A MALDIÇÃO DOS BRAGANÇA - Oswaldo U. Lopes



A MALDIÇÃO DOS BRAGANÇA
Oswaldo U. Lopes

        Devíamos dar graças a Deus de nossa história imperial. Tivemos só dois imperadores de modo que a gurizada não se esfalfa de decorar nome de reis e princesas.

        Para os pequenos portugueses (eles lá os chamam de putos, sem nenhuma conotação desmerecedora, latim legitimo e português castiço), a coisa é triste. Ela começa nos anos 1200 e vai longe com várias casas reinantes, interferências espanholas e por ai caminha a história dos coirmãos.

        Quem dentre nós tem ideia de quem tenha sido D. Sebastião, O Desejado, e olha que ele aparece na historiografia brasileira e não tão marginalmente assim. Tendo desaparecido na batalha de Alcácer Quibir em 1578, na África, levou com ele a dinastia de Aviz e a independência de Portugal. Dai nasceu o mito do desejado ou do Sebastianismo que se fez presente no Brasil, na guerra de Canudos. Entre outras coisas o movimento de Antônio Conselheiro acreditava no retorno de Dom Sebastião para restaurar a monarquia.

        Dessa enorme confusão da qual escaparam nossas crianças de ter de estudá-la, resultou a anexação de Portugal à Espanha, sendo por isso o Rei Felipe II desta ultima, conhecido como Felipe I de Portugal o que daria aos reis de Portugal a terceira dinastia. Daria, leste bem, porque se você se defrontar com um português mais estudado e bravo (eu sei, bravos todos são, mas há os que me valha Deus, são da pá virada) e mencionar o rei Felipe I de Portugal, vai ouvi-lo falar com voz forte, raivosa e solene que Portugal nunca teve um rei desse nome.

        O entrevero custou a se resolver e quem o fez foi o Duque de Bragança que passou à história como D. João IV, O restaurador, já que foi ele quem restaurou a independência de Portugal e deu origem a quarta dinastia, a dos Bragança que por sinal foi a ultima.

        Parece que foi um excelente rei, mas tinha lá seus momentos de mau humor, conta a lenda que numa saída de missa, importunado por um frade franciscano que pedia esmolas, deu-lhe uns pontapés, não foi boa ideia. O tal frade rogou então uma maldição pela qual nenhum primogênito dos Bragança chegaria ao trono. Dito e feito.

        Só para lembrar os mais chegados a nossa história, D. João VI não era primogênito, nem seu filho Pedro I nem o filho deste Pedro II. Todos tiveram irmãos mais velhos que morreram na infância ou o que é pior, já mais velhos. Como vemos hoje na casa Real Inglesa, prepara-se melhor o herdeiro do trono, sendo seu irmão mais chegado às aventuras. D. Pedro I de certa maneira, embora tivesse boa educação, não foi preparado para herdar a coroa, embora ainda fosse menino quando seu irmão mais velho morreu, a tristeza desse fato e a sombra da maldição corroboraram para que ele tivesse uma educação mais solta, por assim dizer.

        Seu irmão o herdeiro presuntivo morreu aos seis anos o que o tornou de imediato herdeiro da coroa. Ele, alias, foi não só imperador do Brasil, como rei de Portugal. Lá é conhecido como D. Pedro IV. A morte do irmão fez certa diferença. Gerou certa tolerância para com estroinices do jovem príncipe.  Este país tropical que tão bem conhecemos também teve lá sua importância nos modos um pouco libertinos do jovem príncipe.

        Se você não acredita nessa maldição, D. João VI a D. Carlota Joaquina acreditavam e faziam visitas periódicas aos mosteiros franciscanos de Lisboa e Rio de Janeiro. Não é por outra razão que todos os primogênitos que morreram no período monárquico brasileiro estão enterrados no Convento de Santo Antônio de frades franciscanos.

        Você vai argumentar que houve exceções, de fato houve, a mais conhecida e a de D. Carlos I primogênito do rei D.Luis I, escapou da maldição, tornou-se rei, mas foi assassinado juntamente com seu filho mais velho D. Luís Felipe em 1908 o que pôs fim a monarquia em Portugal. Escapou na data errada.

        Alguns dizem que a maldição continua e fazem as contas levando em consideração os que renunciaram ao título os que ficaram loucos e por ai afora. Moral da história não se deve tratar aos chutes qualquer franciscano que encontramos ao sair da igreja.

