MATERIAL DA AULA DE 27 DE FEVEREIRO DE 24 - QUE NÃO FALTE EMOÇÃO NA ESCRITA

 





Quando os autores não se preocupam em empenhar emoção na história, é muito provável que a história não faça a necessária conexão com o leitor. Pois é através da emoção contida na trama que o leitor sentirá empatia com o enredo. Se não houver essa conexão, é porque não houve emoção suficiente no texto.

Não tenham medo da pieguice, não fujam daquilo que é importante para segurar seu leitor: emoção textual. O texto é sua mercadoria, ofereça a melhor, a mais atraente, a mais empolgante.

Além do já costumeiro conselho “mostre, em vez de contar”, vocês, escritores, precisam ir mais fundo, se apoderando dos pensamentos dos personagens, das expressões faciais, dos sinais através dos olhares, dos movimentos corporais. Não devem ter receio de levar o personagem às lágrimas, ou às últimas consequências. Façam isso e explorem os sentimentos deles para contagiar o leitor. Invoquem o passado do personagem para provocá-lo, tragam à tona um amor esquecido que vem agora torturá-lo, um crime escondido, um segredo que ele jamais imaginou as consequências se fosse revelado. Provoquem seus personagens! Trabalhem arduamente na emoção do personagem, na emoção textual.

Descrevam dores e sofrimentos, mostrem seus corações batendo forte, o suor escorrendo pelas costas ou suas mãos ficando dormentes por cerrar os punhos. Podem ir além, dizendo ao leitor que ele teme pela sua vida. Sim, numa conversa do narrador com o leitor, ou do personagem com o leitor, mostrem a insegurança, o medo do personagem. Explorem tudo através das figuras de linguagem, escolham um título chamativo, façam valer as ferramentas literárias que moram nos confins de tantas escritas.

Criar dois contos tendo o cuidado de empenhar emoção nos textos.

TAREFA 1: “Uma mulher faz inquietas descobertas por meio de linhas telefônicas cruzadas”

 

TAREFA 2: Um homem de negócios está em viagem, quando sofre um mal súbito e perde a memória.

 

AS MÁSCARAS CAEM - ANTONIA MARCHESIN GONÇALVES

 

 



                            IN MEDIA RES – AS MÁSCARAS CAEM

                           ANTONIA MARCHESIN GONÇALVES

 

                   O ambiente na sala está muito tenso, o silêncio e, ao mesmo tempo, o estado de nervosismo em que todos se encontravam, percebiam-se no ar. Expressões fechadas, alguns mordiam as unhas das mãos, outros andavam de um lado ao outro da sala. São poucos, só os mais próximos de Esmeralda, a matriarca e fundadora da grande empresa de cosméticos. Empresa essa que ela, ao precisar trabalhar após ficar viúva com três filhos, sem os rendimentos do marido e sem qualquer herança, começou a vender cosméticos de porta em porta.

                   Mas via que vender aqueles produtos que já existiam no mercado não lhe dava muito lucro. Formada em biologia, sabia as funções de plantas e flores e como poderia usá-las, tanto para comer, como tirar proveito das substâncias nelas contidas, por exemplo, usar rosas para perfumar os cremes e óleos regeneradores para a pele. Resolveu montar um pequeno laboratório no quintal da casa e estudar a melhor forma de aproveitamento das flores e folhas da natureza. À noite, após atender à clientela e dar o jantar aos filhos, quando dormiam, ela fazia as experiências manipulando produtos no laboratório.

                   E assim ela criou uma empresa de cosméticos totalmente naturais, desenvolvidos com plantas que havia na época. Era inovação! Acabou criando uma empresa de sucesso. Juntamente com seus filhos, dois homens e uma mulher, um administrador de empresa Alberto, outro economista Julio e a filha Eugenia, bióloga como ela, formou o time para administrar junto dela a empresa que crescia. Ela, como sócia majoritária e presidente, dava a palavra final.

 

                   Agora eles estão reunidos com os devidos cônjuges para deliberar junto aos advogados a decisão que deveriam tomar. Esmeralda, a mãe, estava desaparecida há dois dias. Na folga do motorista, ela foi guiando para a empresa após o café da manhã, não chegou ao escritório para a reunião da assembleia, que votaria sua sucessão. Ninguém tinha notícias de seu paradeiro.  Levantaram a hipótese de sequestro, acidente no percurso de viagem para a casa de campo, lugar onde ela se refugiava com frequência. Mas, nada! 

Por cautela, ou medida de segurança, não podiam divulgar a notícia. As ações na bolsa cairiam, prejudicando o andamento da empresa ou atrapalhando as investigações. No entanto, os familiares e diretores não receberam nenhum telefonema ou mensagem pedindo o valor do resgate.

