março de 1946. O navio vinha lotado. Após o final da guerra, um grande número de pessoas voltava da Europa para o Brasil. Assim como ela. A travessia demorara 24 dias. Dois a mais do previsto, culpa dos ingleses que, em Funchal, na Madeira, subiram a bordo à procura de criminosos de guerra. O militar inglês a olhara com suspeita por ser alemã. Teve que explicar que tinha família no Brasil e que vinha de Portugal, onde passou os últimos dois anos trabalhando. Sorte que era fluente em inglês. Afinal, tinha trabalhado vários anos como secretária na Ford e no Lanifício Pirituba, em São Paulo, antes de voltar para a Europa em 1932.
Finalmente chegou sua vez na inspetoria da alfândega. Duas grandes malas de navio, a valise de mão para uso durante a viagem e a sua chapeleira, aquela mala especial para chapéus que tinha comprado em bom estado em Lisboa. Os funcionários da aduana não a incomodaram. Estavam com pressa, e ela, ao lhes falar em português, não era um alvo fácil de alguma falsa cobrança.
Sua amiga Gisela já estava a postos com dois carregadores de bagagens que as acompanharam até o automóvel. Era um Chevrolet 1946 preto básico, mas Irene se espantou. Não sabia que a amiga guiava e muito menos que possuía automóvel. Ela lhe explicou que sim, aprendera a guiar, mas que o automóvel havia sido emprestado do mecânico chefe, da General Motors, apenas por um dia. Ela ajudara o homem em alguns assuntos bancários.
Irene estava cansada, mas ainda se maravilhou com a viagem pelo caminho do mar. A densa mata atlântica impenetrável, tão diferente das comportadas florestas europeias onde se podia caminhar entre as árvores.
Finalmente chegaram a São Paulo. Irene ficou em um casarão na rua Peixoto Gomide, cuja proprietária alugava quartos e fornecia o café da manhã e um chá à noite. Combinou com Gisela de se encontrarem no domingo no restaurante do Trianon. Iria aproveitar para datilografar seu currículo atualizado e se candidatar aos empregos de secretária executiva. Havia grande procura por pessoas capacitadas e que sabiam falar várias línguas. Ademais, as mulheres brasileiras de classe média raramente trabalhavam fora de casa, situação diferente da Europa e da América do Norte. Irene havia trabalhado em grandes companhias na Alemanha, antes de conseguir escapar para Portugal, onde passara os últimos anos da guerra como secretária da legação comercial em Lisboa.
No domingo, caminhou a pequena distância até a esplanada do belvedere do Trianon, acima do túnel da nova avenida nove de julho. De lá, a vista alcançava o verde de chácaras que pontilhavam a paisagem até o vale do Anhangabaú. Ao longe, no centro da cidade, via-se o imponente edifício Martinelli de 30 andares e os contornos do Mosteiro de São Bento.
Irene ficou a admirar como São Paulo havia se desenvolvido nos quase 15 anos em que esteve fora. Porém, era bom voltar… Queria deixar a Europa para trás, a guerra, os bombardeios, o racionamento e recomeçar uma nova vida.
Ao entrar no restaurante do Trianon logo avistou Gisela já sentada em uma mesa na companhia de duas amigas. A conversa se desenvolvia animada quando, subitamente, Irene emudeceu. Agarrou a mão da amiga e abaixou-se, escondendo o rosto.
— Tenho certeza de que é ele, murmurou. É um homem muito perigoso e cruel. Não tenho certeza se me viu.
Sim, ele a havia visto e percebido que ela o havia reconhecido. Mas o semblante não se alterou e o homem estrangeiro se dirigiu ao fundo do restaurante.
Irene, transtornada, rapidamente saiu do restaurante acompanhada pela amiga. No caminho, ainda abalada, explicou para a amiga. Ele era um dos grandes da cúpula do partido nazista, muito influente, e trabalhava junto ao pessoal da Gestapo, a polícia política. Fazia investigações nas empresas que tinham contrato com o governo e foi assim que eu o vi em algumas reuniões da diretoria da firma onde eu trabalhava. Eu estava presente como secretária e devia taquigrafar as conversas para elaborar um relatório. Quando a reunião terminou, o sujeito, chamava-se Mencken, me puxou para o lado e colocou bruscamente a mão sobre meu ombro. Ordenou que apagasse todas as minhas anotações. E, antes de se afastar, mais uma vez apertou com força o meu ombro. Tive que relatar ao meu chefe o ocorrido. O tenente Mencken, era temido, cruel e investigava possíveis adversários do regime. Como vários outros, ele deve ter escapado, disfarçado, ao final da guerra para a América do Sul e vive aqui sob outro nome. Certamente está na lista dos mais procurados. Se ele me encontrar ou descobrir onde moro, vai me matar.
Irene estava apavorada. O certo era que não poderia mais circular por ali ou andar na cidade. Gisela resolveu levá-la para sua casa no afastado bairro do Brooklin com a recomendação de não sair. Não adiantava ir à polícia. Muitos eram simpatizantes do nazismo desde o tempo da ditadura Vargas.
Gisela resolveu abordar seu chefe americano, Mr. Thompson, na General Motors. Ele não tinha sido combatente, mas servira no serviço de Inteligência dos aliados. O executivo propôs se encontrar com Irene dali a duas semanas na fábrica da GM em São Caetano. Irene e Gisela, no dia marcado, foram de bonde até o centro e, na Estação da Luz, seguiram com o trem até São Caetano. Irene estava o tempo todo preocupada com algum possível perseguidor. Mr. Thompson acalmou-a e a fez sentar a uma grande mesa, onde abriu uma pasta contendo cópias de fotografias.
— Estas são fotos de membros dos altos escalões do partido nazista que estão sendo procurados mundialmente. Eu consegui isto porque também aqui em São Paulo eles estão sendo procurados por policiais especiais. Peço para você examinar atentamente e, quando puder ter certeza, mostrar o homem que viu no Trianon.
Irene logo identificou a foto de Mencken na terceira folha do caderno.
— Sim. Aqui está. É ele mesmo. E o sobrenome está correto. O que vai acontecer?
— Não sei, senhorita. Vou repassar sua informação e veremos o que vai acontecer. Enquanto isso, fique na casa de sua amiga e não circule pela cidade. Você vai saber.
Irene ainda teve que aguardar duas semanas. Numa terça-feira, um envelope marrom sem remetente chegou à casa de Gisela, onde, ainda escondida, continuava a morar. Continha apenas um pequeno recorte tirado de um jornal de Nova York: “Conrad Mencken, importante dirigente nazista, foi apreendido e espera julgamento no III tribunal militar internacional em Nuremberg.”
Finalmente, Irene pôde voltar à sua vida normal. Logo conseguiu um excelente emprego na própria GM na diretoria de vendas. Ainda cruzou algumas vezes com Mr. Thompson no corredor, apenas trocando um bom-dia. Soube alguns meses mais tarde que ele fora indicado para um cargo na filial de Buenos Aires. O que fez Irene pensar qual de fato era a principal ocupação do americano Mr. Thompson .