INFELIZ ACONTECIMENTO - Antonia Marchesin Gonçalves

 



INFELIZ ACONTECIMENTO

Antonia Marchesin Gonçalves

 

Valéria saiu correndo para fora do porão, lembrando-se do ensinamento de sua mãe. “Em situação de perigo, nunca entre em pânico que ele embota a mente, aí você morre”.

Era a presidente de multinacional acostumada a trabalhar dez horas por dia, decisões importantes que dependiam de sua decisão da palavra final, nunca imaginei passar por essa situação. Sua fama na empresa não era das melhores, autoritária, perfeccionista, os seus comandados reclamavam muito.

A convenção anual este ano será num resort no Nordeste. Exigente, fez questão da suíte presidencial, instalou-se com sua bagagem de quatro malas. Tomou banho e desceu para conferir se o auditório estava de acordo com suas exigências. Encontrou tudo em ordem. Precisava de um aperitivo para relaxar. Chegando ao bar não notou o vice-presidente no canto oposto, pediu ao garçom gim-tônica com uma fatia de laranja, sua bebida favorita. Sentou-se com conforto na poltrona e pensou: é hora de relaxar porque serão três dias intensos com muitas atividades para comandar.

Chegando sua bebida veio junto uma cumbuca de amendoim e castanha de caju salgados para acompanhar. O primeiro gole desceu rolando pela sua garganta com prazer, serviu-se de uma porção de amendoim e castanhas de caju bem crocantes e aprovou. Após beber grande parte da bebida, sentiu leve sonolência, atribuiu ao cansaço. Assinou a nota. Mas havia algo anormal., sentia-se como estivesse pisando em nuvens, a vista querendo embaçar. Aos tropeços, conseguiu chegar ao elevador. Desmaiou.

Lentamente voltou à razão. Ouvia vozes ao longe, não sabia onde estava, a cabeça doía. Percebeu-se na escuridão de um lugar. Só uma pequena fresta de luz que saia por baixo da porta. Quanto tempo estou aqui?

            

A lucidez começou a voltar, lembrou-se do bar do hotel, que havia ingerido um drinque. Fui drogada! O famoso drink boa-noite-Cinderela! Fui sequestrada! Pensou.

Quando começarão a fazer exigências? Tentou abrir, bateu e gritou. Ouviu passos. Receosa, ela recuou. Seu algoz surge imperioso.  Era o vice-presidente de sua empresa.

Valéria gelou, e com total cara de espanto, boquiaberta:

— Não pode ser! O que você quer?

— Assumi a abertura da convenção dizendo que por motivo de saúde você não está presente. Nesses três dias você ficará trancada nesse quarto. Liberarei você quando todos forem embora. Nada faltará para você, já trouxe sua bagagem. Está tudo aí. – Disse apontando para as malas empilhadas num canto.

E acrescentou:

— Após esses dias, serei eu o presidente da empresa.

Sorriu um sorriso sarcástico e saiu trancando a porta.

Tateando a parede, Valéria encontrou o interruptor de luz. Era um cômodo sem janelas. Um tímido banheiro era tudo que tinha. Sobre a pia, um velho espelho manchado. Olhou de novo para as paredes, não havia ventilação. 

Lembrou do celular. Correu para sua valise, procurou na bolsa de mão, inutilmente, lógico que não estava.

Tentou buscar a calma, sentou-se e lembrou-se da mãe que sempre a ensinava que em momentos de perigo nunca se deve entrar em pânico, que embota a mente. Valeria sabia que isso era verdade. Respirou fundo várias vezes e isso a acalmou. Esperou algumas horas já com a estratégia defensiva. Conseguiu arrancar o espelho da parede e o colocou ao lado da porta. Poucas horas depois, ouviu a chave girar no ferrolho. Posicionou-se com o espelho nas mãos. Assim que Fernando entrou, ela o atacou, atingindo a jugular do sequestrador. Tinha medo de que ele se recompusesse, então o feriu novamente na cabeça. Sua respiração descompassada a empurrou para fora do cômodo. Era o porão de algum lugar. Subiu a galope a escadaria. Com fúria, atropelava-se nos degraus.

Chegou logo à porta de saída. Identificou o depósito abandonado, sabia que o hotel ficava ali perto.  Desembestou-se a correr até chegar ao resort. Imediatamente, o gerente veio recebê-la. Era estranho tanto sangue nas mãos e na roupa dela. 

— Matei meu vice-presidente! Ele me sequestrou, tive que matá-lo para conseguir fugir! Liguem para a polícia, é urgente. 

Quando a polícia chegou, Valéria foi logo contando todos os detalhes, desde sua chegada ao Resort. A polícia foi ao cativeiro, encontrou o corpo de Fernando, e toda a bagagem de Valéria. 

Após tudo esclarecido, Valéria foi liberada. Voltou para São Paulo com a certeza de que se aposentaria para viver no seu sítio em Monte Verde.

            


TEXTO PARA LEITURA - ANÃO DE JARDIM - LYGIA FAGUNDES TELLES

 