                   O celular dela estava na caixa postal até não responder mais. O delegado conhecido da família aconselhou a esperar mais um dia. Alegou que sequestradores, como estratégia, costumavam deixar as famílias mais ansiosas e assim podiam negociar melhor o resgate.

Alberto, o filho mais velho e provável sucessor da mãe, mostrava-se mais ansioso que todos, tinha certeza de que seria o escolhido naquele dia. As horas passavam, o nervosismo tomando conta da família. E assim, mais um dia se passou. Os filhos se instalaram na casa, juntamente com os advogados, diretores financeiros e delegado, que a essa altura já havia colocado em campo o famoso detetive Farofino, cujo trabalho impecável jamais deixou um caso sem solução. 

                   O detetive montou o esquema para monitorar os telefones da casa, da empresa e também dos filhos, estudou todo o trajeto habitual da vítima, investigou empregados da casa e os homens da segurança. E até aquele momento, não havia nada que chamasse sua atenção para a possibilidade de sequestro ou coisa do gênero. Parecia mesmo uma incógnita aquele caso.

Já iam pelo quarto dia, quando Eugênia, a filha, começou a se desentender com o irmão Alberto, culpando-o de ter adiantado a reunião do conselho para tomar posse no lugar da mãe. A convivência entre eles começou a ficar difícil. Nem os advogados, nem o delegado, não se intrometiam. O que ficou notório era que Julio era o único que se mantinha calmo, e apesar de tudo seguia tentando apaziguar os ânimos e procurava soluções para a situação, inclusive não deixou de ir trabalhar algumas horas para solucionar algumas questões urgentes, e também tranquilizar os funcionários.

O detetive Farofino assistia ao desenrolar dos desentendimentos entre os filhos e tratou de aproveitar o descuido deles para examinar os cômodos da casa, os dormitórios, os pertences pessoais de cada um, o escritório no piso superior, os documentos, tudo. Farofino, atrevidamente, abriu todas as portas, gavetas e nichos que encontrou. Depois disso, parecia satisfeito com sua busca.

Ao acordarem no quinto dia, deram com a mãe Esmeralda na cozinha tomando o café, ao lado do motorista. Estava bela e alegre como sempre. Houve um alvoroço geral, todos falando ao mesmo tempo, fazendo perguntas, querendo saber o que havia acontecido. Na sala de estar, os advogados, diretores, delegado e técnicos estavam, igualmente, surpresos. Farofino não.

                   A empresária disse, com voz firme, que foi um teste que fez para saber quem seria a pessoa mais indicada dos três para a sucessão: “Já tenho a resposta, Alberto, convoque o Conselho para hoje à tarde, que já tenho a minha decisão tomada”.

O detetive relatou ao delegado sobre sua descoberta no dia anterior. A casa possuía o quarto secreto, munido de elementos de subsistência, e toda a parafernália de monitores, sensores e ventilações. Lá eram transmitidas o que todas as câmeras ocultas da casa captavam. E de lá, Madame Esmeralda pode assistir a todo o desenrolar de seu “sumiço”. Com isso, descobriu a intenção de cada filho e pode revelar o que cada um escondia. Sobre o automóvel dela, ela combinou com o motorista de total confiança que desaparecesse com ele, sem levantar suspeitas. Descobri o quarto secreto por um descuido dela que manteve o som dos monitores alto demais. Prometi que jamais revelarei onde fica esse cômodo.

                   Assim, sem ter saído de casa, pode conhecer as atitudes dos filhos e reconhecer em cada um o que havia de responsabilidade em relação à empresa. 

À tarde, na reunião do Conselho, ela noticiou que permaneceria por mais um ano como presidente, tempo em que ajudaria a preparar o sucessor. Depois, passaria a presidir o Conselho Superior, importante órgão de manutenção da retidão da empresa. E finalizou dizendo que seu filho Julio seria o futuro presidente.

 

material da aula do dia 20 de fevereiro de 2024 - IN MEDIA RES - COMEÇANDO PELO CONFLITO

 





IN MEDIAS RES: In medias res é uma frase latina que significa “no meio das coisas”. Na escrita, usamos esse termo para descrever uma história que começa no meio da ação, sem o preâmbulo de uma introdução. O impacto imediato no público provoca a emoção que o fará seguir adiante. O narrador colocando o leitor no centro da ação, ele emprega uma sensação de urgência tornando a narrativa mais imersiva. É uma estratégia poderosa para cativar o público. Muito diferente das histórias que seguem uma sequência linear de cronologia.

