Amarga Revelação - Ises de Almeida Abrahamsohn


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Amarga Revelação
Ises de Almeida Abrahamsohn

        Os pais das minhas colegas da escola vão todos participar do comício das diretas na segunda feira. Na nossa família ninguém vai. Meu pai é major da polícia militar e diz que isso é coisa de baderneiros.  Meu pai diz que com essas molezas que o presidente Figueiredo está dando para os políticos e os sindicatos o país vai ficar na mão dos comunas. Ele quer dizer dos comunistas. Os meus tios também repetem a mesma coisa. Mas muitas outras pessoas que conheço não são comunistas e são a favor das eleições diretas. A minha professora e os irmãos das minhas amigas e as minhas tias, irmãs da minha mãe, querem todas o fim do governo dos generais. A inflação está alta e há muita corrupção e é preciso eleger gente melhor por eleição direta para mudar o país.

        Minha melhor amiga na escola é a Suely e ela diz que eu tenho que pensar com a minha própria cabeça e não devo acreditar no que dizem meu pai e meus tios porque são militares. Os pais da minha amiga detestam os militares. A razão é que a tia Lina, irmã da mãe dela, ficou um ano na prisão e sofreu muito. Quando saiu soube que o marido tinha sido morto. Isto aconteceu há quinze anos e a tia desde então mora com eles e tem depressão. Isso é o que a Suely ouviu da mãe que lhe prometeu que um dia contará tudo o que realmente aconteceu à tia.  Eu disse para minha amiga que meu pai e meus  tios são boas pessoas e não têm nada a ver com essas coisas que aconteceram faz tanto tempo.

        Suely me convidou para almoçar na casa dela e depois estudar para as provas de matemática e português. Nós combinamos de eu falar que meu pai é funcionário do Banco do Brasil, se alguém perguntar, para não criar caso.  Nós já estávamos almoçando na mesa grande da sala quando a tia chegou da escola onde trabalha. A Suely nos apresentou e ela, sentada à minha frente começou a conversar e não tirava os olhos de mim durante todo o almoço. Perguntou o que meus pais faziam, se eu tinha irmãos e eu respondi como combinado  que sou filha única, o que é verdade, e que eu nasci em São Paulo e meu nome, Marina. Ela me disse que eu era muito parecida com uma pessoa que ela conhecia e a mãe da Suely confirmou que a semelhança era muito grande.  Eu fiquei meio sem jeito e brinquei dizendo que esperava que a pessoa de quem estavam falando fosse bonita. Depois subimos para estudar e eu não pensei mais nisso.

        Quando voltei para casa no fim da tarde contei para minha mãe o que se passou no almoço e ela ficou muito agitada. Indagou se a tia da Suely fez muitas perguntas.  Eu respondi que havia mentido que meu pai trabalhava no Banco do Brasil e ela quis saber por que. Então tive que falar que eles detestavam militares e ao  ouvir a história da tia ela ficou muito nervosa, começou a chorar e subiu para o quarto.  Depois a ouvi telefonar para meu pai. Ele veio logo para casa e os dois ficaram um tempão conversando no quarto. Não me falaram nada, mas eu sabia que algo de grave se passava.

         No dia seguinte minha mãe, sem me olhar nos olhos, disse que nós iríamos mudar para Manaus na semana seguinte porque o pai tinha sido transferido. Eu percebi que mentia. Protestei por causa da escola, ainda nem era fim de semestre. Retruquei que não acreditava porque meu pai, na semana anterior, havia dito que com o comício e as passeatas todos os exércitos do país teriam que ficar de prontidão.

        Eu estava desnorteada  e pedi à Suely para conversar com a tia para entender a razão da reação de meus pais. Encontrei-a naquela tarde mesmo.  Ela me recebeu com carinho. Depois me contou que quando foi presa estava grávida e na prisão teve  uma menina. Quando o bebê completou dois meses foi levado pelos guardas e ela nunca conseguiu saber o paradeiro da sua filha. Imaginava que tinha sido entregue a alguma família de militares que registraram a menina como sua.

 ̶   Marina, eu creio que você é minha filha. Mostrou-me fotos:
 ̶  Olhe, este aqui é seu pai antes de ser preso e desaparecer.
        Comecei a chorar. Não sabia se acreditava nela ou não, mas eu era mesmo parecida com o homem da foto.

Podia ser... Tenho os mesmos cabelos castanhos crespos, os olhos meio puxados e um pequeno espaço entre os dentes da frente, não sei o que fazer, e se não for verdade? E meus pais até agora? Roubaram o bebê da Lina. São horríveis sequestradores? Se for verdade não quero mais viver com eles, o que fazer? Não posso deixar que me levem para Manaus.

        A Lina percebeu que eu estava desorientada e sofrendo, e tentou me acalmar. Falou para eu voltar para casa e que a certeza só viria se meus pais confessassem ou se os advogados dela conseguissem provas. Além disso, eu teria que fazer testes genéticos para mostrar que eu não poderia ser filha deles, mas isso seria demorado. Amanhã os meus pais seriam intimados pelos advogados e o juiz iria impedir a minha viagem para Manaus.

        Foi terrível voltar para casa e não falar nada. Olhava para minha mãe e pensava como ela pôde fazer isso! Fiz de conta que estava aborrecida por ter que mudar para Manaus. Chorei no meu quarto à noite e ela veio me consolar, mas eu a afastei!  Não queria nem que ela me tocasse.

        Só dois dias depois chegaram os papéis dos advogados de Lina. Fomos meus pais e eu ao juizado e lá estavam Lina e os advogados. Meus pais confessaram. Foi terrível. Minha mãe chorando explicou que não podia ter filhos e que, quando o avisaram da prisão, meu pai aproveitou e levou o bebê da presa para casa.

Eu não queria mais olhar para eles. A Lina me abraçou e disse que eu podia vir morar com ela, se quisesse. Eu disse ao juiz que, sim! Não podia mais ficar com aqueles que me criaram. Minha mãe de criação chorando me disse que esperava que um dia eu  entendesse e a perdoasse. Não sei. Foi o que respondi. Pedi para pegar em casa minhas roupas e material da escola. Queria me mudar o quanto antes.


        Agora estou há três  meses com minha verdadeira mãe, a Lina. Ela é muito diferente da minha outra mãe. É professora de inglês. Tem ideias modernas e se interessa por cinema e lê muito. Temos que nos acostumar uma à outra. Ela se curou da depressão e também remoçou e passou a usar roupas coloridas.  Moramos as duas em um apartamento em outro bairro e eu mudei de escola. Não sei se voltarei a encontrar meus pais de criação. No momento não quero. Talvez, um dia, apenas a minha mãe.

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