        

EM BUSCA DI GRANDE CERVO - Sérgio Dalla Vecchia



EM BUSCA DO GRANDE CERVO
Sérgio Dalla Vecchia

Era o ano de 1370 e o Rei Carlos IV do Império Romano-Germânico, da Itália, Boêmia, Germânia e conde de Luxemburgo, caçava nos arredores da cidade de Praga na Boêmia em busca de um grande cervo.

A caçada era realizada a cavalo e com um número grande de cães adestrados especialmente para esse fim. Quando o Rei avistou de longe um grande cervo, os cães logo partiram em seu encalço.

Carlos IV arrancou a galope com seus súditos seguindo os agitados cachorros. Obstáculos para se transpor eram dos mais variados; muros, cercas, riachos e vegetação densa e os tombos eram constantes.

O frenesi dos cães estava exagerado e para o caçador era um ótimo sinal de que a caça fora imobilizada pela matilha.

Foi o que ocorreu. O rei chegou logo em seguida com a lança em punho, pronto para o desfecho, quando deparou com uma cena desconhecida para ele. O cervo estava atolado em um brejo que exalava fumaça e tinha um odor fétido. A temperatura da agua era de quase oitenta graus Celsius e a matilha mantinha-se na borda latindo. O único cão que teve a coragem de entrar fora Rex, o cão alfa a quem o Rei tinha um grande amor e admiração, pelas tantas caçadas que haviam realizados juntos. O cervo morreu ali mesmo por exaustão, pela alta temperatura e inalação de gases.

O rei desesperado conseguiu a muito custo retirar o seu cão do atoleiro. Quando o pôs no colo, sentiu seu corpo inerte, rijo e com a expressão típica de um valente; olhos abertos e boca mostrando os afiados dentes.

Triste e desapontado retornou a Praga, onde providenciou para que Rex recebesse as honras de herói.

Após alguns dias, notou-se que a expressão de Rex era de um cão vivo, o que chamou a atenção do rei, que emocionado, ordenou que o sepultassem na Catedral de São Vito, localizada na praça central de Praga em uma redoma de vidro.

O tempo passou e o local do acidente transformou-se em uma estação hidrotermal com o nome de Karlovy Vary (Carlos IV), onde ao longo do rio Teplá ergueram-se palacetes e hotéis que hospedaram a alta aristocracia da época. Diziam até que lá se hospedaram, Goethe, Bethoven, Paganini e tantas outras personalidades. Também deram o nome de gêiser Vridlo ao manancial riquíssimo em sais minerais.


Infelizmente, o rei Carlos IV faleceu em 1378 com 62 anos e fez questão de ser sepultado também na Catedral de São Vito ao lado do seu inseparável Rex, que lá permanece intacto.

MOMENTO MÁGICO - Silvia Helena de Ávila Ballarati


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MOMENTO MÁGICO
Silvia Helena de Ávila Ballarati

Tem uma coisa que só acontece quando o papai fica três ou quatro dias na fazenda:  a barba dele cresce.  Pinica meu rosto quando ele me beija e abraça, dói um pouco, mas eu não ligo.

Quando ele chega, a camionete vem carregada de mexerica, abacate, laranja e banana, não se compram essas frutas em casa.  Ah! e tira leite todas as manhãs, então ninguém compra leite também.

Ele estaciona na garagem, sai do carro e abraça os seis filhos. Mas não tem jeito,  nessa hora ele é nosso, não deixamos o papai fazer mais nada, ele senta no alpendre e a gente fica ao redor dele escutando as últimas novidades da fazenda.

Depois ele cumprimenta a mamãe, vai tranquilamente descarregar o carro enquanto ela aproveita pra passar um café fresquinho.  Eles se sentam na mesa da cozinha para conversar, tomar o café e descansar um pouco.

Nós voltamos a brincar, mas eu já não brinco direito mais, fico vigiando a hora em que o papai vai tomar banho porque eu sei que antes do banho ele sempre faz a barba.  Fico espiando do quarto, escondida, ele na pia do banheiro.  Ele tira a camisa, molha o rosto e começa a ensaboar a pele com aquele pincel grosso molhado na espuma de barbear. Faz mesmo a  maior espuma.

Ele não me vê, tem horas que  acho que finge que não me vê, nunca sei, o papai é muito distraído.  Só que eu fico aflita de ver que algumas gotinhas d'água começam a pingar em sua barriga.  Vão pingando e ele não percebe, aí eu apareço para enxugar, eu tenho que ajudar, senão o papai vai ficar todo molhado.  Nessa hora, ele sempre leva um susto ao me ver e fala:


__  Ah! Você estava aí né, sua danadinha, me espiando!  E pega o pincel e esfrega a ponta do meu nariz com espuma, dando aquela bronca de brincadeira.  Nós dois caímos na risada, ele me abraça e   me suja mais um pouco de espuma. Tudo bem, vale a pena, eu adoro esse momento.

