Tempos difíceis
Fernando
Braga
Ele
era um barqueiro, idoso, com quem convivi alguns anos, em uma pequena vila
junto aos Alpes Austríacos. A vila, Hallstatt era majestosa situada à beira da parte
sul de um lago do mesmo nome, aos pés do monte Hoher Dachstein, com um pico que
atinge 3000 metros de altura. A vila sempre foi realmente convidativa, com
ruelas estreitas, ao lado de casas com típico aspecto austríaco-alemão, emolduradas
de plantas e flores nas janelas, com uma via principal em seu centro, ponto de passagem
para o norte da Itália. Dado este aspecto, comum em cidades desta região, o
Tirol, a presença de turistas é considerável.
No inverno a neve toma conta de tudo, o lago congela, ocasião em que aparecem esquiadores e alpinistas. No verão, o lago de águas muito límpidas se torna o local favorito para os esportes aquáticos, competições de natação e barcos à vela. Os vários restaurantes ficam sempre cheios, assim como os pequenos hotéis e quartos de aluguel disponíveis, nas próprias casas dos habitantes. O povo sempre se mostrou muito feliz, alegre, simpático, convidativo, com constante sorriso nos lábios, pois do turismo, depende sua própria sobrevivência.
No inverno a neve toma conta de tudo, o lago congela, ocasião em que aparecem esquiadores e alpinistas. No verão, o lago de águas muito límpidas se torna o local favorito para os esportes aquáticos, competições de natação e barcos à vela. Os vários restaurantes ficam sempre cheios, assim como os pequenos hotéis e quartos de aluguel disponíveis, nas próprias casas dos habitantes. O povo sempre se mostrou muito feliz, alegre, simpático, convidativo, com constante sorriso nos lábios, pois do turismo, depende sua própria sobrevivência.
Hug,
este barqueiro a que me referi, havia adquirido uma barcaça, confortável,
apropriada para 20 passageiros. Fazia passeios de duas horas pelo lago,
passando ao redor da base da famosa montanha e de outras, por outros vilarejos
e, florestas cheias de pássaros, pequenos animais silvestres. Com um pequeno
bar em seu interior, os turistas podiam tomar um chocolate quente e comer a
famosa salsicha, tudo servido por uma bela dama. E ainda, música da região, árias
de óperas e canções internacionais.
Quem
não combinava com toda aquela maravilha era o próprio Hug, velho fechado,
circunspecto, introspectivo, pouco humorado, não comunicativo, praticamente
mudo.
Quando
atrás de emprego, fui pedir para auxiliá-lo em seu trabalho, olhou-me de cima
abaixo, ficou pensativo, perguntou meu nome, quantos idiomas falava e sem que
eu respondesse, me disse com voz firme: É seu! Pode começar hoje! Você está
encarregado também da cobrança e tem que ser auxiliar no bar. OK?
Combinamos
meu salário, uma percentagem do que ele ganhava, que dependeria do número de passageiros
e após retirada da parte da dama do bar.
Desde
o início, com meu gênio alegre, falando inglês, um pouco de francês e de
italiano, consegui me entender bem com os turistas, explicando os passos que
tomávamos na longa viagem de barco, e oferecia os variados drinques, que eu
mesmo preparava. O lucro era bom, e sei que aumentou consideravelmente, após
minha chegada. O que continuava difícil era o relacionamento com Hug, sempre
com a cara acabrunhada. Eu só sabia que era viúvo, sem filhos e vivia só, em um
pequeno quarto, duas quadras da rua principal.
No
começo da primeira década deste século XXI, um dia bonito de verão, final de
tarde, sentei-me ao lado de Hug, mostrando felicidade, entreguei-lhe as férias
do dia.
—
Caro amigo, belo dia tivemos, ganhamos muito bem! Veja quanto dinheiro!
Sem
elevar os olhos, olhando para o chão disse: Nem isso me traz felicidade!
Percebi
que ele estava angustiado e queria conversar. Retruquei: - Por que, Hug? Todos
dependem dele, é a mola que move o universo! Viver, comer, sustentar a família.
Dirigindo
seu olhar em minha direção, colocou a mão direita sobre meu joelho e disse: -
Não leve a mal, mas vou confessar-te o que guardo dentro de mim, desde jovem. Durante a metade da Segunda Grande Guerra, com
apenas dezesseis anos, fui convocado pelo exército alemão, compulsoriamente, a
inscrever-me como soldado. Em 1937, não gosto de lembrar, a Alemanha anexou
nosso país. Morávamos em Innsbruck, uma cidade boa, bonita. Eu tinha 10 anos,
era muito feliz, estudava, tinha começado a aprender violino, toda minha
família se dava muito bem.
Poucos
gostaram desta anexação, o Anchluss, mas aqueles que eram hitleristas adoraram,
inclusive meu pai. Mudamos para aquele país, meu pai e dois irmãos mais velhos
que, logo se alistaram. Em nossa casa, enalteciam o tal do poderio germânico.