ANÃO DE JARDIM

LYGIA FAGUNDES TELLES 


A data na qual fui modelado está (ou não) gravada na sola da minha bota mas esse detalhe não interessa, parece que os anões já nascem velhos e isso deve vigorar também para os anões de jardim, sou um anão de jardim. Não de gesso como pensava a Marieta, Esse anão de gesso é muito feio, ela disse quando me viu. Sou feio mas sou de pedra e do tamanho de um anão de verdade com aquela roupeta meio idiota das ilustrações das histórias tradicionais, a carapuça. A larga jaqueta fechada por um cinto e as calças colantes com as botinhas pontudas, de cano curto. A diferença é que os anões decorativos são risonhos e eu sou um anão sério. As crianças (poucas) que me viram não acharam a menor graça em mim. Esse anão tem cara de besta, disse o sobrinho do Professor, um menino de olhar dissimulado, fugidio. Então eu pensei aqui com os meus botões (não tenho botões) que quando ele for homem vai ser um corrupto boçal e essa ideia me deixou bastante satisfeito. Não agrado as crianças e nem espero mesmo agradar essas sementes em geral ruins, com aqueles defeitos de origem somados aos vícios que acabam vindo com o tempo. Quais desses pequeninos modelados pela vulgaridade dos pais vão chegar à plenitude de seres honestos? Verdadeiros? Não quero ser um anão puritano, afinal, não estou pedindo heróis, não estou pedindo santos mas dentre esses machos e fêmeas, quais deles serão ao menos limpos? Dê um passo à frente aquele que conseguir escapar da agressividade num mundo onde a marca (principal) é a da violência. Pois é, as crianças. Não tive melhor impressão dos adultos, pelo menos dos habitantes dessa casa. Tirante o Professor (bom e bobo) pude ver (por dentro) a sedutora Hortênsia que desde o começo desconfiou de mim, Não parece um anão filosofante? Prefiro os anões inocentes, ela disse. Então a Marieta riu com seu hipócrita lábio leporino, É um anão de gesso, Professor? Não dá sorte, resmungou. Ele não respondeu, tinha o cachimbo no canto da boca e estava ocupado em me instalar mais confortavelmente entre os tufos de samambaia e próximo da cadeira onde vinha se sentar para tocar o seu violoncelo. Pois é, os adultos. A saltitante Hortênsia matou (devagar) o Professor com doses (mínimas) de arsênico dissolvido no chá-mate. Não era melhor a chantagista Marieta que vestia as roupas da patroa quando ela viajava e dava beijos estalados no focinho do Miguel para depois aplicar-lhe os maiores pontapés quando não via ninguém por perto. Falei em Miguel, um vira-lata que Hortênsia achou na rua quando voltava do encontro com o amante, ela cava generosa depois desses encontros, recolheu o Miguel com suas pulgas e numa outra noite recolheu o gato no qual botou o nome de Adolfo. Esse sempre foi sagaz como a própria dona mas ainda assim eu o preferia ao Miguel que era supercial, conado, na primeira vez em que me viu levantou a perna e mijou na minha bota.

Fui feito de uma pedra bastante resistente mas há um limite, meu nariz está carcomido e carcomidas as pontas destes dedos que seguram o meu pequeno cachimbo. E me pergunto agora, se eu fosse um anão de carne e osso não estaria (nesta altura) com estas mesmas gretas? Nem são gretas mas furos enegrecidos como os furos dos carunchos, a erosão. Tanto tempo exposto aos ventos, às chuvas. E ao sol. Tudo somado, nesta minha vida onde não há vida (normal) o que me restou foi apenas isto, juntar as lembranças do que vi sem olhos de ver e do que ouvi sem ouvidos de ouvir. Presenciei, assisti como testemunha impassível (na aparência) ao que vagarosa ou apressadamente foi se desenrolando (ou enrolando) em redor, tantos acontecimentos com gentes. Com bichos. Mas tudo já acabou, as pessoas, os bichos, desapareceram todos. Fiquei só dentro de um caramanchão em meio a um jardim abandonado. Pela porta (porta?) deste caramanchão em ruínas vejo a casa que está sendo demolida, resta pouco dessa antiga casa. Quando ainda estava inteira havia em torno uma espécie de auréola, não eram as pessoas mas era a casa que tinha essa auréola mais intensa nas tardes de céu azul. E em certas noites claras, quando em redor dela se formava aquele mesmo halo luminoso que há em redor da lua. Agora há apenas névoa. Pó. A morte lenta (e opaca) da casa exposta vai se arrastando demais, os dois operários demolidores são vagarosos (preguiçosos) e estão sempre deixando de lado as picaretas para um jogo de cartas com uma cerveja debaixo do teto que ainda resta. Falei na auréola da casa. Esse suave halo também surpreendi (às vezes) em redor da cabeça do Professor mas isso foi nos primeiros tempos, quando ele ainda tinha forças para vir compor no seu violoncelo, ele compunha aqui ao meu lado. Mas assim que a distraída Hortênsia (fazia a distraída) começou a executar seu plano para herdar esta casa (e outras), assim que começou a esquecer (era esquecida) as tais pequenas doses de veneno na caneca do chá-mate, a carne já envelhecida (setenta anos) do Professor começou a car mais triste. E o halo foi se apagando até desaparecer completamente. O Professor, Hortênsia e Marieta. O Professor tocava seu violoncelo e sonhava até que interrompeu (ou continuou?) o sonho debaixo da terra. Hortênsia, a (falsa) distraída podia ter ido embora simplesmente com seu amante corretor de imóveis mas e a herança? Na última vez em que apareceu aqui no caramanchão teve um olhar pensativo para o violoncelo lá no canto. Voltou o olhar para mim e disse como se eu tivesse lhe pedido satisfações, Depois eu volto para levar. Não voltou. Saiu com seu passinho curto e o seu espelho e o seu gozo. Depois de tão longa temporada com um músico velho, só um corretor tão jovem quanto voraz, foram cúmplices no crime. Será que o tempo (o remorso) vai um dia corroer as delicadas entranhas de Hortênsia como corroeu a minha cara? Fico às vezes me perguntando por que a Marieta me irritava ainda mais do que a própria assassina que pelo menos sabia o que queria e fez (bem) o que planejou. Mas a Marieta-Alcoviteira era uma estúpida, chantageou (mal) a patroa e só não foi além porque mediu a força da outra e teve medo, recuou. Habilmente, Hortênsia se desfez dela, mandou-a cozinhar em outra freguesia até o dia em que ela mesma for cozinhada no fogo do inferno. Os bichos? Adolfo, o gato, assim que desconfiou que as coisas por aqui não andavam brilhantes, fez sua valise e tomou rumo ignorado, sempre foi misterioso. Continua em algum lugar com o seu mistério. Miguel, o cachorro, era supercial mas esperto, quando viu o navio afundando, saiu correndo e foi se aboletar com os móveis no caminhão da mudança e de lá ninguém conseguiu tirá-lo, o que fez a Marieta perder o fôlego de tanto rir quando avisou à patroa que o Miguel já tinha ido na frente esperar por ela na nova casa. O triunfo da impunidade.