TIROS FACADAS E SIMILARES - Oswaldo U. Lopes



TIROS FACADAS E SIMILARES
QUASE DEUSES? NÃO, HUMANOS, MUITO HUMANOS.
Oswaldo U. Lopes

         As lembranças me vieram à mente ao ver a foto nos jornais. Dói e arrepia só de olhar. O pobre toureiro mexicano encarou uma cirurgia complicada de reconstrução do reto que para seu sucesso requer ainda uma colostomia. É preciso desviar as fezes das suturas feitas, a boa prática recomenda para tanto uma colostomia (abertura do cólon – segmento do intestino também chamado de intestino grosso – a montante). Tenho viva memória das encrencas que resultaram quando esse procedimento cautelar não é realizado.

        As cirurgias que envolvem os intestinos são comuns no que chamamos de laparotomia exploradora. Láparos em grego refere-se ao flanco e tomia a corte, laparotomia seria então um corte no flanco. Todo médico sabe, no entanto que por laparotomia entende-se a abertura cirúrgica da cavidade abdominal. A tentativa dos puristas de introduzir o termo celiotomia, onde celio do grego seria abdômen e, portanto corte no abdômen, não vingou. No mundo médico o termo é laparotomia e estamos conversados.

        No Pronto Socorro tiro no abdômen ou facada penetrante é igual à cirurgia. Há até um instrumento chamado tentacânula que foi desenhado para cortar o freio da língua, mas que, por ter uma ponta delicada, é muito usado para ver se uma facada penetrou ou não em direção as vísceras. Lembro-me de um filme em que o mocinho esta ensinando um garoto como atirar nos xerifes. Os xerifes são em geral gordos e é mais fácil atingi-los na barriga do que na cabeça e, ensinava ele, mata do mesmo jeito. No século XIX era a mais pura verdade.

        Tenho boas lembranças de laparotomias, uma delas inesquecível. Era aniversário do Dr. Cláudio Oscar Bélio, um dos mais conceituados e competentes cirurgiões assistentes do Pronto-Socorro. Tinha por ele muito respeito e admiração, tanto que o convidei para ser meu padrinho de casamento.

        Estávamos de plantão no Pronto Socorro de Cirurgia, na condição de residentes de segundo ano, portanto donos da bola eu e meu compadre Dr. José Gonzalez, hoje um conhecido e respeitado cirurgião vascular. Não me lembro porque, mas naquela noite estávamos sem residente de primeiro ano e o faz tudo na cirurgia era o Doutorando Jacyr Pasternak, hoje um infectologista de primeira linha.

        Como a coisa estava surpreendentemente calma, resolvemos dar um pulo na casa do Dr. Bélio para comemorar o aniversário dele. Ele morava perto e não pretendíamos demorar, naquela época não havia celular, mas o Bélio tinha um telefone fixo.

        Comemoramos de fato e acho que eu comemorei como se não tivesse mais o que fazer, mas ia ter e, tive. Quando nos aproximamos da porta do PS, Jacyr nos aguardava, do lado de fora, ligeiramente ansioso, mas não afobado. Dera entrada, um rapaz que tomara, presumimos que por boa conduta, um tiro no abdômen. Isso era igual à laparotomia sem discussão. Jacyr já tomara todas as providências. Decidimos que o José ia operar, não me lembro bem porque, mas é provável que o estado etílico dele fosse bem melhor do que o meu.

        De longa data eu sei que o álcool me dá, de cara muito sono. Isso em nada comprometeria minha atividade como auxiliar. O segredo da função do auxiliar é não se mexer e isso é uma coisa que você não faz quando esta com sono. As pessoas ficariam muito surpresas se soubessem as variadas posições em que jovens cansados conseguem dormir num Pronto Socorro. Encostados numa parede, segurando um foco de iluminação, apoiados numa maca etc.

        Quando José precisava que eu me mexesse ou segurasse os afastadores em outra posição ele simplesmente me cutucava na barriga com o bisturi e eu mudava de posição A cirurgia era fácil a bala de pequeno calibre causara dois furos no intestino delgado que não exigiram muito trabalho. Ai, porém, entrou o diabo que mora nos detalhes. Na hora de sair a bala resolveu caminhar na direção do sacro que é o osso do fim da coluna óssea que nos sustenta.

        A aorta é a grande artéria que leva o sangue para todas as partes do corpo. Lá pelas alturas da coluna lombar ela se divide em cinco ramos que são muito bem individualizados nos animais. Duas ilíacas externas, direita e esquerda, duas ilíacas internas e uma artéria final que é a artéria sacra que nos animais leva sangue para o rabo.