Minha mãe, me lembro, não tomava partido, tornando-se muito quieta, chorosa.
Quando
a guerra começou, senti tudo virar de ponta cabeça. Era vitória encima de
vitória, a Alemanha tornou-se o maior país do mundo, melhor exército e acima de
todos, Hitler, o Fuhrer, idolatrado. Meu pai e irmãos não mais cabiam dentro de
si, sentiam-se extremamente poderosos. Se alguém falasse contra, era briga
certa e havia violência todos os dias nas ruas. Meus amigos judeus desapareceram
da praça. Meu pai, galgou postos, principalmente após pertencer à SS e meus
dois irmãos foram para os campos de batalha. Fiquei só com minha mãe, eles
raramente apareciam em casa. Nada nos faltava, mas muita miséria grassava nas
ruas.
Todos
os dias ouvíamos notícias da guerra, a queda de Paris, derrota da França, as
vitórias do General Rommel no norte da África, e assim por diante. Muito
regozijo quando ouvimos que o poderoso exército havia entrado na Rússia
comunista e que, em um mês, Hitler entraria em Moscou vitorioso.
Contudo,
em três anos a sorte havia mudado de direção. Foi quando soldados vieram à
minha casa e impuseram meu alistamento, apesar de não me sentir apto. Eu
detestava a guerra, detestava a Alemanha, detestava matar os outros, detestava
Hitler e seus comparsas, e continuava amando o meu verdadeiro país. Certa
ocasião, meu pai teve uma licença e veio para casa, aproveitei e expus a ele os
meus sentimentos. Simplesmente pegou sua Mauser, enfiou em meu ouvido e como um
louco, disse que se eu repetisse o que havia dito, estouraria meus miolos. Meus
dois irmãos haviam sido designados para Dachau, um famoso campo de concentração
próximo a Munique. Minha mãe comentou que aquilo era bom, pois não estariam na
frente de batalha.
Fui
para um campo de treinamento rápido, deixando minha casa, minha mãe
completamente só. Foi choro para todo lado!
Uma
vez no exército, nosso grupo foi designado para combater no Cáucaso, em
Stalingrado, onde os alemães queriam recuperar posições perdidas. Após o avião
aterrissar, fomos levados a acampamentos improvisados. O mês era julho, o tempo
firme, mas um pouco frio. Eu, conversando, sigilosamente, com alguns
companheiros que lá estavam há mais tempo, notei que a preocupação era uma só,
conseguir sair vivo. Dias após, houve um contra-ataque russo, com artilharia
pesada, ataque aéreo, que nos dizimou. Foi um desespero, um salve-se quem
puder. Nossa resistência foi pequena em relação ao poderio do ataque sofrido. Não
entendia o que podia fazer com um fuzil nas mãos. Sabíamos que pelas ordens
recebidas do comando em Berlin, era resistir até o último homem. Conclusão, teria
que morrer pelo Fuhrer, que eu rejeitava!
Resistíamos
correndo de um lado para outro, mas quando chegou novembro a temperatura baixou
e a neve caiu. Sempre adorei a neve, mas não daquele jeito e com pouco
agasalho. Nos sentíamos abandonados. Pensei muito em meu pai, que eu queria que
ali estivesse, vendo a guerra de perto, naquele lugar, com a única esperança de
sair vivo.
Para
encurtar a história, fomos envolvidos pelos batalhões russos e dei graças a
Deus quando caímos prisioneiros. Os russos nos detestavam, pelas atrocidades
que cometemos, milhões de mortes que causamos. Pelo menos eu sentia ter a
consciência tranquila! Nunca havia matado ninguém! Se pudesse dizer isto a eles
e se acreditassem!
Ficamos
em um campo de concentração russo, sem qualquer notícia do andamento da
procela. Um dia, ouvimos sirene, sinos tocando forte e então tivemos
conhecimento de que a guerra havia terminado com derrota total do nazismo. Após
muito sofrimento, fomos entregues aos aliados da Rússia, para sermos julgados. Eu
saí livre, mas desnorteado, sem saber de minha família, sem dinheiro e sem
destino.
Voltei a Innsbruck, ao local onde era minha casa, mas encontrei-a
abandonada, vazia e nenhum vizinho por perto. Por mais que tenha procurado, nada
obtive. O que sofri antes da guerra, durante e depois, fez de mim um caso
psiquiátrico, como todos podem ver! Após muito trabalho e sacrifício consegui
comprar este barco. Apenas recentemente, graças à sua presença, sinto que
talvez possa melhorar.
Nossa
amizade cresceu, tornou-se familiar quando o convidei para morar conosco, com
minha pequena família, em um cômodo da casa.
Tinha
ficado viúvo, mas sempre que perguntávamos sobre sua esposa, pedia encarecidamente
para mudar de assunto. Mais um mistério desta alma, desde criança atormentada!
Morreu
aos 90 anos com doença consumptiva. E, conforme sua vontade, passei seu barco
para meu nome!
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