Debandaram todos. Eu fiquei. Eu e o violoncelo esquecido e apodrecendo lá no canto. A madeira do caramanchão também apodreceu debaixo das trepadeiras ressequidas, um dia os homens da demolição entraram aqui para fazer suas avaliações. Olharam o violoncelo, bateram com os nós dos dedos na madeira, Será que isso vai render alguma grana? o mais velho perguntou. O outro fez uma careta, Apanhou muita chuva, não serve nem para o fogo, disse e botou a mão no meu ombro. E este anão rachado? Deixa este por minha conta que eu acabo com ele. Saíram e ficou o silêncio murmurejando no jardim. Uma aranha cinzenta desceu e foi tecer sua teia entre as grossas cordas do violoncelo mas as cordas já estavam fracas e como se a teia pesasse, foram estourando aos poucos, tóim, tóim. Então a aranha abandonou a casa musical, deve estar por aí com os insetos e outros bichinhos que continuam fazendo (e desfazendo) os seus negócios. Volto às minhas lembranças que foram se acumulando no meu eu lá de dentro, em camadas, feito poeira. Invento (de vez em quando) o que é sempre melhor do que o nada que nem chega a ser nada porque meu coração pulsante diz EU SOU EU SOU EU SOU. Meu peito (rachado) continua oco. A não ser um ou outro inseto (formiga) que se aventura por esta fresta, não há nada aqui dentro e contudo ouço o coração pulsante repetir e repetir EU SOU. Fiquei como um homem que é prisioneiro de si mesmo no seu invólucro de carne, a diferença é que o homem pode se movimentar e eu estou ncado no lugar onde me depositaram e esqueceram. Até ser removido. Ou destruído, o que vai acontecer logo, os demolidores estão chegando à última parede da casa. Logo eles virão com as picaretas nesta direção, já disse que o mais jovem (e mais forte) me escolheu. E até que esses operários sabem ngir eficiência, a pressa porque apressado mesmo é o corretor- amante, ontem ele andou por aqui. Deu suas ordens com a maior ênfase, está impaciente, o terreno é grande e está localizado num bairro elegante, quer fazer logo o negócio. Quando foi embora no seu belo carro, fiquei olhando o jardim com sua folhagem desgrenhada enfrentando bravamente o capim furioso. Um jardim selvagem mas fácil de abater, trabalho vai dar a figueira-brava com suas raízes agarradas à terra, se descabela às vezes quando fica em pânico. Mas antes será a vez deste caramanchão e eu aqui dentro. Meu avô também era meio arrogante, me disse o Professor certa noite. E riu seu riso breve, nesse tempo ainda ria. É com arrogância que agora espero a morte? Não tenho medo, não tenho o menor medo e essa é outra diferença importante entre um anão de pedra e um homem, a carne é que sofre o temor e tremor mas meu corpo é insensível, sensível é esta habitante que se chama alma. Falei em alma, seria ela um simples feixe de memórias? Memórias desordenadas, obscuras. Tudo assim esfumado como um sonho entremeado de fantasmas, seria isso? Não sei, sei apenas que esta alma vai continuar não mais neste corpo rachado mas em algum outro corpo que Deus vai me destinar, Ele sabe. E agora me lembro da noite em que este peito rachou feito uma casca de ovo: Hortênsia entrou aqui trazendo um pratinho de biscoitos e a caneca fumegante de chá-mate. Deixou a bandeja na mesinha e fez um ligeiro afago na cabeça do Professor que estava abraçado ao violoncelo mas com as mãos descansando frouxas sobre as cordas. Ela voltou para mim o olhar buliçoso, E como vai o anão filosofante? Um dia vou tapar os seus ouvidos com duas bolinhas de algodão, ela disse rindo. E levou a caneca ao Professor, Toma logo, querido, assim vai esfriar! Foi quando meu peito pareceu intumescido, inchado, era tamanha a minha fúria e asco, quis saltar e jogar longe aquela caneca, Não beba isso! O que eu teria lhe transmitido nesse instante para que ela tivesse aquela reação estranha? Ficou de costas, afastou-se. Ele pegou a caneca, soprou a fumaça e tomou um largo gole como um viciado em veneno. Teve um sorriso descorado quando me indicou com a mão que segurava a caneca, Deixa o Kobold com seus ouvidos, preciso de um ouvinte assim severo. Fechei os olhos (olhos?) para não vê-lo beber o resto do chá.

Vou jogar no clube, ela avisou ao sair toda saltitante, andava às vezes feito um passarinho. Ah, não vá deixar de tomar sua sopa, já avisei a Marieta. Ficamos sós. Então eu tive ímpetos de agarrá-lo, sacudi-lo até fazê-lo vomitar o chá, Seu idiota! Ela está te matando, te matando! Minha indignação foi tão violenta que senti nessa hora que alguma coisa em mim estava se rompendo, foi excessivo o esforço que z para me movimentar. Ele continuou imóvel, pensando, a cara assombrada. Depois levantou-se com dificuldade, chegou a se apoiar no violoncelo que quase tombou num gemido, Blom!… Vai chover, Kobold, avisou baixinho. Quando o vi afastar-se cambaleando em direção à casa eu tive a certeza de que não ia vê-lo mais. A chuva se anunciou num raio que varou o teto do caramanchão. Fui atingido ou foi aquela coisa que se armou no meu peito e acabou por golpear a pedra? Não sei, mas sei que foi nessa noite que se abriu esta rachadura sem sangue e sem dor. Então as formigas foram subindo pelo meu corpo e vieram (em fila indiana) me examinar. Entraram pela fresta, bisbilhotaram o avesso da pedra e depois saíram obedecendo a mesma formação, além de disciplinada a formiga é curiosa e essa curiosidade é que a faz eterna.