Ilíada de Homero, já começa no meio da Guerra de gregos e troianos. Odisseia, o poema começa 10 anos após a Guerra de Troia, com o protagonista, Odisseu, sendo mantido em cativeiro pela deusa Calipso. O resto da história é contada em flashbacks, que exploram os acontecimentos que levaram à cena de abertura.

 

1. Comece pelo meio. Escolha um momento culminante, conflito, discussão, briga, revelação – qualquer coisa que indique que alguma cadeia de eventos ocorreu neste mundo antes do momento crucial.

2. Injete sua história de fundo. Se você começar sua história no meio, o público eventualmente precisará saber quem são esses personagens e o que está acontecendo. Informações relevantes podem ser fornecidas por meio de flashbacks, fluxos de pensamento, alteração da voz do narrador, ou por meio de diálogo - mas há um equilíbrio que todo escritor deve encontrar ao fornecer informações suficientes ao leitor para que ele entenda a situação atual sem despejar um tesouro de conhecimento sobre ele.

3. Torne isso urgente. A cena que você escolher para iniciar deve ser um momento crucial e de alto risco para os personagens principais de sua história e deve fazer parte integrante do enredo. Provoque o leitor, deixe-o ansioso imaginando como e por que aconteceu, e ansioso também para saber se tudo vai dar certo para os protagonistas.

 

TAREFA 1: Um segredo que gera ganância, desconfiança, e um crime.

TAREFA 2: Uma pessoa está desaparecida, ela foi sequestrada, e isso gera tumulto familiar e empresarial.

LANÇAMENTO DA ANTOLOGIA DESCOBERTAS 2023 - FOTOS





Foi em 16 de dezembro de 2023 
na Biblioteca do Clube Alto dos Pinheiros


Exposição dos 50 títulos produzidos pelos participantes do EscreViver - desdes 2012:

















 O VIOLINO DO CARLOS FECHOU O LANÇAMENTO 
COM CHAVE DE OURO:



MEDO NA HORA I (H já era) - Oswaldo U. Lopes

 




MEDO NA HORA I (H já era)

Oswaldo U. Lopes

 

         Danilo, agora, já era antigo, veterano. Formara-se ali mesmo na FMUSP, seis anos de batente, com dois de internato. Depois, cinco de residência que culminaram em tórax e adjacências. Estava no quarto ano do primeiro emprego: Assistente do Pronto Socorro. Somando tudo, quinze anos de batalhas e desafios, muitos, a grande maioria no Pronto Socorro. PSHC era o lugar e lá ele os enfrentara e ganhara fama.

         Das chamadas emoções básicas, já experimentara todas: felicidade, raiva, tristeza, desgosto, surpresa e a mais apavorante, o medo. Só em pensá-la, lá vinham os calafrios.

         Tristeza, desgosto e raiva, a mais das vezes, vinham juntas: já era tarde, faltou o instrumento adequado, mau atendimento inicial, etc.

         Estava aí perdido em pensamentos, como o caipira, perto da porta de entrada, quando viu passar a criança, entubada, transfusão correndo, curativo no tórax (bala?), pele mais branca que o lençol da maca. Não parou para pensar, experiência vale por isso, correu para lavar as mãos na antessala da cirurgia.

Enquanto lavava as mãos com cuidado e rapidez, surgiu um homem com a expressão mais dolorosa que jamais vira, segurando na mão tremula um revólver de razoável calibre.

— Se ela morrer o senhor vai junto.

         É engraçado o que a gente pensa nessa hora. Não só o que pensa, mas a velocidade com que pensa. Ele chamou de senhor, havia respeito no ar. Podia começar por ali:

— Como é seu nome camarada?

— Firmino.

 Pois é, Firmino. Começou a lembrar do filme de faroeste. O médico de meia-idade, como ele, foi confrontado pelo jovem que dizia:

— “Ela não pode morrer, se morrer eu lhe mato”. O ator James Stewart, se não se enganava, voltava com uma bandeja cheia de instrumentos cirúrgicos, entre os quais se destacava um revólver de grosso calibre:

— “Se ela morrer, disse ele, saberei primeiro. ”

         Quanto tempo passará, nem 10 segundos, lascou com olhar sereno para seu Firmino:

— Meu bom amigo, se ela morrer, serei o primeiro, a saber. O que não falta neste PS é revólver ou pistola. Você pensa no calibre ou marca e ela ou ele vão aparecer. Aliás, estou vendo uma no vão da porta, a qual peço serenamente que se retire. Vou cuidar do que interessa e rápido porque já entendi que você só atira se ela morrer.