        Quando a evolução decidiu tirar da espécie humana o rabo esqueceu de remover a artéria sacra que seria o certo já que não há mais o apêndice que alguns animais usam para exprimir sentimentos ou até para se agarrar em arvores como nossos primos os macacos. Ela existe nos humanos e embora pequena, acreditem sangra um bocado. Foi um duro danado. Ela corre contra um osso, não da margem para ser pinçada e compete ao auxiliar espremê-la enquanto o cirurgião tenta dar um jeito. O José conseguiu, apesar do seu sonado compadre (esqueci que aquilo parecia uma família, sou padrinho de um dos filhos do José).

        Como é que acaba essa história? Final feliz! Ao terceiro dia o doente estava apto a ter alta e passava muito bem obrigado.

        O outro caso foi mais grave. Um tiro no abdômen que entrara na altura do fígado e, o doente estava em choque por uma perda quase incontrolável de sangue. Caso para assistente operar e lá foi o Dr. William Saad Hossne, também meu padrinho de casamento. Já expliquei que era tudo uma mistura de padrinhos, compadres e afins. Um filho do José acabou casando com uma filha do Saad. Bem voltemos ao sangrante. O tiro dilacerara a veia cava inferior no momento em que ela entra pelo fígado adentro. Eu era o auxiliar e por uma dessas felicidades, além de sóbrio, consegui com o dedo bloquear o sangramento lá nas profundezas do abdômen. Com muita habilidade o Saad conseguiu a duras penas dar os pontos necessários para fechar o ferimento da veia sem obstruí-la.

        Maravilha, mais uma cirurgia fantástica nas precárias condições do Pronto-Socorro. Ai o auxiliar, eu, o Oswaldo vai tirar o dedo e descobre horrorizado que uma parte mínima da luva que cobria o dedo fora suturada junto da veia. Desfazer a sutura? Nem pensar. Cortou-se o pequeno pedaço da luva preso na sutura eu tirei a mão calcei outra luva e prosseguimos. O doente teve alta, tranquilo, no sétimo dia. Segui-o durante anos no ambulatório, nunca manifestou nenhum problema por ter no seu abdômen um pedacinho da minha luva.

        Não dizem que Deus protege as crianças, os bêbados e os inconsequentes. Vai ver que caibo com folga nas três categorias.

        Bem, nem tudo são flores num Pronto-Socorro. Houve o caso trágico daquele perigoso bandido que entrou em confronto com a policia e o policial, bom caráter, resolveu atirar, para não matar, atingindo a nádega direita do pobre infeliz. Estraçalhou o ceco, parte inicial do intestino grosso onde está localizado o famoso apêndice, das também famosas apendicites. Por falar nelas nunca se provou que caroço de uva pudesse causa-las.

        Todos sabemos que ingerimos muito líquido e mesmo alimentos sob forma pastosa o que poucos sabem é que no processo de digestão, quando o conteúdo intestinal passa do íleo (parte final do intestino delgado) para o ceco (parte inicial do intestino grosso) começa um processo de secagem do volume o que vai dar origem as fezes mais sólidas.

        No caso do notório meliante foi necessário fazer uma ileostomia (lembremos que tomia é corte) de modo que o conteúdo intestinal era desviado para a pele antes de passar pelo cólon. O resultado é uma quantidade grande de líquido saindo para uma bolsa precária que se coloca na pele onde esta o orifício. Resulta em irritação grande da derma e numa dificuldade de manter o equilíbrio hídrico do doente.

        O nosso, sofreu muito e veio a falecer de complicações renais. Posso assegurar que foi tratado todo o tempo com carinho e cuidado. É algo que me envaidece e a classe médica m geral, nunca nos arvoramos de juízes, caberá a outros julgá-los a nos cabe trata-los. Claro havia piadas, opiniões sobre o que estava acontecendo no nosso país, mas isso nunca e repito, nunca interferiu no tratamento.

        Como está escrito lá no titulo, humanos somos. Se você entrava no centro cirúrgico do Pronto-Socorro para dar uma espiada na cirurgia de um notório bandido era saudado de cara pelo cirurgião:

─ Seja bem vindo, mas não vá dar uma de distraído e pisar no tubo de oxigênio, para não cair em tentação chega um pouquinho para lá.

        Como enfatizei não há registro de pisada em oxigênio nem de desvio de conduta no tratamento desses infelizes que eram e acho que continuam sendo seres humanos como nós.