 

Kobold. Pois Kobold foi o nome que o Professor me deu, ele estava num antiquário quando me descobriu de repente no fundo penumbroso de uma das salas. Achou graça em mim (nesse tempo ainda ria) e disse ao vendedor que eu era muito parecido com seu avô chamado Kobold, o avô tinha o mesmo nariz de batatinha, a pele toda enrugada e esse jeito pretensioso de juiz que julga mas não admite ser julgado. Inclinou-se para me examinar e pareceu agradavelmente surpreendido, Esse anão tem um furinho lá dentro do ouvido como as imagens dos deuses chineses para ouvir melhor as preces. Não vai ouvir preces mas o meu violoncelo, ele avisou ao me instalar no chão arenoso do caramanchão, entre dois tufos de samambaia. Sua música era boa? Era ruim? Não sei e nem ele ficou sabendo, esse meu dono era tão fraco que não teve nem forças para cumprir sua vocação, não tomava notas ou então rabiscava desordenadamente as composições em folhas que acabava perdendo e a Marieta jogava no lixo. Tocava o violoncelo horas seguidas (blom, blom, blom) refugiado ali no verde do caramanchão fechado pelas trepadeiras e nesses momentos parecia (vagamente) feliz. E agora me lembro, quando um sabiá veio cantar na figueira, ele se encantou e acabaram ambos fazendo um dueto, o sabiá soltava seus gorjeios agudos e o violoncelo respondia com sons tão graves que pareciam vir das profundezas da terra. Me lembro ainda que ele lamentou um dia, Que pena, o sabiá foi embora. Numa tarde em que Hortênsia chegou com a manta para cobrir-lhe os pés (fazia frio), surpreendeu-o falando sozinho e fingiu zangar-se, Não quero que fale sozinho, querido, isso é coisa de velho! Ele suspirou, Mas eu sou velho. E defendeu-se em seguida, Não estou falando sozinho, estou falando com o Kobold. Mas isso já faz muito tempo, ela era amante do banqueiro com quem ia para a Europa, acho que não pensava (ainda) em assassinar o Professor. Nessa época ele estava de cama com bronquite e era aqui no caramanchão que ela vinha telefonar para o amante. Trazia o pequeno telefone dentro da sacola de lona vermelha e ficava fazendo suas ligações secretas. Quando não conseguia comunicar-se com ele (era casado) mandava a Marieta levar-lhe os bilhetes. Aqui ela teve a notícia da morte do banqueiro e pela palidez que vi em sua face (sempre corada) pude bem imaginar o quanto ele era rico. Vieram em seguida os outros amantes, demorou um certo tempo para conhecer o corretor que acabou seu cúmplice. Pelas conversas (em código) que chegavam (às vezes) ao auge da discussão, deu bem para perceber que ele queria recuar, deve ter tido medo. Mas quando esse tipo de mulher mete uma coisa na cabeça, vai mesmo até o fim. A diferença foi que dessa vez a mensageira Marieta (que já devia estar chantageando) ficou completamente de fora.

Amanheceu. Ontem, os homens derrubaram o último muro e hoje será a vez do caramanchão, ouvi os dois combinando, a figueira vai car para depois. Deixa o anão comigo, o mais jovem lembrou e fez um gesto obsceno. Tenho pouco tempo. Sei que esta essência (alma?) que me habitou tantos anos não vai agora se esfarelar como a pedra, sei que vou continuar, mas onde? Reconheço que sou mal-humorado, intolerante, não devo ter sido um bom parceiro nem de mim mesmo nem dos outros, não me amei e nem amei o próximo. Mas convivendo com esse próximo eu poderia ser diferente? Tanta ambição, tanta vaidade. Tanta mentira. O Professor era delicado, manso de coração mas não era irritante com a sua mornidão? A bondade sem a coragem, sem a energia, ele nem dava pena, dava até raiva. Dos outros, desses não quero nem falar, tenho pouco tempo, confesso que não fui mesmo compassivo e assim ainda ouso sonhar com uma outra vida porque sempre sonhei (e ainda sonho) com Deus. Então peço isto, queria servi-lo na ativa, quero lutar com o amor que sou capaz de ter e não tive, queria ser um guerreiro, não um discípulo- espectador, mas um discípulo-guerreiro, me pergunto até hoje como aqueles lá permitiram a crucificação de Jesus Cristo. Eu sei do seu desencanto diante deste mundo que ficou ruim demais e ainda assim estou pedindo, quero lutar, me dê um corpo! Imploro o inferno do corpo (e o gozo) que inferno maior eu conheci aqui empedrado. Na hora do julgamento do Cristo Pilatos pede uma bacia d’água, lava as mãos e diz: “Estou inocente do sangue deste justo”. Ah! eu queria tanto entrar ali na forma de uma serpente e picar Pôncio Pilatos no calcanhar!

