O menino que doava sentimentos
Suzana
da Cunha Lima
Era
uma família bem comum: pai, mãe, dois filhos, sendo uma moça com 15 anos e um
menino com oito. Ao pai, bombeiro-hidráulico, autônomo, não faltava trabalho. A
renda familiar era boa, visto que a mãe, professora, complementava com seu salário,
o necessário para fechamento das contas do mês. O casal tinha como objetivo dar
a melhor educação para os filhos e trabalhavam duro para isso.
Assim,
superficialmente, parecia uma família padrão, igual às milhares que compunham a
classe média do país.
Mas
o menino, que chamaremos de André, percebia que algo não estava bom neste
cenário doméstico. A mãe, assoberbada
com o trabalho na escola, os afazeres domésticos e a insubordinação da filha moça,
se irritava facilmente com todos. A moça passava o dia fora e quase toda noite
saía com amigos que ninguém conhecia, em lugares mal afamados, não dava satisfação a ninguém.
O
pai, pouco se via, saia cedinho, e sempre chegava bem tarde em casa, alegando
ter muito serviço, levantando suspeitas na mulher, e aumentando sua raiva.
Aos
poucos, o tecido familiar foi se rompendo. Aos
pais parecia que tinham sacrificado sua mocidade e tempo no trabalho inutilmente,
pois ninguém ali parecia grato ou feliz. E André era frequentemente esquecido,
como se fosse um móvel da casa que não precisava de muita atenção.
Foi
ficando triste e arredio e um dia não voltou para casa depois da escola. Sua ausência só foi percebida à noite, quando
a mãe começou a preparar o jantar e precisava que ele fosse comprar manteiga na
venda. Procurou o menino em tudo quanto era lugar,
telefonou para os amigos e nesse meio tempo a escola telefonou informando que
ele não havia aparecido para as aulas. Onde estaria?
Mandou
chamar o marido, os vizinhos se achegaram, todos genuinamente preocupados com o
paradeiro de André.
- Há
um prazo de 3 dias para configurar que a criança está perdida – informaram na
delegacia - É muito comum menino nesta idade fugir de
casa. Logo ele volta.
Mas
ele não voltava e após quase uma semana se iniciaram as buscas, não apenas pela
policia, mas por todos os vizinhos. Os
pais ficaram surpresos em verificar como André era querido no bairro todo, pelo
pessoal da escola, colegas e professores, motoristas de ônibus, na papelaria e
mercearia, padaria e mercadinho. Todos pareciam
conhecê-lo muito bem, e estavam muito aflitos mesmo, pelo que podia ter
acontecido.
À
medida que o tempo passava, mais aumentava a possibilidade de o terem
sequestrado, violentado ou morto.
E
aos poucos, a família foi conhecendo um André que não conheciam.
—
Ele é muito gentil, dizia consternada a velhinha da Lotérica. – Me ajuda a
atravessar a rua quando eu preciso.
—
Ele sempre me ouve quando estou triste, - contava outro – Não passei de ano e
André foi lá em casa acalmar meus pais.
—
Ele me dava sempre o lanche da escola – soluçava o mendigo da Igreja.
Foram
muitos testemunhos da bondade de sentimentos daquele menino tão simples, tão
mal avaliado pela sua própria família.
Mas
esta história não teve final feliz. André foi encontrado afogado no rio, depois
de um temporal.
Não
havia sido estuprado nem machucado, apenas se jogara na enchente para salvar um
cachorrinho e ambos foram tragados pela força das águas.
Mas
deixou uma lição inesquecível naquela comunidade.
E os
pais perceberam, mesmo tardiamente, que o trabalho e dinheiro, em si mesmos,
não são fatores de felicidade. As pessoas precisam ser reconhecidas, cuidadas e
amadas, muito mais do que ter um diploma na mão com o coração vazio de amor.
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