        O outro caso que acompanhei, mas não tive participação na cirurgia foi de um rapaz, coitado,  que começara a trabalhar numa fábrica de compressores e o trote com os novatos era enfiar uma mangueira no reto do infeliz e dar uma descarga de ar comprimido. A brincadeira saiu mal e perfurou o reto.

        O  rapaz estava muito envergonhado e mesmo depois de operado relutava muito em contar como ocorrera o acidente. Graças a Deus deu tudo certo. Como no caso do toureiro foi necessária uma colostomia o que atrapalhou a vida dele por dois meses.


        Eu confiei que aquela seria a ultima vez que o maldito trote fora feito. Com a intervenção policial acho que tomaram um bom susto e jeito. Por que será que nossa espécie gosta de certo grau de violência e às vezes se deleita e mesmo se diverte com ela? Nesse ponto não me orgulho nem aprecio fazer parte dela, mas também ainda não descobri como é que se sai da própria. Não leitor amigo a morte não resolve, você morre, mas ainda pertence a espécie.

Umbrella Basilical - Maria Verônica Azevedo


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Umbrella Basilical
Maria Verônica Azevedo

        Quando eu era criança participei de uma viagem a Aparecida do Norte para conhecer a basílica de Nossa Senhora Aparecida, com um grupo da escola. Naquela época, ainda não existia o enorme santuário que hoje se projeta na paisagem do Vale do Paraíba e dá para se ver bem antes de chegar à cidade de Aparecida do Norte.

        Fomos de ônibus fretado para uma chamada peregrinação que duraria o dia todo. Chegando a Aparecida do Norte, o ônibus foi estacionado para que todos descessem e continuamos caminhando em direção ao morro onde estava a antiga Basílica. Depois de fazermos um pequeno lanche na praça, entramos na igreja. A guia falava o tempo todo mostrando os detalhes arquitetônicos da nave. Olhando para o teto, eu acompanhava com o olhar todas as explicações. Estava muito interessada no que via. 

        Num canto preso ao teto, reparei num objeto de tecido vermelho e amarelo forte com franjas. Parecia um guarda-chuva semiaberto. Logo perguntei:

        O que é aquele guarda-chuva ali no teto?

        A guia turística então explicou:

        - Ele ficou preso ali por um milagre da santa. Foi numa quarta-feira de cinzas. Uma passista de carnaval fantasiada de dançarina de frevo entrou na igreja dançando e dando muita risada. Por causa da falta de respeito pela casa sagrada, a sombrinha escapou-lhe das mãos e subiu para o teto ficando lá presa desde então, como um milagre.

        Fiquei vivamente impressionada pelo relato olhando para o teto por um longo tempo. Nunca mais me esqueci desse fato.

        Recentemente, estudando sobre a arte nas Igrejas antigas do Brasil, descobri que o objeto parecido com um guarda-chuva de duas cores, amarelo ouro e vermelho, é na verdade um símbolo papal que está em todas as basílicas do mundo, sendo mesmo um distintivo do reconhecimento da basílica pelo Papa: Umbrella Basilical.

        A Umbrella Episcopal, em amarelo e vermelho, tem as cores dos antigos imperadores do oriente, tem a função de um baldaquino, simbolizando a proteção e dignidade.

O SANTO CASAMENTEIRO - Oswaldo U. Lopes


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O SANTO CASAMENTEIRO
Oswaldo U. Lopes

         A fazenda ficava em Jaú, casa antiga, terreiro imenso, ainda se plantava e colhia café. Gostava de andar por ali. Não era fazendeiro, nem de longe, a terra era dos sogros e vinha de muito na família da mulher.

        Era médico e dizia que de tanto viver na cidade, tinha diesel nas veias. Naquela vez notou algo diferente num dos cantos do pátio, ou pelo menos nunca tinha reparado naquele amontoado de tijolos. Começou a afastá-los e deparou com uma imagem de 20 a 25 cm de altura, muito suja de terra, mas que parecia bem feita. Como era santeiro, segurou a peça com muito cuidado e carinho, era barroca sem dúvida nenhuma.

        Foi para a cozinha lava-la e nem tinha escorrido três águas quando ouviu, atrás de si a voz inconfundível de D. Benê a cozinheira que já tinha seus 90 anos ou mais como indicavam os cabelos brancos na carapinha. Como é mesmo o dito popular: “Negro quando pinta três vezes trinta”.

Uai, que beleza,  encontraram o Santo Antônio Casamenteiro!