As vozes dos demolidores estão mais nítidas, um deles parou para arregaçar as mangas da camisa, vai acender um cigarro. Baixo o olhar e vejo um escorpião que saiu de debaixo da pedra e se aproximou até parar interrogativo diante do bico da minha bota. Sei que é o último bicho que vejo, nenhum medo nem dele nem da morte mas agora é diferente, estou ansioso, ansioso, ah! se pudesse compreendê-lo, mas escorpião não precisa de compreensão, precisa de amor. Tem a cor da palha seca e a cauda erguida, está com a cauda em gomos sempre erguida no alto e em posição de dardo, o veneno na ponta aguda, é um lutador pronto para se defender. Ou atacar. Avançou mais e as pinças dianteiras que sondam e informam — as pinças se imobilizaram endurecidas no ar. A cauda (rabo) erguida e pronta para o combate se ele pressentir que minha bota vai avançar. Aí está o taciturno habitante das cavidades. Das sombras. E me lembro de repente, vi certa tarde um casal (macho e fêmea) passeando de mãos dadas, é possível? mas vi o casal sair de mãos dadas sob o sol que se escondia, também eles se escondendo.

 

Os homens estão parados na entrada do caramanchão e combinam um jogo para mais tarde, o mais velho parece satisfeito, o trabalho está praticamente terminado. O escorpião já fugiu com seu dardo aceso, as pinças altas no alerta, escondeu-se. A tática. Um ser odiado odiado odiado e que resiste porque os deuses o inscreveram no Zodíaco, lá está o Signo do Escorpião o Scorpio e se Deus me der essa mínima forma eu aceito, quero a ilusão da esperança, quero a ilusão do sonho em qualquer tempo espaço e o demolidor jovem está aqui junto de mim. Pai nosso que estais no céu com a Constelação do Escorpião brilhando gloriosa brilhando com todas as suas estrelas e o braço do homem se levanta e fecho os olhos Seja feita a Vossa vontade e agora a picareta e então aceito também ser a estrela menor da grande cauda levantada no innito no innito deste céu de outubro.



Resumo do conto anão de jardim:

Esse é um resumo “Anão de Jardim”, de Lygia Fagundes Telles, publicado no livro “A noite escura e mais eu”, de 1995. A narrativa em primeira pessoa conta a crise pela qual passou um casal e os problemas de comunicação entre eles. A autora aborda problemas comuns no mundo moderno, como a falta de interação entre pessoas que deveriam ser próximas.

No conto, que é narrado por um ser inanimado, os personagens possuem problemas que não podem ser resolvidos. O leitor acaba experimentando uma tensão narrativa, pois encontra, ao mesmo tempo, um caráter fantástico e um realismo frio. A história traz características marcantes de muitas narrativas do final do século XX e começo do XXI. Leia agora o resumo Anão de Jardim.

A história é narrada por um anão de jardim, que teve influência direta no conflito da narrativa. Feito de pedra, o anão se chama Kobold, e presencia a destruição da casa onde viveu durante muito tempo. Na sua companhia, só conta com um violoncelo quebrado. Eles terão o mesmo fim da casa e de tudo o que há nela.

Enquanto aguarda no caramanchão, o anão observa os operários trabalhando. Começa, então, a se lembrar de como foi sua vida até aquele momento. Ele nos conta que foi um professor que o comprou. Esse homem que o retirara de um antiquário tornou-se seu amigo, e ambos gostavam de conversar. O professor tinha uma esposa chamada Hortência, que era desprezada por seu marido. Ele passava muito mais tempo conversando com Kobold, deixando sua mulher solitária e isolada...

Leia mais: https://www.resumoescolar.com.br/literatura/resumo-anao-de-jardim/



O PORÃO - Suzana da Cunha Lima

 


O PORÃO

Suzana da Cunha Lima

 

Dois jovens americanos, ávidos por experiências novas, já que vinham de uma pequena cidade americana, onde parece que tudo já havia sido feito, resolveram iniciar sua vida profissional em São Paulo. Cidade do empreendedorismo, segundo relatos de muitos amigos. Eram primos, um arquiteto e outro engenheiro, com algum dinheiro no bolso e o coração transbordando de esperanças. Logo ao chegar, foram a um endereço em Santa Cecília onde pretendiam se hospedar.

De início, ficaram boquiabertos com o tamanho da cidade. Afinal, estavam diante da quarta cidade maior do mundo. A deles parecia uma viela diante da grandiosidade do que estavam vendo. Ficaram animadíssimos e se abraçaram gritando. “Venceremos, diziam. Ou não nos chamamos Peter e David!”

Cedo perceberam que o caderninho com telefones e endereços não foram muito úteis. Sempre perguntavam por experiência anterior, fato que um projetinho de chafariz na cidade natal não ajudava nada no currículo.

Porém, o destino é um mago indecifrável. Um dos contatos, ao saber que dispunham de algum capital, sugeriu que comprassem casas para reformar e depois vender. Dava uma boa margem de lucro. E sugeriu investigarem ainda mais o bairro, já antigo, cheio de casinhas com problemas próprios da idade. Indicou até uma casa de esquina numa rua em declive, que souberam depois ser dele mesmo, empacada há anos, sem alugar nem vender.

Afoitos e cheios de energia, e confiantes em seus conhecimentos profissionais, resolveram comprá-la e eles mesmos assumirem a reforma. Mais uma vez, socaram o ar, se abraçaram, gritaram como nos tempos da faculdade e até acabaram com uma garrafa de champanhe. É nossa! É nossa hora!

A casa, meio destruída por cupins, estava ainda em pé por ter suas pilastras de pedra e boas fundações.  Tentaram acabar com os cupins removendo o assoalho, mas viram logo que havia uma colônia deles, muito bem instalada na casa toda, em qualquer lugar que houvesse vestígios de madeira. Depois de retirarem 2 assoalhos quase desmanchados e contra pisos, surgiu uma escada para o porão, do qual ninguém suspeitava. E oh, o que havia neste porão?

Eles dois se olharam contrafeitos, já um pouco assustados. Só podia ter coisa velha.  Nem o proprietário sabia daquilo.  Um refúgio secreto para espiões no tempo da guerra? Pelas contas, dava, a casa era até mais velha. Ou esconderijo de gangues? Depósito de armas?

