Notas
Sustenidas
Vera Lambiasi
Era fim de tarde, Alice estudava os
primeiros acordes de Bach.
Sozinha em sua ampla sala, só
alcançava a intervalos regulares o tilintar dos copos sendo lavados na cozinha.
Tinha aulas de piano no
Conservatório pela manhã, e dedicava-se aos estudos após o período no Colégio
de Freiras.
A casa silenciava-se para Alice
praticar seu instrumento.
Completamente concentrada nas
lições, deixou de ouvir a pia de louças de Maria.
Seus dedos deslizavam pelo teclado
com o corpo curvado como reverência.
Olhos quase cerrados.
O estrondo chacoalhou o chão de
tábuas enceradas.
“ ... Ahhh! ... a Maria derrubou a
máquina de carne de novo ...”
E veio outro violento som, desta vez
rompendo seu imaculado salão de música.
A cauda do piano bateu forte,
interrompendo de vez sua atenção.
“ ... mas o que está acontecendo?
... um trator parece entrar aqui ...”
A figura assustadora de um grande
homem postou-se à sua frente. Nas mãos, um porrete que destruía o que lhe apetecera.
Voaram jarros de flores e candelabros.
Maria corria atrás dele, tentando
detê-lo.
O louco gritava por joias e dólares.
Maria o acalmava.
—
Dona
Alicinha do Céu! Me desculpe. Este é meu irmão que fugiu do hospício.
Alice reergueu a tampa do piano,
aprumou-se no banco, e voltou a tocar.
Ao ouvir Mozart, o monstro chorou, e
aninhou-se no colo da irmã, adormecendo.
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