        Sorriu para ela e conclui a limpeza. A imagem era de muito boa qualidade e mostrava um santo de hábito franciscano que tinha no braço esquerdo um livro com um pequeno gancho vazio, faltava a mão direita e a cor da imagem, agora bem limpa era escura lembrando caldo de feijão.

─ Pois é Seu doutor, ele existe nessa casa antes até de eu nascer e olha que eu nasci faz tempo. Ela deu risada, brincando com a própria idade.

Tudo quanto era moça solteira usava ele para fazer promessa de casar. Tiravam o menino Jesus que ficava em cima do livro e só devolviam quando arranjavam noivo.

A mão direita também era arrancada com a mesma intenção. Pegou essa cor de tanto ser cozinhado no feijão. Se olhar bem vai ver que o cocuruto e meio achatado, pois botavam ele de cabeça para baixo até o marido aparecer.


Às vezes o santo falhava e na confusão acabaram sumindo com o menino e com a mão. Hoje com a tal de internet o santo perdeu prestigio.


OBJETO MISTERIOSO - Sérgio Dalla Vecchia

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OBJETO MISTERIOSO
Sérgio Dalla Vecchia

Henrique era um topógrafo que fora contratado para fazer um levantamento planialtimétrico em uma área pantanosa.

O local era sinistro. A paisagem era típica dos pântanos, árvores retorcidas, sem brilho e apinhadas de redes de parasitas.

Nela havia uma casa abandonada com a aparência de um passado inglório.

Henrique chegou com sua equipe de dois auxiliares nesse lugar e logo posicionou os aparelhos topográficos e iniciou as medições.

Quando um dos auxiliares foi cravar uma estaca demarcativa, percebeu que ela não penetrava. Parecia haver um objeto duro enterrado.

Henrique com uma pá, logo desenterrou um objeto metálico de forma circular.     — Que será isso? - Pensou ele.

A imagem que lhe veio à mente foi a de uma mandala.

Curioso e aflito ele lavou a peça metálica até que ela mostrasse o seu conteúdo. Assim uma das faces mostrou-se preenchida por vários círculos secantes, bem como quatro setas nos pontos cardeais apontando para o centro, onde havia uma pedra que parecia ser um rubi.

Enquanto examinava a mandala, percebeu que um dos auxiliares começou a passar mal e em seguida também o outro.

Agora mais preocupado, procurou analisar com mais acuidade os desenhos.

Reparou que na face frontal eles se apresentavam nítidos, mas a outra face mostrava- se obscura, continha sinais sem harmonia e em total desordem.

Nesse momento, Henrique também começou a sentir-se mal. Assustado, juntou-se aos seus auxiliares e saíram em disparada, abandonando a mandala e os aparelhos topográficos.

Já no Pronto Socorro, enquanto eram medicados relataram o ocorrido. Nisso um enfermeiro escutou a história e logo foi dizendo:

—Vocês acharam a mandala?

—Há anos que a família desta casa está a sua procura.

—Os familiares diziam que a mandala possuía poderes mágicos, que os protegiam e abriam as portas da prosperidade.

Entretanto, a condição para o sucesso era de que a mandala ficasse pendurada na mais iluminada parede da casa e, caso contrário o resultado seria inverso.

Foi o que ocorreu com a família que ali habitara. A mandala fora retirada da parede por um desconhecido e nunca chegou a ser encontrada.

Henrique logo entendeu e no dia seguinte voltou ao local em busca dos aparelhos que havia abandonado. Pegou a mandala, levou-a para dentro da casa, onde em uma parede clara a pendurou. E como um milagre o rubi começou a reluzir.


Assim a energia positiva voltara a prevalecer e a equipe conseguiu finalizar o trabalho em paz. O desencanto havia se quebrado!

Por que será? - Maria Verônica Azevedo


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Por que será?
Maria Verônica Azevedo

            Depois de dez anos ou mais, ela voltou a Passos, sua terra natal, acompanhando seu pai. Eles iam ver como estava a velha casa da família, agora vazia com a morte da  avó quase centenária.

            Entraram os dois na sala escura com cheiro forte indefinido parecendo uma mistura de perfumes antigos. Logo abriram as grandes janelas que descortinavam a vista do vale. Dava para ver o quintal com  as árvores frutíferas e a capelinha de Nossa Senhora sob a sombra do abacateiro.

            Enquanto seu pai circulava pelos cômodos, ela saiu pela porta lateral descendo até o quintal. Aproximou-se da capelinha tão antiga e bastante empoeirada. Pensou que poderia limpar a imagem de madeira da santa. Com esta intenção, retirou-a do pequeno altar. Queria levá-la para casa.

            Ao levantar a imagem, percebeu que estava sobre uma delicada arca de madeira ornada com um detalhe entalhado que lhe chamou a atenção.