Um laboratório secreto para produzir drogas? Lugar de cativeiro para algum sequestro? 

Não deu tempo nem para especularem ou investigarem “in loco”. Centenas de ratazanas bem nutridas surgiram pela escada e mal deu tempo deles dois saírem aos tropeços, apavorados.

Ah, não é só mulher que tem medo de ratos não.

Dizem que estão correndo até hoje.

 

 

A COMPULSÃO = Antonia Marchesin Gonçalves.

  




A COMPULSÃO

Antonia Marchesin Gonçalves.

 

                        Tenho que conseguir o mais rápido possível a procuração da minha mãe e irmã, pois já consegui do meu irmão Ronaldo, falou Branca para seu adversário de jogo. – Não me interessa como você vai fazer, mas te dou 48 horas para você pagar o que me deve, senão vai pagar com a vida ou eu invado a sua casa. Branca estava na fase de ganhar e até quebrar a banca. Mas a sorte mudou e ela estava prestes a perder tudo e perdeu. Poupança, dólares economizados por anos pela mãe já tinham ido.

                        A vizinhança onde moravam ela e a mãe, todos haviam ajudado. Teve os melhores empregos, até ganhando bem, mas sempre saía deles dando mil desculpas, inclusive de assédio dos chefes, mas sempre era por pedido emprestado dinheiro de todos os colegas. A mãe a recolhia cada vez de volta em casa, já viúva, vivia modesta e feliz com a sua única casa, construída pelo marido. Essa filha não tem sorte, dizia. Bonita e vistosa, Branca vestida sempre bem, chamava a atenção, com seu carisma de infortunada, convencia a todos a lhe dar ajuda.

                        Telefonou para a irmã dizendo que iria vender a casa, pois não suportava mais viver nela, disse que o Ronaldo já havia dado a procuração, - preciso da mamãe e sua. Nessa época, a mãe doente morava com a irmã, essa nem desconfiava das dívidas, muito menos a ponto de morrer e por motivo de jogo em cassinos clandestinos. À noite, ela estava com uma senhora do cartório e um senhor de boa aparência, usando a acompanhante da mãe como testemunha. Nesse período, a mãe ainda conseguia assinar, a irmã não teve alternativa, teve que assinar também.

                        Assim, a casa da família se foi. A esperança da mãe era de retornar para sua casinha, ela nunca soube da verdade. Outra verdade era o ódio que ela nutria pela mãe, por ser muito rebelde desde pequena, apanhara muito dela, foi à forma de se vingar, fazia questão de falar abertamente.

A Carta - Adriana Frosoni

 




A Carta

Adriana Frosoni

 

Foi há mais de trinta anos e até hoje não consigo esquecer nenhum detalhe, nem mesmo do ruído do automóvel freando em frente da minha casa; eu estava no alpendre. Os vidros com insulfilme escuro não me permitiam ver quem estava no carro. O ronco do motor que não foi desligado indicava que o assunto seria rápido. Senti a ansiedade me invadir, espremi os olhos ansiosos para o vidro que se abria e um sorriso conhecido surgiu. 

— Oi, Aninha! Não posso descer para matar a saudade, só vim para entregar-lhe um presente.

Era Henri, meu namorado, corri para pegar o pacote na janela do carro. Pelo seu semblante, o sorriso sem graça e a tristeza no olhar, eu soube: havia um problema sem solução. A irmã dele estava na direção e me deu um sorriso amarelo, parecia mais um pedido de desculpas do que um cumprimento. Fiquei onde estava, com os olhos cravados no rapaz e o coração acelerado. Eles partiram antes que o vidro fosse fechado.

Abri o embrulho ali mesmo, de pé na calçada, e a primeira coisa que vi foi um envelope vermelho. Não havia somente isso, mas esse foi o item que mais me intrigou. Tinha também uma barra de chocolate, um pingente em forma de coração e um cartão postal da Alemanha, com apenas três palavras no verso: “Espere por mim!”.

Fechei a caixa, tomei um longo fôlego e caminhei de volta para casa, onde o silêncio do meu quarto poderia me oferecer algum conforto emocional. Criei coragem e abri a carta com cuidado. A caligrafia pequena de Henri saltou-me aos olhos, e suas palavras começaram a tecer a história que ele precisava me contar. As letras se confundiam em minha frente, borradas pelas lágrimas que começavam a surgir. Algumas expressões saltavam aos meus olhos e meu peito apertava. 

“Partirei em breve. Meus pais não me permitiram ficar.” Doeu-me ler aquelas palavras, mesmo compreendendo a situação dele e dos seus pais. Naquele momento minha decepção era tão grande que consumia toda a minha capacidade de compreensão, e o que me restou foi engolir a dor. Embora ele tenha prometido: “Voltarei quando atingir a maioridade.”, as lágrimas escorriam sem controle e silenciosas. Isso aconteceu por meses, assistindo filmes, ouvindo músicas ou simplesmente à toa. 

Um dia elas secaram, e isso foi na data em que Henri fez seus dezoito anos e eu ainda não havia recebido nenhuma correspondência dele. Eu havia escrito várias e nem sequer podia enviá-las, já que não sabia o endereço. Assumi que a promessa dele de voltar era vazia e munida de coragem escondi o pacote de presente com tudo dentro, tirá-la de vista me ajudou muito. Meu sorriso voltou gradualmente.

Hoje voltei a abrir a caixa, havia ficado até então esquecida na casa de meus pais. Não chorei, doeu-me de uma forma diferente. Essa foi apenas a primeira das muitas decepções amorosas que tive. Joguei o pingente no lixo. Rasguei o cartão postal e a carta sem emoção alguma, mas, quando o fiz, percebi que a resistência do envelope vermelho sugeria haver mais do que uma folha de papel ali dentro. Hesitei por um instante, não resisti à curiosidade e puxei a ponta do que parecia um cartão de visita, que, naquele dia, não percebi que estava entre as dobras do papel. Nele havia um endereço em Berlim.