         Para saber o quanto de medo passará, seria necessário, como faziam com as compressas na cirurgia, passar uma nas suas costas e pesá-la para ver o quão úmida estava, puro suor adrenalínico. Já atirara com revólver e outras armas, CPOR etc., mas ter que encarar a boca de um enquanto pensa e argumenta não era tão simples assim, aliás, não era simples ponto.

         Peso das palavras, visão do que ia de fato acontecer, como saber, Seu Firmino depositou o revólver aos pés de Danilo e recuou. Este, com gesto firme, fez o pessoal da segurança se afastar e ficar quieto.

         Deu tudo certo, seu conhecimento e destreza venceram o medo que era preciso reconhecer, fora grande, enorme dessa vez. Acreditem ou não, seu Firmino foi para o quarto ficar com a filha sem que ninguém o incomodasse. Danilo não prestou depoimento, muito menos queixa e a arma não foi achada, afinal, ninguém teria coragem de pedir a chave do seu armário para o médico salvador da criança.

 

 

 

SOM E FÚRIA - Oswaldo U. Lopes

 




Por: Oswaldo U Lopes


SOM E FÚRIA

She should have died hereafter:

There would have been a time for such a word.

Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow,

Creeps in this petty pace from day to day

To the last syllable of recorded time:

And all yesterday, have lighted fools

The way to dusty death. Out, out, brief candle.

Life but a walking shadow, a poor player

That struts and frets his hour upon the stage

And then is heard no more. It is a tale

Told by an idiot, full of sound and fury

Signifying nothing                               W. Shakespeare

 

É morta... Não devia ser agora.

Sempre seria tempo para ouvir-se.

Essas palavras. Amanhã, volvendo      

Trás amanhã e trás amanhã de novo.

Vai, a pequenos passos, dia a dia.

Até a última sílaba do tempo

Inscrito. E todos esses nossos ontens

Tem alumiado aos tontos que nós somos

Nosso caminho para o pó da morte.

 Breve candeia, apaga-te. Que a vida

É uma sombra ambulante; um pobre ator

Que gesticula em cena uma hora ou duas,

Depois não se ouve mais; um conto cheio

De bulha e fúria, dito por um louco,

Significando nada.                                    Tradução Manuel Bandeira

 

Mauricio Di Franco era um bom ator. Não sejamos modestos,

grande ator, famoso, ator global. Era figura carimbada na novela das nove, fizera filmes também, sempre com sucesso. Sua marca eram os personagens de época, escravatura, período colonial, impérios, primeiro e segundo, início do século XX e por aí afora.

        Brilhava também nos contemporâneos, fazia um vilão que arrancava ódio dos telespectadores. Andara ainda pelo teatro com bom desempenho, era bom no imaginário diálogo com a plateia, sua voz ia longe. Conseguira, a custa de muito treino e exercício, dizer suas falas de costas para o público, sem que nenhuma palavra fosse perdida. Já representara Ibsen, Brecht, Albee, Pinter, Dias Gomes, Abílio Pereira de Almeida, Pirandello, Beckett, Molière, Racine, Machado de Assis e por aí afora.

        Bem, faltava algo, caro leitor. Todo ator sonha em não morrer sem representar William Shakespeare. Quando jovem, imagina Romeu ou Mercucio, aos trinta, Hamlet, nos quarenta, Othello ou Macbeth, se passar disso, sem emplacar, ainda resta o Rei Lear que vai dos sessenta aos setenta.

Sozinho em seu camarim, a uma hora de começar o espetáculo, Mauricio se olhava no espelho fartamente iluminado e pensava no Macbeth que iria estrear naquela noite com ele no papel título. A peça maldita, a peça escocesa cujo nome os atores e pessoas que trabalhavam no palco não queriam nem pronunciar.

Não se sabe muito da peça. É a mais curta das tragédias de Shakespeare, só aparece no famoso fólio com todas as suas outras obras. Dela não se conhecem publicações separadas, os famosos quartos. Sempre teve má fama, a matança é geral. Dos personagens elencados, só dois ficam vivos ao fim da peça.

Mauricio pensou por um instante na sua cara-metade e no modo como ela recebeu a notícia da peça. A mulher de Mauricio chama-se Monica Andrade Di Franco e é a própria inversão de Lady Macbeth. Médica, obstetra, também consagrada, não tem filhos, o que, nesse ponto e apenas nesse, a assemelha a Lady. Mas a semelhança para por aí. Funciona como uma verdadeira cadeia de arrasto colocada aos pés de Mauricio.