            Descansou a imagem na grama e pegou a caixinha. Com alguma dificuldade conseguiu abri-la. Para sua surpresa, encontrou um pequeno leque que com certeza era chinês. As varetas de marfim eram trabalhadas com delicados recortes que se assemelhavam a rendas. Unindo-as, uma faixa de seda pintada em cores claras representava uma cena campestre.

            Ela se perguntava por que tal objeto estaria aos pés da santa. Quem o havia colocado ali?

            Entrou na casa e mostrou o leque para seu pai.

            - Eu nunca vi este leque. Não me lembro de minha mãe com ele. Ela costumava ter um leque sempre à mão nos dias de muito calor, mas não este leque tão delicado. Acredito que possa ter sido dela, mas não faço ideia de porque estava guardado ali.

            - Com certeza era um objeto com um significado especial, meu pai. Posso ficar com ele?

            - É evidente que sim.
           
            Ela levou o leque e guardou-o por muito tempo. Depois de vários anos pensou que poderia transformar o leque em pequenas lembranças do mistério de sua avó para as bisnetas.

            Com cuidado, destacou as varetas de marfim e mandou fazer pingentes com formato de medalhões retangulares que foi presenteando para suas filhas e noras. Eram joias bem bonitas e originais.


            Mas nunca pode explicar a verdadeira origem do leque chinês. Só resta a imaginação para lhe dar sentido.

PALAVRAS ENVOLVENTES - Silvia Helena de Ávila Ballarati


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PALAVRAS ENVOLVENTES
Silvia Helena de Ávila Ballarati

Ela encontrou a economia italiana na pior fase de sua história recente.  Sabina Langhi voltou ao país, com ideias e propostas inovadoras.

Desde os tempos da universidade em Roma, destacava-se como aluna brilhante.  Muito aplicada, seguidora fiel das normas da escola, se sobressaía nas provas e seus trabalhos extracurriculares eram verdadeiros tesouros para os colegas. 

Destacava-se principalmente no comportamento, dava-se bem com professores e diretores e era a ponte entre eles e seus colegas. Tinha consciência  do domínio que exercia sobre eles, pois era super bem  articulada e sabia fazer uso das palavras no momento certo.  Foi eleita oradora da turma de formatura e seu discurso mostrou a todos os formandos as inúmeras janelas que se abriam no mercado de trabalho.  Falou com muita propriedade e tanto entusiasmo que levou a plateia a um sentimento crescente de que fariam um país melhor, todos em breve estariam trabalhando, constituindo suas  famílias, enriquecendo, um verdadeiro delírio ufanista.

Seu primeiro emprego foi na área administrativa de um banco e por acaso resolveram mandá-la para trabalhar numa filial no leste europeu.  Foi quando viveu muito de perto as questões operárias e  teve  um contato nevrálgico com o comunismo. Deixou-se contaminar pela política e passou a defensora ferrenha dessas  novas ideias.  Sabina continuava muito bem articulada, o que mudara fora seu discurso. Do banco foi à televisão, aos jornais, às ruas.  Envolveu-se completamente com o partido comunista tornando-se membro atuante, seu horizonte linear não existia mais, a carreira profissional fora deixada de lado.

 Quando voltou à Itália, veio com a língua afiada para criticar o capitalismo.  Seus antigos colegas não a reconheciam naquela armadura  pseudo-igualitária.  Suas ideias  não encontravam eco nos jovens da velha universidade, viam como leviandade,  como modismo passageiro de sua parte.

Mas, Sabina continuava a mesma pessoa envolvente,  seus pensamentos tocavam fundo a alma da juventude pulsante de Roma e pouco a pouco ela foi se revelando uma ativista política importante  e se infiltrando nas fendas abertas da Europa decadente.  Para ela foi este o início definitivo na vida política italiana,  uma experiência transformadora.

Estrada aterrorizante... - Ises de Almeida Abrahamsohn

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Estrada aterrorizante...
Ises de Almeida Abrahamsohn

Depois de dar aula o dia todo em Ijuí, Milton estava cansado e de novo na estrada em direção a São Borja pela BR 285. Detestava guiar à noite pelas estradas estreitas de duas mãos do Rio Grande.  Cheias de buracos e de motoristas indisciplinados. Parou no posto para duas xícaras de café forte. Logo chegaria a São Miguel das Missões; já seria meio caminho. O café o animou, mas após meia hora já se sentia sonolento de novo. Depois de uma curva viu a placa, desvio por obras na estrada. Tomou o desvio, estradinha de terra às escuras e deserta. Tinha a vaga ideia que passaria bem  perto das Missões.  De fato, avistou ao longe a silhueta das ruínas. Foi quando o  seu velho Chevrolet parou. 