De repente, não senti ódio nem raiva. Continuei a olhar para aquilo e apenas senti pena do fim. Aquele cartão de visitas me fez aceitar que houve um mal-entendido, encerrando um capítulo sem fim. 

 

 

 

 

 

Aquela casa velha da rua Baronesa de Itu - Ledice Pereira

 

Aquela casa velha da rua Baronesa de Itu

Ledice Pereira


Recém-formados em Engenharia Civil no MIT – Massachusetts Institute of Technology, os primos William e Johnny realizavam aquele sonho sonhado desde a adolescência, de conhecer países distantes com culturas diferentes daquela vivida em Boston, onde nasceram e cresceram.

Durante anos, aprofundaram-se na pesquisa sobre o Brasil, país do carnaval, do futebol, das mulheres bonitas e, sobretudo, das grandes oportunidades. Até se inscreveram num curso de língua portuguesa, dado por um professor português, que os iniciou no idioma, para que não tivessem dificuldade de se comunicar.

Tiveram que enfrentar o descontentamento dos pais, que achavam aquilo uma loucura. Não podiam aprovar a ideia de morar naquele fim de mundo, sendo que ali teriam todas as facilidades para iniciar a carreira.

Chegara o grande dia. A despeito de não concordarem, os pais os acompanharam ao aeroporto, contrariados.

Os jovens estavam ansiosos, coração batendo, mãos suadas, tentando, em vão, disfarçar as lágrimas que insistiam em brotar do canto dos olhos. Sabiam que não teriam, lá fora, o porto seguro com o qual sempre puderam contar ali.

O voo foi tranquilo, embora a ansiedade os mantivesse acordados a maior parte do tempo. Era o voo mais longo de todos que já haviam feito.

Tentavam enxergar a paisagem através das nuvens.

O avião pousou na cidade de São Paulo, pontualmente às onze horas da manhã local, e, após todos os trâmites, tomaram um táxi que os levou ao hotel indicado por um amigo dos pais, no bairro dos Jardins.

Passava das três horas da tarde quando finalmente se instalaram. Estavam famintos.  

Os primeiros dias foram de reconhecimento do local. Traziam algumas indicações de restaurantes, shoppings, bares, cafés, recomendados por amigos que já haviam estado na cidade.

Depois de uns dias, já, mais ambientados, entraram em contato com algumas imobiliárias, pois o objetivo era encontrar uma casa antiga, que pudessem comprar e reformar. Para isso, tinham economizado bastante e podiam contar com a ajuda dos pais.

Além disso, vinham também com carta de recomendação para poderem trabalhar na construção civil. Tinham informação de que a cidade estava em grande ascensão imobiliária.

Encontraram a tal casa, mais cedo do que imaginavam. Ficava no bairro de Santa Cecília, onde restavam várias casas antigas que o mercado imobiliário ainda não dominara. A rua tinha um movimento de carros constante. Baronesa de Itu – quem seria? Tiveram curiosidade. Disseram-lhes que se tratava de alguma nobre senhora dos tempos em que o ciclo do café estava no auge e os barões instalavam-se em alguns bairros, dando às ruas seus nomes ou sobrenomes.

Tratava-se de um sobrado com porta de ferro que encontrava a calçada, escadas para chegar a uma pequena sala, dois pequenos quartos, cujas janelas davam para a calçada, e tinha ao fundo, de um lado, a cozinha, de outro o banheiro.

Estranharam que tivessem que subir escadas para a casa. Só depois repararam em duas pequenas janelas abaixo das janelas dos quartos, indicando haver ali algum cômodo.

Com certeza, seria um velho porão inutilizado.

Fecharam negócio depois de muito pechincharem e, como o imóvel estava à venda já há dois longos anos, o proprietário aceitou a condição que lhe ofereciam, ainda mais que a entrada seria em dólar.

Como pretendiam iniciar logo a reforma, continuaram morando num hotelzinho próximo dali para facilitar o acompanhamento da obra.

Resolveram iniciar pelo que achavam que seria um porão desativado.

— Tem que ter uma maneira de chegarmos lá – pensou William.

Ao examinar o chão minuciosamente, encontrou um pequeno rebaixamento em uma das tábuas. Era quase imperceptível. Ao tocar o lugar, ouviu um tec, significando que havia aberto alguma coisa. Puxou a tábua, que cedeu prontamente, levantando uma tampa, espécie de porta, desvendando uma escada que levava ao andar debaixo.

— Bingo – gritou, chamando Johnny, que veio correndo e ficou olhado pasmo para o que podia se apreciar dali de cima:

Um escritório montado com mesas, cadeiras, estantes cheias de arquivos, livros e um computador antigo. Estava tudo empoeirado e, com apenas aquelas duas janelinhas entreabertas, não conseguiram ficar por mais de dez minutos no lugar. Ambos subiram com acesso de tosse, quase sem poder respirar. Estavam diante de um problema.

No dia seguinte, munidos de uma máscara de proteção, desceram ao lugar para descobrir alguma porta escondida por onde alguém poderia ter tido acesso ao local. Descobriram atrás da estante, um portão de ferro já bastante enferrujado que teria sido fechado por fora com uma parede de tijolos. Olhando por fora, ninguém imaginava existir um portão ali.

O ex-proprietário foi chamado para esclarecer e contou que havia adquirido a casa há quase três anos, de um alemão que precisava voltar imediatamente para a Europa e, portanto, havia feito uma proposta irrecusável. Achando que seria um bom negócio, ele, em seguida, colocou o imóvel à venda, desconhecendo a existência de qualquer porão.

Os primos foram aconselhados a chamar a Polícia Federal. O local foi vistoriado, os arquivos e o antigo computador foram levados para análise.