Monica parecia mais uma das bruxas do enredo, embora fosse bonita e elegante. Quando Mauricio anunciou sua intenção de montar a peça escocesa, já foi de pau para cima dele.

— Você quer dizer Macbeth, já está com tanto medo dela que nem fala o nome. Olha, pensa bem, só duas montagens de Shakespeare no Brasil deram certo. Sergio Cardoso com Hamlet e Paulo Autran com Othello o resto deu com os burros n’agua, mal se aguentou um mês em cartaz e não foram poucas. Se você quiser, eu posso até fazer a Lady Macbeth, tenho as mãos cheias de sangue do meu trabalho.

        Mauricio olhou-a com raiva crescente, a filha da puta tinha toda razão, mas bem que podia ajudar, ainda que ao final a vaca fosse pro brejo. Sabia que ela estava absolutamente certa e que o passado shakespeariano no Brasil era ruim de dar medo.

Começava pelas traduções. Os tradutores eram na sua totalidade scholars, acadêmicos ou poetas clássicos e não abriam mão de versos decassilábicos ou alexandrinos. Como era possível coloquiar com a plateia arrotando versos desse tipo. Quando não enfiavam uma porção de Ohs! Tornando o texto absolutamente artificial, traiam, por falso moralismo, a clara intenção do autor. Veja-se o exemplo de Hamlet. O diálogo entre Polônio e Hamlet (A2, C2).

Pol – Do you know me, my lord?

Hamlet - Excellent, excellent well: you are a fishmonger

O teatro elisabetano comportava público estimado em cerca de 800 pessoas. As entradas mais baratas, de um penny, eram lugares em pé ao redor do palco, gente bem popular. O horário de trabalho não estava estabelecido em leis, mas pelas corporações e assim os jovens podiam ocorrer ao teatro durante a tarde. 

Todo mundo sabia que fishmonger era cafetão. Qual a tradução habitual no Brasil: peixeiro, vendedor de peixe, rufião.

Até André Gide na sua badalada tradução de Hamlet saiu-se com: “marchand de poisson”.

Só Geraldo de Carvalho Silva teve a coragem de sacar: dono de bordel. Hamlet quer constranger Polônio porque este cogita que sua filha case com o príncipe, um excelente partido que um dia será rei, com certeza. Daí compara-o ao dono de um bordel, cafetão com todas as letras.

Na Inglaterra e nos países de língua inglesa que sofreram forte colonização britânica, o verso pentâmero iâmbico é quase a maneira de falar natural. Associa-se a isto o aparecimento da Bíblia do Rei James no começo do século XVII. Na tradição protestante, o manuseio da Bíblia já não é privilégio dos padres. Qualquer fiel pode e deve fazê-lo. Isso fez e faz com que os pronomes usados na linguagem shakespeariana sejam entendidos e compreendidos sem muito esforço.

Porque os tradutores brasileiros nunca tentaram, o verso iâmbico é um mistério. Não diga que ele não existe entre nós. Um lindo exemplo de verso iâmbico é de Noel Rosa:

aTÉ amaNHÃ, se DEUS quiser. Se NÃO chover, eu VOLto PRA te VER, oh muLHER.

Daí Mauricio se debruçou sobre o texto e com mais dois da equipe reescreveu, partindo do texto de Manuel Bandeira, o seu próprio Macbeth com o qual pretendia interagir e se comunicar com o público que estava no teatro. Fizera até um puxado no palco para jogá-lo parcialmente dentro da plateia e assim facilitar esse contato. Pouco sobrara de Manuel Bandeira, mas o texto ficara enxuto e muito mais direto. Também pudera, o tão louvado texto de Manuel Bandeira traduzia “It is a tale told by an idiot, full of sound and fury” por “um conto cheio de bulha e fúria, dito por um louco”. Sound por bulha, é de rachar e o que Manuel Bandeira tinha contra Idiot ser Idiota mesmo. Bem, o teste final era hoje, mas todos os ensaios e discussões mostravam que fora na direção certa.

Deveria ter morrido mais tarde.... Amanhã e amanhã, mais amanhã... E os nossos ontens deixam para os tolos a estrada empoeirada da morte... A vida nada mais é do que uma sombra que passa... Um pobre ator que gesticula... Uma desesperada história contada por um idiota... Som e fúria que não significam nada... Um punhal imaginário... Vem que te empunho... É um punhal que vejo com seu cabo pronto para minha mão.

O sucesso fora extraordinário! O elenco foi chamado ao palco por 10 vezes e mais chamariam se tivessem concordado e superado a enorme estafa do dia. Sentiam as pernas até bambear.      Vencera e com a peça maldita, a maldita peça escocesa. Todo o reboliço do sucesso já passara, a coxia estava quase vazia e ele continuava no camarim.