 ̶  Pô, que lugar para encrencar! Resmungou.

Saiu do carro, com a lanterna na mão e inspecionou o motor. Não entendia de mecânica exceto o básico e este parecia estar em  ordem.  Sozinho naquela escuridão deserta não havia o que fazer. Do celular ligou para seu colega em São Borja avisando da pane. Ligou para o seguro que prometeu vir acudi-lo em duas horas. Milton reclamou da demora, mas em vão. Não era medroso, mas a escuridão e o isolamento do lugar foram ficando opressivos. Ficou contente quando viu os faróis da caminhonete se aproximando. Achou que seria o pessoal do seguro.

 ̶  Afinal, chegaram bem mais cedo, exclamou. Só estranhou quando se deu conta que o motorista estava todo vestido de preto e com o rosto escondido por um capuz.  ̶  Pronto, é um assalto! Não tenho nada, só se quiserem levar o carro, que não anda!


Milton enganou-se. O que o homenzarrão mascarado, queria era ele mesmo. Sentiu quando levou a pancada que o derrubou e foi depois amordaçado e as mãos amarradas. O agressor não pronunciou palavra e foi empurrando o rapaz por um estreito atalho na direção das ruínas. Apavorado Milton pensava:   ̶  O que quer de mim esse cara? Vão me sequestrar e pedir resgate? Logo eu, professor que ganho por aula, mal dá para sobrar um dinheirinho para as férias, a Celina vai endoidar, de onde tirar o dinheiro, só empréstimo de banco, não vão dar, só agiota, o pai dela  também está cheio de dívidas, meu irmão nem pensar....

Sentiu que pisava em tijolos e as enormes mãos do seu captor o empurraram para descer os degraus irregulares de uma escada. Tropeçava amiúde e só não caia porque o gigante o agarrava pelo braço. Por fim chegaram ao plano, no que Milton imaginava ser a antiga cripta da igreja das Missões. O cheiro era indescritível. Mistura de carne apodrecida com umidade e bolor. Tentou pensar racionalmente na origem do terrível fedor : ̶  Não pode ser de ossadas expostas da cripta, estão secas há tempo, algum animal morto talvez, mas porque me trariam a este lugar, parece aquele  seriado de tevê horrível de um sádico cujas vitimas tinham que fazer opções terríveis  sem conseguir escapar, só vi um, e se caí na mão de algum que imita esse, deviam proibir este tipo de filme, sempre tem  uns loucos por aí...

Sentiu então uma pancada forte no pescoço  e desmaiou. Ao acordar, com a cabeça e pernas imobilizadas sentiu que estava amarrado a uma mesa. Descobriu que tinham-lhe  tirado a venda. Na semi-obscuridade  viu a enorme mesa cercada dos dois lados por muitas cadeiras. Objetos metálicos alguns brilhantes  estavam espalhados. Ouviu passos pesados e vultos enormes  embuçados se aproximavam da mesa. O cheiro que já era horrível tornou-se nauseabundo. Desajeitadamente se moviam esbarrando uns nos outros tentando puxar as cadeiras. Milton gelou, conhecia os seres das revistas em quadrinhos e dos filmes... Eram zumbis! Era um jantar de zumbis e ele era o prato principal̶  Estou delirando, não existem, só na minha imaginação, não sei o que fazer, como se livrar deles, olha um avançando com a faca para a minha barriga, é o fim, Celinazinha querida  me perdoe, nossa ultima briga por causa da conta da internet, cuide bem do Joli, não me esqueça, te amo.... Neste momento, Milton desmaiou.  Quando reabriu os olhos estava numa sala muito clara e a luz o cegava...

 ̶  Será que morri? Devo estar a caminho do céu... Conseguiu a custo focalizar a visão. Era um ser, homem ou mulher, vestido de verde, a testa e o rosto cobertos que o olhava e perguntava:
 
̶  Seu Milton, está me ouvindo ? Quantos dedos está vendo?

 ̶  Parem, não quero ser comido, tenho ainda a Celina e o Joli, as aulas para dar....


̶  Seu Milton, acalme-se, você teve um acidente na estrada perto de São Miguel, um caminhão pegou o seu carro em cheio por trás com você dentro. Teve sorte que trouxeram você logo para o hospital. Teve hemorragia foi operado e tem fraturas nas duas pernas. Mas está fora de perigo. Sua mulher, Celina, está aí fora esperando você sair da sala de cirurgia!