O ex-proprietário foi obrigado a devolver aos jovens o sinal. O negócio foi desfeito.

Aquele sonho de reformar uma velha casa numa terra distante deu lugar ao desejo de voltar pros braços dos pais e arrumar um emprego em Boston, onde eram mais do que conhecidos. Ali, resolveram reformar velhas casas e revender, negócio que deu super certo.

Através do ex-proprietário do imóvel de Santa Cecília, ficaram sabendo que aquele esconderijo havia pertencido a uma gangue especializada em roubos de bancos, cujo mentor havia sido preso e levado para uma prisão de segurança máxima. Com base nos elementos encontrados, a Polícia Federal, que há anos estava à procura do bando, pôde chegar ao esconderijo, no norte do país, onde eles arquitetavam grandes novos roubos, chefiados pelo antigo mentor que, de dentro da cadeia, continuava a chefiar o grupo.



CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CARTAS - LEDICE PEREIRA

 




CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CARTAS

LEDICE PEREIRA

 

Nos dias de hoje, em que as redes sociais tomaram conta de toda uma sociedade, quem se interessaria por enviar cartas a alguém?

Tenho saudade do tempo em que nos comunicávamos por meio de cartas.

Era quase um ritual, escrever, envelopar, selar e colocar no correio.

Durante muitos anos, troquei cartas com três grandes amigas que se mudaram de São Paulo. E, após me casar, trocava cartas também com meu pai, que foi morar em Santos.

Como não tínhamos telefone, era a forma que havia para nos mantermos a par do que nos acontecia. Eu colocava no papel toda minha rotina com os filhos e ele assim conseguia acompanhar os nossos movimentos. Tenho guardadas, até hoje, as cartas que trocamos. Com elas pude traçar um cronograma dos acontecimentos que passávamos e sentir o carinho que acompanhava aquela troca. Aguardava ansiosa as palavras carinhosas que ele me enviava. “Minha querida Ledice...”

Eu procurava responder com o mesmo carinho, “Papai querido, saudades...”

Para uma de minhas amigas, que já partiu para outra dimensão, cheguei a mandar uma carta numa espécie de paródia da música do Chico Buarque de Holanda, “Meu caro amigo”.

Eu andava numa ‘roda-viva’ (olha o Chico aí outra vez) e não tinha tempo de parar e escrever. Ela, solteira, ficava me cobrando. Resolvi mandar aquela carta, contando tudo que acontecia comigo, marido e crianças em forma de versos.

Sei que tenho cópia daquela carta, mas não encontrei. Começava assim:

“Minha cara amiga, me perdoa, por favor,

há muito tempo não te escrevo...”

 

E assim, continuava contando as peripécias da semana com as crianças. Ela adorou e a carta ficou na história.

Saudade de escrever longas cartas e trocar com pessoas queridas.

Hoje, procuro trocar mensagens com duas delas e com todos os meus grupos de amizade. Apenas, essas mensagens não perpetuarão como aquelas cartas de papel.

 

ÚLTIMA CARTA. - Yara Mourão

 



ÚLTIMA CARTA.

Yara Mourão.

 

Jade, envolta em seu xale enegrecido, começava a fazer parte da paisagem. Sempre sentada sobre as pedras em frente ao posto do correio, do outro lado da rua, onde havia, ainda, algumas casas de pé.

Ali ela passava muitas horas, como uma sombra imóvel, na desesperança que a saudade traz. Lentamente, a espera a consumia.

 O garoto do correio ia chegar com os pacotes em algum momento. Às vezes era o menino magrinho, outras vezes o homem de uniforme. Levantavam poeira e cinzas do chão com suas bicicletas com os pacotes da correspondência.

Jade havia enviado muitas cartas a Jonathan; para lugares e endereços tão estranhos, tão desconhecidos. Nem sabia se ele as recebia. Ela relatava fatos cotidianos, dava notícia dos filhos, da casa ainda de pé. Enviava mensagens de fé, de que um dia aquela guerra acabaria e tudo seria bom como antes.

Meses atrás, viera uma resposta: Ah! Ele estava bem, tinha recebido mantimentos e roupas de frio. A ferida na perna estava cicatrizando, logo estaria na ativa de novo!

Isso foi no início do outono, ainda. Agora, o inverno já instalado, Jade temia pela falta de notícias. Ela mandou dúzias de cartas e nenhuma resposta chegou. Sabia que os grupos se dispersavam, mudavam de cidades até. Talvez não fosse fácil achar um posto que coletasse a correspondência.

Quando anoitecia, Jade voltava para casa a passos lentos, fechada em seu silêncio, espantando, como podia, os pensamentos tristes de seu coração. Se dormisse, sonhava com Jonathan indo para tão longe, numa terra iluminada e florida, cheia de belezas! Acordava banhada em suor, trêmula. Não podia crer em ilusões.

As horas morriam sobre as horas e pela manhã ela se apressava para ir ao posto.

Um dia, o menino chegou cansado. Pousou o pequeno pacote sobre o balcão do posto e saiu lentamente. Acenou para Jade, quase um adeus.

Ela correu para o posto. Ah! Finalmente!

— Será que chegou algo para mim? – Perguntou.

O velho buscou entre os envelopes sujos.

— Sra. Jade?

— Sim, disse ela com voz embargada.

— Aqui está; sem remetente.

Ela nem se importou. Isso era um detalhe dispensável nas circunstâncias. Abriu a carta. Leu de um lance porque eram só quatro linhas.

A primeira falava da saída no jipe.

A segunda falava da coragem de Jonathan.

A terceira falava da bomba no carro.

A última falava que todos morreram.

Jade guardou a carta junto do peito, se enrolou no xale e voltou para casa a passos lentos, pois as crianças precisavam de comer e a vida tinha de continuar, já esquecia até por quê.