Nisso, a porta se abriu e Joaquim, o porteiro, avisou com voz lúgubre:

— Mauricio, acabam de telefonar: a Monica foi baleada em um assalto quando vinha para cá e morreu no hospital.

Mauricio se olhou no espelho, ainda com a armadura que usara em cena, e o olhar sombrio do assassino impiedoso e murmurou:

Não deveria ter morrido agora.... Deveria ter esperado para ver o meu sucesso.

 

Medo - Adriana Frosoni

 

 



Medo

Adriana Frosoni

 

Num final de tarde, enquanto todo o movimento da casa de Ana fluía normalmente, de repente, acabou a luz. Foi um tal de correr para um lado, bater a canela na mesinha, procurar uma vela, ir para a cozinha e não encontrar o fósforo. Vozes de crianças chamando a mãe porque estavam com medo, e o marido, imóvel na poltrona no meio da sala, perguntando se ela precisava de ajuda.

A energia sempre faltava nessa época do ano naquela região. Já estavam acostumados, era só começar a época de chuva. Ana estava pensando que precisava deixar tudo organizado e à mão para socorrer a todos o mais rápido possível.

Mas desta vez estava diferente, o céu escureceu mais cedo, a tempestade chegou rapidamente e muito pesada. Na verdade, todas as luzes das ruas se apagaram. O vento uivava contra as janelas, e a chuva caía com intensidade, encharcando o jardim.

Quando Ana conseguiu acender a vela, todos da família foram para a frente do janelão da sala. As cortinas abertas permitiam a eles assistir a esse espetáculo da natureza, porém, em pouco tempo já não permitia que vissem nem o outro lado da rua. De repente, um raio, daqueles que iluminam o céu, rasgou a noite escura e o medo se apoderou deles.

Daquele lugar, em frente ao janelão, foi possível ver, por um instante, a silhueta e uma pessoa bem próxima ao flamboyant que havia em frente a casa. Não era possível identificar se o vulto estava na frente ou atrás da árvore. Encostada nela, quem sabe! Mas o perfil era inconfundível. 

— Uma mulher? — Disse Ana. As crianças estremeceram e começaram a choramingar

— Acalmem-se, uma mulher não consegue entrar nessa casa, é bem seguro aqui! Ela deve estar se protegendo da chuva embaixo da árvore.

— Então ela vai morrer no nosso jardim! — Disse o filho mais velho. — O raio vai cair na árvore e vai matá-la eletrocutada! — E o mais novo começou a chorar.

O marido de Ana comentou que ela parecia estar com os braços levantados, os quais eram desproporcionalmente longos e grossos. A menos que ela estivesse segurando um machado, por exemplo. Quando ele terminou de dizer isso, o silêncio se instalou e todos arregalaram os olhos como se isso fosse ajudá-los a enxergar naquele breu. 

O pavor se apoderava de cada um deles, não era apenas o medo do desconhecido, mas sim o medo visceral de algo espreitando nas sombras, esperando pelo momento certo para atacar. A imaginação de cada um corria solta, criando possibilidades no impossível. 

O temporal não melhorou. As crianças quiseram dormir na cama dos pais e todos adormeceram de cansaço, porque os raios e trovões continuaram a maltratar a imaginação deles. Qualquer estalar de galhos reacendia o medo e o desconforto. Os sonhos foram medonhos, o sono, agitado.

Amanheceu um lindo dia de sol e céu azul. O jardim estava verdinho e feliz pela rega da natureza. Não havia sinal de destruição da chuva, pelo menos não no quintal. A energia havia voltado. Ana e o marido foram até a janela da sala, para abrir a cortina e espiar o flamboyant. Ainda de olheira pela noite mal dormida, entreolharam-se e caíram na risada. Mesmo morando lá por 10 anos, nunca haviam percebido que a bendita árvore, dependendo do ângulo que se olhava, tinha mesmo o perfil de uma mulher de braços levantados.

 

As Emoções Humanas: o medo - Yara Mourão

 




As emoções humanas: o medo.

Yara Mourão.

 

Aquele era um dia igual a todos os outros passados ali, em que os sonhos se fundiram às realidades para sempre inesquecíveis.

Francis permanecia muito quieto, contemplando a pista, absorto. Mal podia crer que atrás daquela vidraça seu grande momento o espreitava.

Seus pensamentos eram confusos; músculos, nervos, tudo estava tão rígido como nunca estivera antes.

Mirou o céu. Não havia nem uma nuvem no horizonte. Isso devia ser um bom sinal, pensou.  Sabia que esse era o momento pelo qual esperava desde a mais tenra idade. Ia, enfim, pilotar, sozinho, o fabuloso F-15, o caça de ataque da Força Aérea. Lembrou-se de tantos voos que fizera antes, competindo com a própria coragem, buscando um herói que não se sabia. Entretanto, desta vez era sem a companhia do instrutor de voo, nem mesmo de seu companheiro de treinamento. Era o seu momento mágico!

Lentamente percebeu que um leve tremor se instalara em suas mãos, umedecidas de um suor frio.

Francis fechou os olhos. Não ousara confessar a si que, na verdade, tinha medo de voar.

Os minutos corriam na batida acelerada de sua pulsação. Francis foi mergulhando no silêncio que sua memória trazia à tona, silêncio de murmúrios distantes. Nem se apercebeu da presença do Tenente-Brigadeiro Leonardo, se aproximando para cumprimentá-lo e conferir os horários. Os dois tapinhas nas costas que ele lhe deu quase arderam, e a fala: “Vamos lá, campeão, hoje eu quero ver o seu valor e brilho!”, latejou comum desafio.

Mas ele não queria saber nada de valor e brilho. Só sabia que um frio enorme percorria seu corpo e que sua vontade era correr contra o tempo, estar quatro anos, lá atrás, no dia do ingresso na Academia de Cadetes!

Seus olhos embaçaram, os joelhos fraquejaram.

Não havia retorno. Era chegado o momento. Então, abriu a grande porta de vidro e caminhou para a pista. Tinha de ir, já nem sabia mais por quê. E lá, no meio dos outros cadetes, estava o Tenente-Brigadeiro com um sorriso de mau-agouro.

Francis fez continência e dirigiu-se para o cockpit do avião. Colocou o capacete, limpou o suor do rosto, sentindo-se à beira de um abismo profundo, e disse para si: “Aquele imbecil do Leonardo que pensa que eu tenho medo, vai ver o que é valor e brilho!”

Não hesitou mais. Ligou as turbinas. O ruído ensurdecedor bloqueou-lhe os sentidos. Com os olhos semicerrados, pressionou os comandos de partida e, em segundos, seu F-15 sumiu no horizonte como se fosse um zéfiro de aço!

Que Raiva! - Ledice Pereira

 



Que Raiva!

Ledice Pereira

 

Era o primeiro dia de aula para Fernanda, naquela escola. Com dezesseis para dezessete anos, sentia-se um peixe fora d’água. Os novos colegas quase a despiam com olhares curiosos. Por que seu pai tinha inventado de mudar de bairro bem no último ano do ensino médio? Bem que ele podia ter contratado uma van escolar para ela continuar na escola que amava, onde estudava desde pequena, conhecia todo mundo e estava super enturmada.

Ficara sabendo dias antes. Ele simplesmente dissera:

— Logo você se acostuma, faz novas amizades, vai ver. Tudo vai dar certo.

De nada adiantou chorar, implorar, suplicar.

Se ela pudesse, saia correndo dali pra bem longe e deixaria o pai bem preocupado, procurando por ela.

Será – pensou com seus botões – que ele se preocuparia mesmo? Ele só pensava no trabalho, nas contas, nas despesas. Tiveram que mudar pra diminuir os gastos. Casa menor, bairro mais simples, escola pública.

Que raiva! Tinha vontade de sair gritando aos quatro ventos que não queria ficar ali.

O sino anunciou que estava na hora de se dirigir para a classe. Sabia que estava na turma F. Não tinha a menor ideia de onde ficava. Detestava perguntar. Preferia procurar, errar, mas perguntar, jamais.

O pátio ia ficando vazio, cada um se dirigindo para a sala indicada. Os grupos passavam por ela apressados. Alguns a olhavam, outros davam-lhe encontrões e ninguém perguntava o que ela estava procurando, se precisava de ajuda, sentia-se meio invisível. Isso fazia com que ela sentisse mais e mais raiva. Tinha vontade de chorar, de fugir, de gritar.

A orientadora a encontrou parada no meio do caminho para as salas, em frente a uma escada, olhos marejados. Percebeu sua aflição, abraçou-a, indagando-lhe que sala ela estava procurando. Foi o bastante. A menina caiu num choro sentido, soluçando sem conseguir emitir qualquer som. Estava amedrontada, perdida, desamparada.

Foi encaminhada para a sala dos professores, deram-lhe água, deixaram-na chorar o quanto quisesse.

Mais calma, ela externou toda a raiva que sentia.

Do pai, que não a acompanhara, nem muito menos deixara a mãe acompanhá-la.

 Da mãe, que nunca enfrentara o pai, concordando com tudo que ele decidia. Que jamais teve sensibilidade para enxergar suas dificuldades, como, por exemplo, a de enfrentar mudanças.

Dos dois, por terem-na largado naquela escola nova, enorme, cheia de salas, no meio de gente desconhecida.

Dela mesma, por se sentir frágil, medrosa, desambientada, enfim.

Estava com muuuuiiiiitttta RAIVA!   

Medo, eu? - Ledice Pereira

 



Medo, eu?

Ledice Pereira

 

Quando Leticia chegou com Rodrigo, a feijoada já reunia um pessoal animado, em volta da piscina. Sentiu um arrepio. Era a primeira vez que saía com ele e aquela piscina a aterrorizava.

Tentou disfarçar, permanecendo o mais distante possível do que lhe representava um enorme perigo, mas o rapaz, ao contrário, tentava arrastá-la para perto do grupo.

Após algumas caipirinhas, a jovem sentiu-se um pouco mais à vontade, e os jovens, percebendo que algo a incomodava, procuravam enturmá-la.

Aos poucos, todos começaram a pular na piscina, alguns, demonstravam estar mais alterados pela bebida. Risada vai, risada vem, começou um jogo de empurra pra dentro da malfadada. Letícia gelou. Discretamente afastou-se de todos, indo buscar abrigo na sala onde algumas senhoras e senhores idosos conversavam.

O coração parecia querer sair pela boca, batendo tão descompassado como nunca sentira.

Uma das senhoras, percebendo que algo não estava bem com a moça, chamou o marido, médico, pedindo que ele a avaliasse.

Após exame minucioso, ele diagnosticou, ela estava tendo uma crise de pânico.

Rodrigo foi chamado, só então tendo tido conhecimento do que acometia a namorada.

Levada ao Pronto-Socorro próximo dali. Letícia foi medicada, após amargarem várias horas de espera, após o que, o rapaz levou-a para casa.

Definitivamente, o domingo ensolarado foi bem diferente daquele idealizado pelo jovem apaixonado.

SETENTA ANOS – MEU PRESENTE - Antonia Marchesin Gonçalves

 




SETENTA ANOS – MEU PRESENTE

Antonia Marchesin Gonçalves

 

                        No ano de 2017, foi um ano que me marcou muito, eu faria em agosto 70 anos. Desde nova, meus aniversários às vezes nem bolo tinham, alguns anos foram difíceis para a família. Casada, me prometia de aos trinta fazer um festão, não fiz, posterguei para quarenta, também não, cinquenta nada, sessenta foi um ano difícil, com muitas internações do meu marido, até descobrirem as causas dos problemas de saúde dele.

 

                        O tratamento durou quase um ano, entrando no ano dos meus setenta, que eu faria em agosto e duraria mais três meses. Conversamos eu e ele, não querendo ele mais um ano me frustrar sem uma comemoração tão esperada, ao invés da festa, passar uma semana na Inglaterra, cidade que eu amo. O meu outro sonho era conhecer Bath e para lá fomos. Em Londres, ficamos num hotel muito aconchegante no centro de Londres, podendo assim andar a pé nos vários pontos que queríamos rever.

 

                        No hotel, tivemos excelente atendimento, inclusive por um casal de portugueses que lá trabalhavam, nos mimando, dando dicas de restaurantes, com direito à reserva do melhor na região para o dia do meu aniversário. Por sinal, muito disputado, estava lotado, sentamos numa mesa para dois justamente por ser muito procurado, as mesas eram muito próximas umas das outras e acabamos fazendo amizade com o casal de jovens ao lado, estavam encantados por sermos brasileiros e pelo motivo de nossa viagem.

 

                        Não paravam de falar, descobri o motivo, estavam bêbados depois de vários drinques, consigo imaginar como chegaram apoiados um no outro, até o telefone pessoal nos deram para qualquer coisa que precisássemos, foi pitoresco. No dia seguinte, pegamos um tour para a tão sonhada cidade de Bath, que além das famosas pedras em pé de Stoneig, tem as termas quentes de cura desde o tempo do Império Romano, frequentada até hoje pela elite por suas águas curativas.

 

                        O hotel maravilhoso, uma arquitetura em formato em u, as fontes construídas pelos romanos impressionantes, tudo em funcionamento até hoje. O local, ainda frequentado pela elite londrina para temporadas de tratamento para dores reumáticas, vale conhecer.

 

                        Decisão bem tomada para nós dois e voltamos com mais ânimo para a nova etapa de nossas vidas, até hoje juntos nas alegrias e nas adversidades.